sábado, 23 de novembro de 2024

A caminho do seminário




Tomei o comboio na estação de Castanheira, depois que o Calhau deixou de me abraçar.
Foi ele que me trouxe no carro de bois de D. Estefânia, em cuja casa, como se sabe, me talharam o destino. Minha mãe veio ainda à igreja, pela madrugada, ver-me partir; mas sentindo-me tão distante como se eu fosse preso, como se eu já pertencesse a um mundo que não era o seu - mal me falou. Por seu lado, D. Estefânia disse-me brevemente que fosse na paz de Deus - e desapareceu. 
Sozinhos no carro, Calhau abismava-se no grande silêncio da manhã. Apenas de vez em quando, emergindo da solidão, mas fixo ainda na radiação de tudo, dizia coisas naturais da terra e das sementes, ou perguntava de novo a que horas era o comboio. 
- Às nove - respondia eu. 
- Chegamos a tempo. 
E outra vez se calava, de capote às orelhas, sentado na borda do carro, com as pernas suspensas. Mas logo depois murmurava de novo:
- Tens sorte. Olha eu que nunca pus os pés num comboio. Já o vi três vezes com esta. Mas nunca lá pus os pés. Tens sorte. 
A névoa da madrugada desprendia-se dos campos, ia envolvendo a montanha. Dobrado de frio, o queixo nos joelhos, a saca da roupa ao lado, eu sentia-me quase feliz, mas de uma estranha felicidade inquietante. Perturbavam-me de prazer a trepidação da partida, o halo da novidade e sobretudo o apelo intrínseco e doce de todas as pequenas coisas que ficavam mais perto de mim, como o fato novo, estreado esse dia, e o farnel da merenda para comer no comboio. Fechado nestas quimeras, eu calava-me também, como se com o silêncio me defendesse de tudo o que era ameaça à minha roda. Porque tudo para mim era estranho e ameaçador, desde a montanha imóvel na enorme manhã circular até ao espectro do Calhau e dos bois, tão insólitos na sua placidez inicial, como se viessem carregando o carro, submissamente, através de longos séculos... Afinal chegámos meia hora antes do comboio. De modo que, aproveitando esse bónus de espera, Calhau e eu pusemo-nos a estudar as linhas, os vagões nos desvios, a engrenagem das agulhas. 
Um homem fardado veio à plataforma dar avisos de corneta, uma inquietação nova centrou a atenção de todos. E, bruscamente, entre dois grandes penhascos, o comboio rompeu enfim como um rancor subterrâneo, alucinado de ferros e fumarada. E tive medo. Pela primeira vez estremeci de medo até aos limites da vida, não tanto, porém, da fúria do comboio, como dessa coisa insondável e enorme, tão grande para mim, que era partir.

Vergílio Ferreira

Cartaz do filme "Manhã Submersa" do realizador Lauro António baseado na obra homónima de Vergílio Ferreira

terça-feira, 5 de novembro de 2024

Estação ferroviária


Sou de um tempo e lugar em que os comboios eram lentos, tão vagarosos que pareciam arrependidos da viagem. Na estação, não havia despedida. Nada de separação traumática, o golpe definitivo da partida. Tudo era tão lento e esfumado que se convertia em irrealidade. A despedida como repentina ruptura eu aprendi mais tarde, no meu primeiro aeroporto. Voar é o sonho da própria poesia. Mas o voo tem despesas de afecto muito pouco poéticas.
Nasci e vivi entre meandros de rios, preguiçosas águas que se apegavam às margens. A estação ferroviária obedecia a essa líquida paisagem. O comboio era um barco e eu entendia porque se chamava "cais" àquela plataforma onde as mães agitavam os lenços brancos. Para mim, os modos lentos do comboio não resultavam de incapacidade motora. Eram, sim, gentileza. Uma afabilidade para com essas pequenas mortes, que são as despedidas.
Muitas vezes me desloquei para a estação dos caminhos-de-ferro com o fim de não me deslocar para lado nenhum. Ficava no banco de madeira a olhar a gente transitando. E me abandonava naquele assento durante horas, sem que o tempo me pesasse. Talvez eu viajasse mais que os próprios passageiros que chegavam e partiam. A minha cidade era pequena, tão pequena que os domingos, com seu tédio antecipado, não eram notados. Eu inventava os meus tempos fora do Tempo, ali na arrastada azáfama da estação ferroviária.
Não tive propriamente uma educação religiosa. Apenas de quando em quando eu entrava em recinto de igreja. Fazia-o porque havia ali um sossego que me refrescava a alma. Qualquer coisa parecida com o que eu encontrava na gare ferroviária. Com a diferença de que a estação me facultava um recolhimento do lado de dentro da Vida, um resguardo entre as pessoas e as almas que eu nelas inventava. Os fantasmas da igreja moravam na sombra fria. Os da estação eram solarentos, riam alto e falavam línguas que eu desconhecia.
Algo me ficou desse estacionamento de alma, como se eu ganhasse residência perene nas velhas estações de todo o mundo. Afinal, essa contemplação me trouxe como que um irreparável vício: ter um banco de madeira onde eu possa ver desfilar pessoas em flagrante viagem.

Mia Couto
Pintura de Paul Delvaux

sábado, 26 de outubro de 2024

Saí do comboio

















Saí do comboio,
Disse adeus ao companheiro de viagem
Tínhamos estado dezoito horas juntos..
A conversa agradável
A fraternidade da viagem.
Tive pena de sair do comboio, de o deixar.
Amigo casual cujo nome nunca soube.
Meus olhos, senti-os, marejaram-se de lágrimas...
Toda despedida é uma morte...
Sim toda despedida é uma morte.
Nós no comboio a que chamamos a vida
Somos todos casuais uns para os outros,
E temos todos pena quando por fim desembarcamos.

Tudo que é humano me comove porque sou homem.
Tudo me comove porque tenho,
Não uma semelhança com ideias ou doutrinas,
Mas a vasta fraternidade com a humanidade verdadeira.

A criada que saiu com pena
A chorar de saudade
Da casa onde a não tratavam muito bem...

Tudo isso é no meu coração a morte e a tristeza do mundo.
Tudo isso vive, porque morre, dentro do meu coração.

E o meu coração é um pouco maior que o universo inteiro.


Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)




A locomotiva Tchaf



Ti João, o fogueiro, cuspiu nas mãos, pegou na pá e começou a lançar muito carvão na fornalha.Trraaac-tchi-pum, trraaac-tchi-pum, trraaac-tchi-pum. As pazadas de carvão entravam na fornalha a um ritmo certo e ardiam numa explosão breve.- Já está boa, Ti João. A pressão já atingiu o máximo, exclamou o maquinista.
- Partiiiida!, gritou uma voz lá ao longe, ao mesmo tempo que se ouvia a corneta do chefe da estação.
- U, U, U, respondeu a máquina ao aviso da corneta.
Tchaf, tchaf, tchaf, tchaf, faz mais fumo, faz mais fogo, força firme foge-foge nesta viagem sem fim.
Tchaf, tchaf, tchaf, tchaf, pouca-terra, pouca-terra, puxa-passa, passa-puxa a potência do vapor para a roda pedaleira.
Tchaf, tchaf, tchaf, tchaf, rilha o ferro, range o rail, roda a roda reduplica a raiva de mil corcéis a escoucinhar furiosos as alavancas da máquina.
Tchaf, tchaf, tchaf, tchaf, a caldeira a rebentar já não vive, sobrevive aos cavalos de vapor – catrapum e catrapum, catarapum e catrapum – patadas no corpo-aço das alavancas motrizes e vai-que-vem e vem-que-vai são muitas mil toneladas de aço e ferro para arrastar.
Corre, corre comboiozinho, conta-conta a tua história, canta-canta a melopeia – tum, tum, tum e tum, tum, tum – toada música-toante, melodia de viagens cem mil vezes repetidas quase até ao infinito.
O fogueiro afogueado anima a marcha do trem, canta modinhas bonitas, assobia sonhos-sol e os seus cavalos brancos crinas soltas, força livre puxam pela geringonça - tchaf, tchaf, tchaf, tchaf – respondendo com amor àquele duende mágico mascarrado com carvão.

Carlos Correia
Fotos do comboio do Vale do Vouga

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Memórias de viagens de comboio


As carruagens de primeira classe: os estofos cor de mel, as redes grossas onde às vezes se acomodavam os meninos já grandotes, para não pagar bilhete, tinham um tom elegante e ligeiramente dramático. Como se tivessem ainda o perfume de mulheres bonitas e galãs de chapéu de palhinha. Ninguém levava farnel nas carruagens de primeira classe. Às vezes, alguém comprava água fresca na Ermida ou uma regueifa em Valongo. Mas era tudo muito discreto, muito digno, não se tirava o chapéu nem as luvas nem se abanava o rosto com um papel pregueado. Havia quem lesse um livro durante todo o tempo, as Décadas de João de Barros, não se pode imaginar maior presunção. Levantavam os olhos de vez em quando para gozar a impressão que faziam.
Nas carruagens de segunda classe era tudo mais falado. Faziam-se amizades, trocavam-se merendas, conselhos, as mães diziam coisas dos filhos e como os criavam. Lia-se o jornal, O Comércio do Porto, ia-se à janela, que se abria com fragor para ver como era desprender a correia que a segurava. As mulheres protestavam, muito remexidas nos assentos, e os filhos olhavam como se fossem espectadores duma briga prestes a acontecer. Uma vareja entrava pela janela anunciando o Verão pastoso dum calor que encrespava as folhas. A alma sensata viajava em segunda classe, era opiniosa e moderada; escandalizava-se facilmente, tinha pena das mulheres perdidas e culpava os ricos dos luxos e dos maus exemplos. Calavam-se de repente quando passava uma desconhecida de saltos altos que procurava o lugar com o bilhete na mão.
Enquanto na terceira  classe era a festa, diziam-se larachas, derramava-se vinho, ouvia-se o piar dos frangos nas cestas de vime vermelho. Eram os presentes para os padrinhos, para os protectores que livravam da tropa os filhos. Nos açafates forrados com uma toalha de linho, estava o requeijão e as primeiras cerejas em rocas de pau verde. As criadinhas que saíam de casa para servir na cidade sorriam debilmente, apertadas num colete artesanal, ainda de ilhós, muito à antiga. Tinham olhos de quem chorou à despedida, mas o comboio dissipava-lhes a tristeza como se fosse um berço em que as promessas escurecem as recordações.

Agustina Bessa-Luís
Foto da estação dos caminhos de ferro de Aveiro

sábado, 5 de outubro de 2024

Mapa dos caminhos-de-ferro






Percorro com o dedo, no mapa
do passado, as estações da vida. Passo pelas
do verão, onde entro na automotora que apita
a cada passagem de nível, afugentando
as aves e as raparigas de cabelos soltos
ao sol do meio-dia; saio nas do outono,
onde pergunto aos revisores de órbitas 
vazias a que horas sai o comboio
do inverno; sento-me na carruagem
da frente do comboio a vapor, e vejo o fumo
sair em direcção aos céus que anunciam
a primavera. Mas não encontro a estação
certa, aquela em que via o louco, de pernas
enterradas no lodo da ria, discursar
aos peixes voadores; essa em que o chefe
da estação agitava a bandeira para os carris
vazios, esperando que algum amor perdido
na adolescência chegasse para o libertar
da campainha do telefone; aquela em que,
um dia, pudemos desembarcar, como
se fosse ali o destino desejado, sem primeiras,
segundas e terceiras classes. Hoje,
porém, vejo apagar-se esse mapa, e
a única estação é esta, em que ontem, hoje
e amanhã são, todos os dias, o dia
que amanhece nas minhas mãos, quando
procuro as estações da vida.


Nuno Júdice
Pintura mural - BIGOD


sábado, 28 de setembro de 2024

As raízes


As raízes não falam. Não estão atrás. Nem no fundo.
As raízes vão à frente. Puxam-nos para a frente.
Por vezes engrossam nos sapatos. Cheias de suor e cobertas de bocas.
Trazem os olhos cheios de noite e de formigas
e têm o peso de séculos de pão e morte, de mãe e cal.
Projectam-se para o sol em latidos de sangue
mas caem num fundo de chumbo ou numa imóvel sombra.
Crescem, crescem sempre com as cabeças feridas,
orfãs de um horizonte soterrado em escamas.
Ascendem à garganta com os dentes da terra
mas sustêm o grito como se fosse um osso.
Que querem elas dizer? Alegria, árvores,
astros? Ou a intensa sombra do silêncio?
Elas impelem-nos para a frente, para um futuro antigo
de lágrimas adolescentes e marinhas,
de rios juvenis, de grandes luas
e o coração late em águas vivas.


António Ramos Rosa
Escultura "Árvore da vida" de Alberto Carneiro

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Quero um cavalo de várias cores

Quero um cavalo de várias cores,
Quero-o depressa que vou partir.
Esperam-me prados com tantas flores,
Que só cavalos de várias cores
Podem servir.

Quero uma sela feita de restos
Dalguma nuvem que ande no céu.
Quero-a evasiva - nimbos e cerros -
Sobre os valados, sobre os aterros,
Que o mundo é meu.

Quero que as rédeas façam prodígios:
Voa, cavalo, galopa mais,
Trepa às camadas do céu sem fundo,
Rumo àquele ponto, exterior ao mundo,
Para onde tendem as catedrais.

Deixem que eu parta, agora, já,
Antes que murchem todas as flores.
Tenho a loucura, sei o caminho,
Mas como posso partir sozinho
Sem um cavalo de várias cores?

Reinaldo Ferreira
Pintura de Amadeo de Souza-Cardoso

Cavalos Azuis, de Franz Marc


Passo para dentro do quadro dos quatro cavalos azuis.
Nem sequer chego a espantar-me por ser capaz de o fazer.

Um dos cavalos vem na minha direcção.
O seu nariz azul fareja-me levemente. Ponho o meu braço
em volta da sua crina azul, não para o prender, apenas
para estabelecer uma ligação.
Ele permite-me esse prazer.
Franz Marc morreu jovem, o cérebro rebentado pela metralha.
Eu preferia morrer a ter de explicar o que é a guerra
aos cavalos azuis.
Eles desfaleceriam, tomados pelo horror, ou simplesmente
não acreditariam nas minhas palavras.
Não sei como posso agradecer-lhe, Franz Marc.
Talvez o desejo de criar algo de maravilhoso
seja a semente de Deus que existe em cada um de nós.
Agora os quatro cavalos aproximam-se ainda mais,
inclinam as cabeças sobre mim
como se tivessem segredos a revelar.
Não espero que me falem, e eles não o fazem.
Se serem tão belos como são não é suficiente, o que
teriam eles a dizer?

Mary Oliver (tradução de Luís Filipe Parrado)
Pintura The large blue horses, Franz Marc

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Terra-mãe


José Malhoa

                                                                Silva Porto

Lá dos campos, tristes campos,
Dos campos do Alentejo,
Vim ainda pequenino
- E pequenino me vejo...
Lá nos campos, tristes campos
Da solitária planura,
Nasceu a minha revolta,
Nasceu a minha amargura.
Lá dos campos, tristes campos,
Vem a lembrança de tudo
O que mais amo e desejo.
Vem a fome, a sede e o sono
Das terras do Alentejo!

Raul de Carvalho




Se fores ao Alentejo..




Se fores ao Alentejo
Não leves vinho nem pão:
Leva o coração aberto,
E ao lado do coração
Leva a rosa da justiça
E o teu filho pela mão.

Se fores ao Alentejo
Não leves vinho nem pão:
Leva o teu braço liberto
Para abraçar teu irmão;
Esse irmão que está tão perto
Do teu aperto de mão
E que tão longe amanhece
Nos campos da solidão.

Se fores ao Alentejo
Não leves vinho nem pão:
Leva a alegria de seres
Irmão de quem vai parir
Uma seara de trigo,
Uma charneca a florir,
Um rebanho e um abrigo
E um amanhã que há-de vir
Como se fosse outro amigo
Dentro do sol, a sorrir.

Se fores ao Alentejo
Não leves vinho nem pão:
Leva o coração aberto
E o teu filho pela mão.

Eduardo Olímpio

O novo Alentejo

No tempo do Estado Novo, com as Campanhas do Trigo, as representações do Alentejo simplificaram-se e organizaram-se em torno da planície cerealífera - o Celeiro de Portugal - em processo de modernização e de aprofundamento das desigualdades sociais. No período posterior à revolução de Abril de 1974, assistiu-se a um curto e intenso tempo de mudança da tonalidade da paisagem alentejana: o Alentejo era vermelho e a reforma agrária iria desmantelar o latifúndio.
Nas duas últimas décadas as mudanças foram vertiginosas e contraditórias com o final do longo ciclo do trigo e a entrada veloz da vinha, da oliveira e de  um leque variado de culturas regadas e novidades tão inesperadas quanto a produção de papoilas para a extracção do ópio (do povo?). Finalmente, o projecto de rega do Alqueva cumpria a miragem do grande lago e trouxe os investidores internacionais do agro-negócio, o fresquíssimo nome da agricultura. Fala-se novamente nos minérios e na grandeza industrial e portuária de Sines, o Complexo, como lhe chamaram aquando do seu baptismo. No entanto o despovoamento continua com o aprofundamento do envelhecimento e a concentração demográfica nas principais cidades e vilas. Na agricultura trabalha gente do Brasil, da Roménia, da Ucrânia, da Moldávia, da China, do Nepal e de outros orientes. São os novos ratinhos do trabalho sanzonal. Escravos do campo regado em tempos de globalização.
De coisa quase ausente - excepto na Costa alentejana, agora rebaptizada de Sudoeste, com festival e muita estufa de framboesa -, o turismo apareceu com a sua corte de cenografias e relatos sobre gastronomia e vinhos, paisagens, praias, rotas, monumentos megalíticos, Patrimónios da Humanidade, caça, turismo rural, natureza, porcos pretos, casas brancas, resorts, cante, chocalho, centros históricos, aldeias típicas, montados, cavalos, perdizes, castelos e fortalezas e tudo e tudo. O latifúndio monocórdico pariu uma estridência radical.

Álvaro Domingues, 2017


sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Avós

Minha mão tem manchas,

pintas marrons como ovinhos de codorna.

Crianças acham engraçado

e exibem as suas com alegria,

na certeza - que também já tive -

de que seguirão imunes.

Aproveito e para meu descanso

armo com elas um pequeno circo.

Não temos protecção para o que foi vivido,

insónias, esperas de trem, de notícias,

pessoas que se atrasaram sem aviso, 

desgosto pela comida esfriando na mesa posta.

Contra todo artifício, nosso olhar nos revela.

Não perturbe inocentes, pois não há perdas

e, tal qual o novo,

o velho também é mistério.


Adélia Prado, prémio Camões 2024

https://www.youtube.com/watch?v=4YOyEdWPg-k

quarta-feira, 31 de julho de 2024

Castro Marim







 





Sapal de Castro Marim


Castro Marim foi conquistada aos Mouros por D.Paio Peres Correia em 1242, mas devido à sua situação geográfica, continuou a sofrer os ataques dos inimigos o que provocou um forte decréscimo de população.
Para tentar resolver o problema, D.Afono III em 1277 e,  em 1282, D Dinis, seu filho, concederam-lhe imensos privilégios que proporcionaram o desenvolvimento da região.
D. Dinis escolheu Castro Marim para primeira sede da Ordem de Cristo, em 1319, mas em 1356, verificou-se a transferência desta Ordem para Tomar e a vila voltou a entrar em recessão. Em 1375, Castro Marim foi novamente entregue, por pouco tempo, à Ordem de Cristo, com os direitos e privilégios de outrora.
A partir do século XV, Castro Marim, devido à sua localização,  além de porto piscatório e comercial, desempenhou um papel importante na luta contra a pirataria e no apoio à navegação e às conquistas no norte de África. 
No séc. XVIII, diversas circunstâncias, entre as quais a grande destruição causada pelo terramoto de 1755 e a criação de Vila Real de Santo António, por iniciativa do Marquês de Pombal,  provocaram o seu declínio.

CASTRO MARIM

Lenda: O sapo e o mouro do castelo

Campo de numerosas batalhas, Castro Marim viu o seu castelo mudar de bandeira um par de vezes. Ora hoje moura, ora amanhã cristã, ali há também um alfobre de lendas de mouros encantados.Infelizmente a memória de muitas delas perdeu-se, sobretudo no que se refere a pormenores. E ainda bem que Ataíde Oliveira (1843-1915) entendeu coleccionar quanto pôde (e muito foi!) da tradição algarvia. Não fora ele e nada saberíamos de um certo sapo.

Que sapo? Pois um que havia no sítio da Espargosa, numa horta próxima de Castro Marim. Não era um sapo qualquer, era um mouro encantado. Muita gente da vila o viu, mas a partir de determinada altura, desapareceu. Tanto quanto se diz, desapareceu porque se quebrou, por fim, o seu encantamento. Porém, nessa mesma hora foram vistas, pela meia-noite, algumas mouras, pertencentes a outros encantamentos!

E também foram vistas ao meio-dia, que é a hora em costumam pentear os seus cabelos com pentes de ébano, decorados com embutidos naquele precioso metal. Houve quem as visse.

Por outro lado, os noctívagos de Castro Marim, quando lançam o olhar pelas arruinadas muralhas da sua vila, às vezes topam com um mouro a passear por lá. A lenda diz que o mouro era um homem riquíssimo e que em tempos protegeu uma família, ainda que as pessoas se tenham esquecido porquê! É o mouro do castelo e pronto.

Igualmente, registou Ataíde Oliveira, que no arco de Herveira, ainda nas imediações de Castro Marim, ao meio-dia e à meia-noite, mouros e mouras encantadas apareciam a quem por lá passava.

Uma proprietária daqueles sítios, certa noite, enfrentou-se com uma figura, a quem por diversas vezes atirou o seu punhal, sem lhe poder acertar. Por outro lado, a tal figura também não a conseguiu agarrar. Acabou esta por desaparecer e a senhora, ao chegar a casa, viu que tinha o corpo como se lhe tivessem batido! As pessoas até diziam que tinha sido uma luta da senhora, que se chamava, Ana Faísca, com um bicho monstruoso, por causa do desencanto de um mouro. A senhora não negava a luta, mas não aceitava a motivação....

Também para os lados das Vargens de Belixe, reza outra lenda, que ao meio-dia, se escutava, «ais» lamentosos que vinham do meio da terra.Muita gente lá terá ido ouvi-los, mas ninguém se deu ao trabalho de averiguá-lo! Contava-se também nos serões desta vila a história dos nove mouros encantados. O próprio Ataíde Oliveira diz que pediu a um amigo que lhe arranjasse os termos da história, mas ele não consegui descobrir nada, estava tudo esquecido! E o grande investigador algarvio atribui à acção dos frades a culpa da destruição da memória destas lendas.



Lenda do Azinhal

Diz a lenda que antigamente, no local que hoje se chama Azinhal, existia um nobre muito poderoso e que era dono de muitas terras e que esse nobre tinha uma filha muito bela e que estava habituada a satisfazer todos os seus desejos.
Um dia essa rapariga conheceu um jovem cavaleiro, que era também muito belo e por quem se apaixonou. Só que esse jovem jurara a ele próprio que nunca se havia de se apaixonar por ninguém e que queria ser livre para sempre.
Entretanto, o jovem não conseguiu resistir ao encanto da jovem e apaixonou-se mesmo por ela. Então, a rapariga, impôs-lhe como condição, antes de se entregar, que ele renunciasse à sua liberdade.
Então o cavaleiro, desesperado e sem saber o que fazer da sua vida, correu até um montado de azinheiras e ao chegar junto de uma árvore cravou um punhal de oiro no coração e morreu.
Diz-se ainda hoje que este jovem costuma aparecer durante a noite com o peito ferido e a sangrar e que também se ouvem suspiros e o choro de uma jovem.
A lenda diz também que os dois continuam a amar-se eternamente e que ela, sempre a chorar, vai fazendo, vai tecendo finas rendas para tentar estancar o sangue que sai do coração do seu amado.
Foi também a partir desta lenda que terão surgido as rendas de bilros que são também hoje muito conhecidas aqui na aldeia, que algumas mulheres ainda continuam hoje em dia a fazer.


Fonte Biblio: AA. VV., - Arquivo do CEAO (Recolhas Inéditas) Faro, n/a,




Tributo de Castro Marim a Paco de Lucía
A ligação de Paco de Lucía às raízes maternas perpetua-se no nome artístico de Francisco Gustavo Sánchez Gomes – Paco de Lucía - e nos álbuns de “Castro Marín” (1981) e “Luzia” (1998).
O memorial ao guitarrista concretizou-se em 2018, com a inauguração de Tributo a Paco de Lucía em Monte Francisco, de onde era a sua mãe, Luzia, era natural.




terça-feira, 16 de julho de 2024

O chico-espertismo

O chico-espertismo atravessa todo o tipo de subjectividade da nossa sociedade, sendo transversal a todas as classes, grupos, géneros, gerações. Na educação popular usa-se habitualmente um epíteto carinhoso para "provocar"ou "espicaçar" uma criança: "malandro" (ou "maroto"), com todas as variantes de "malandreco", "malandrete", etc. Epíteto formador, porque carinhoso e incentivador da acção que, ao mesmo tempo, se critica a brincar. A um garoto (mesmo a um bebé) lança-se um "seu malandro" quando se atribui malícia, dupla acção de fingir não enganar e enganar para obter um fim sem relação visível com as suas palavras ou acções - e assim se inscreve na criança um padrão indelével de comportamento e de relação ao outro.
Há chico-espertismo em todos os campos. Desde o automobilista que aproveita um espaço vago na bicha à sua frente e se precipita ultrapassando os outros para ganhar um ou dois lugares até às decisões ministeriais que fazem os "ricos" pagar mais IRS para compensar a "classe média" sacrificada - medida que é, nos seus efeitos, praticamente nula - toda a vida social, política e privada dos portugueses é um constante rodopio de golpes de chico-espertismo.
O chico-esperto não é o mentiroso, o grande escroque, o corrupto que se coloca claramente fora da lei. Pelo contrário, aproveita um espaço não-preenchido pela lei para cometer um acto quase legal, mesmo quando implica pequenas transgressões das normas jurídicas. O chico-esperto infringe a lei como se estivesse a cumpri-la, como se fosse uma boa partida sem consequência de maior. Porquê? Porque no fundo, a pequena transgressão que comete não faz dele um criminoso, apenas um "malandreco". À acusação que o pode tornar alvo da autoridade porque cometeu um delito opõe-se a força da conivência dos costumes, do "direito consuetudinário" que se formou na cabeça dos nossos compatriotas e que aprova secretamente o chico-espertismo. O chico-espertismo, por ser tão generalizado e penetrar tantos domínios, desliza facilmente para a corrupção e para a acção criminosa. Mas enquanto não chega aí, o chico-esperto goza do consenso conivente da maior parte da população, mesmo quando esta, publicamente, o condena. Por isso a sua acção ganha valor - o valor da sua esperteza. Esta necessita de descaramento, mas contém ousadia, temeridade e até coragem - valor enviesado, mas que todos os portugueses reconhecem.
Insisto: o chico-espertismo não é característico de determinada zona de comportamento, mas estende-se à relação inteira do sujeito com o outro. 

José Gil

segunda-feira, 15 de julho de 2024

Actualidade do Zé Povinho

João Abel Manta

O fecho definitivo dos portões do Império africano, o regresso a Ítaca de tantos milhares de lusos dispersos em diaspórica presença pelo globo terráqueo, e até a nossa entrada na CEE e a nossa ulterior caminhada dentro dessa União Européia, bem como a nossa aparente diluição na identidade mais vasta dessa grande e ambiciosa comunidade de destinos e de sonhos não anularam o significado deste totem doméstico. De modo que lá anda ele, neste Portugal re-europeizado, num país de serviços, onde a União Européia paga aos nossos camponeses para se absterem de amanhar a terra, sempre apto a representar-nos, como nos tempos do seu pai Rafael, desmentindo os nossos alegados avanços ou progressos que o tornariam caduco e arcaico – na realidade, somos agora inconvictamente “europeus”, como outrora tínhamos sido “liberais” de acordo com a Carta outorgada e, mais tarde ainda, tínhamos fingido que éramos “republicanos”, vegetando, em seguida, durante quase meio século, manietados e amordaçados em Ditadura pura e dura, para nos acharmos, reconquistada a liberdade, fantasiados de “revolucionários” e “socialistas” (...) e agora, tendo passado do esmagador sector primário para um crescente e hoje omnipotente  sector terciário, nos sentimos nulos e vácuos e nesta “orla vã da praia” ocidental (Fernando Pessoa). Aí vai um número: 62,8 % da população activa no sector dos serviços, contra 4,1 % no primário, segundo o censo de 2001. Contudo, esta viragem histórica não lançou o Zé no desemprego simbólico, de modo que vamos continuar a ter no Zé Povinho, quer isso nos agrade ou não, o nosso melhor ( e único) verdadeiro auto-retrato como povo – aliás, povinho, já que nunca logrou ser, como prognosticara erradamente Ramalho Ortigão, “simplesmente povo”. Em suma, mesmo modernizado, europeizado, alfabetizado e terciarizado, livre do naufragado Império no qual, como o neurasténico Velho do Restelo dos Lusíadas, nunca acreditou, antes tomou sempre como fonte de infindáveis desastres e misérias -, o Zé persiste em assegurar o papel de estereótipo nacional, porquanto, na sua essência anímica, nas veras da sua alma mais íntima, nas suas entranhas mais ônticas e no seu recorte psicológico mais fundo, perene e arcaizante, ele continua a representar a mesma inércia, a mesma comunidade nacional sofredora, apática, descrente, nihilista e, só ocasionalmente, capaz de raríssimas explosões de cólera, sempre esporádicas e inconsequentes, expressas através de um gesto fálico brutal, próprio,

aliás, de quem não sabe falar, pois nunca se alfabetizou moral, cívica ou escolarmente o suficiente para encarregar gente mais dotada da palavra para exprimir as suas cóleras, justos queixumes ou legítimas aspirações. 

João Medina (texto com supressões)



"Manguito" de Carlos de Oliveira "apareceu" em frente do Palácio de Belém, em 3/4/2023. O Sr. Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa,  autorizou que ficasse instalado no interior do Palácio, no jardim dos Teixos, enquanto decorre o processo  relativo à sua localização definitiva.



Zé Povinho

Eis em resumo a instrutiva história de portento tão admirável e prodigioso:
Zé Povinho começava apenas a ter-se nas pernas, quando os poderes seus pais, pondo-o à porta das instituições na franca direcção do olho da rua, lhe fizeram este memorável discurso:
"Zezinho vai passear. 
Nós, teus pais, depois de havermos cogitado com diurna e nocturna aplicação resolvemos de comum acordo que o melhor dote que se te podia dar era a liberdade, pois que a liberdade é, como bem dizem os filósofos, o maior dos bens, superior ao próprio ouro.
Sê pois livre, e capacita-te de que vais muito mais bem convidado com a licença que para isso te conferimos do que com três ou quatro pintos que te metêssemos no bolso!
Escola não a tens, porque te poderia fazer mal o puxar muito pela cabeça nos estudos, e lá diz o ditado que antes burro vivo, como tu estás, do que doutor morto, como tão frequentemente se tem visto.
Tenhas tu a graça de Deus Nosso Senhor, que é o que se pretende! e essa divina graça, lá está o reverendo pároco da tua freguesia encarregado da ta dar, se lhe pagares a côngrua.
Para manter o teu direito e defender a tua justiça encontrarás também os tribunais competentes, com advogados idóneos para discursarem a teu respeito pela gratificação de seis moedas, vestindo-te a túnica alva e luminosa da inocência ou amarrando-te à perna a grilheta do forçado, segundo sejas tu que dês as seis moedas, ou seja a parte contrária que as dê.
Enquanto ao governo incumbido de assegurar a manutenção de toda esta caranguejola, tão engenhosamente concebida para tua satisfação e recreio, serás tu mesmo que por tua mão o elegerás, metendo escrito no papel o nome daquele que destinares para poder executivo... Para o fim de te dar o papel com o nome do sujeito que hás-de meter e que nós nos encarregamos de confeccionar, lá estará um funcionário especial intitulado o Regedor.
Para continuares a gozar o sumo bem da liberdade que te outorgamos, tu não tens senão o pequeno incómodo de pagar tudo o que isto custa, e de dar os vivas do estilo, sempre que a ocasião se ofereça, ao príncipe, à real família e às instituições que vivem à tua custa.
Finalmente sempre que precisares do que quer seja, trata de o ganhar, porque ninguém te dá nada! Adeus, Zezinho, vai-te com Nossa Senhora!"
Crescido, Zé Povinho correspondeu perfeitamente às esperanças que nele depositaram os solícitos poderes do reino. Como desenvolvimentos de cabeça ele está pouco mais ou menos como se o tivessem desmamado ontem.
Um dia virá talvez em que ele mude de figura e mude também de nome para, em vez  de se chamar Zé Povinho, se chamar simplesmente Povo.

Ramalho Ortigão,  do "Álbum de Costumes Portugueses", 1888 
(texto com supressões)





Foi no jornal A Lanterna Mágica, a 12 de junho de 1875, que Rafael Bordalo Pinheiro  apresentou pela primeira vez a figura icónica do Zé Povinho, daí em diante e até à atualidade entendida como símbolo do povo português.
Este desenho apresenta uma metáfora à tradicional cena lisboeta do peditório para o Santo António. Assim, Fontes Pereira de Melo (Chefe do Governo Regenerador) está feito Santo António segurando ao colo o menino Jesus que é o rei D. Luís. À esquerda o Comandante da Guarda Municipal, de chicote, observa a cena.
O Zé Povinho (identificado através de inscrição, nas calças), de roupas esfarrapadas, é abordado por Serpa Pimentel, então Ministro da Fazenda, de quadro de ardósia ao ombro e prato de esmolas na mão, que lhe pede uma moeda para o “santo”. Pairando sobre a cena, figuras com corpo de abelha, de cartola, representam personalidades da política nacional.

Fonte: Museu Rafael Bordalo Pinheiro



sexta-feira, 28 de junho de 2024

Camões lamenta-se

O Desconcerto do Mundo

Os bons vi sempre passar
No Mundo graves tormentos;
E pera mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só pera mim,
Anda o Mundo concertado.


Soneto

Em prisões baixas fui um tempo atado,
vergonhoso castigo de meus erros;
inda agora arrojando levo os ferros
que a Morte, a meu pesar, tem já quebrado.

Sacrifiquei a vida a meu cuidado,
que Amor não quer cordeiros, nem bezerros;
vi mágoas, vi misérias, vi desterros:
parece-me que estava assi ordenado.

Contentei-me com pouco, conhecendo
que era o contentamento vergonhoso,
só por ver que cousa era viver ledo.

Mas minha estrela, que eu já agora entendo,
a Morte cega, e o Caso duvidoso,
me fizeram de gostos haver medo.

Luís de Camões
Retrato de Luís de Camões na prisão de Goa (1556)
Mário Viegas e Camões:

domingo, 2 de junho de 2024

Saramago no Porto



O viajante está disposto a não andar de igreja em igreja como se de tal dependesse a salvação da sua alma. Irá a São Francisco, apesar das constantes queixas que vem fazendo contra a talha barroca, que o persegue desde que entrou em Portugal. Em São Francisco rematam-se todas as pontas da imensa cerzidura de ouro lavrado que se repete em receitas, em fórmulas, em cópias de cópias. O viajante não é autoridade, vê este esplendor, que não deixa um centímetro quadrado de pedra nua, aturde-se na magnificência do espectáculo, e acredita que esta seja a melhor talha dourada que no país há. Não se lembre se alguém o afirmou, mas está pronto a jurar: em verdade, quem entrar aqui não tem mais a fazer que render-se. Mas o viajante gostaria de saber um dia que paredes são as que a talha esconde, que pedra merecedora foi condenada à permanente cegueira.
Dá a sua volta, primeiro incomodado com o sadismo verista do altar dos Santos Mártires de Marrocos, depois distraído com as bifurcações genealógicas da Árvore de Jessé, escultura amaneirada e teatral, que faz pensar num coro de ópera. Um dos ascendentes de Cristo traja mesmo calções golpeados, é uma figura paçã do século XVII. E o viajante, olhando o patriarca Jessé adormecido, encontra naturalmente ali uma representação fálica, naquele tronco de árvore que do tronco lhe cresce, até Jesus Cristo, afinal sem mácula carnal nascido. Colocado no centro da igreja, o viajante sente-se esmagado, todo ouro do mundo lhe cai em cima.
Dali seguiu na direcção das ruas principais, mas por travessas e rampas desviadas. Afinal, o Porto, para verdadeiramente honrar o nome que tem, é primeiro que tudo, este largo regaço aberto para o rio, mas que só do rio se vê, ou então, por estreitas bocas fechadas por muretes, pode o viajante debruçar-se para o ar livre e ter a ilusão de que todo o Porto é Ribeira.

José Saramago

terça-feira, 28 de maio de 2024

O Porto de Sophia

Nasci no Porto. A cidade, os seus arredores, as praias próximas, descendo para o Sul, permanecem para mim a pátria dentro da pátria, a Terra materna, o lugar primordial que me funda.

Ali estão as tílias enormes, as manhãs de nevoeiro, as praias saturadas de maresia, os rochedos cobertos de algas e anémonas, as Primaveras botticellianas, os plátanos, a cerejeira, as camélias.

Ali o rio, as casas em cascata, os barcos deslizando rente à rua nas tardes cor de frio do Inverno.

Ali o cais, a Ribeira, os rostos, as vozes, os gritos, os gestos.

Uma beleza funda, grave, rude e rouca. Escadas, arcadas, ruelas abrindo para o labirinto do fundo do mar da cidade. E, aqui e além, um rosto emergindo do fundo do mar da vida.

Porque ali é a cidade onde pela primeira vez encontrei os rostos de silêncio e de paciência cuja interrogação permanece.

Porque ali é o lugar onde para mim começam todos os maravilhamentos e todas as angústias.

Cidade onde sonhei as cidades distantes, cidade que habitei e percorri na ilimitada disponibilidade interior da adolescência.

Descia pelo Campo Alegre, passava a Igreja de Lordelo, seguia entre muros de jardins fechados.

Através das grades de ferro dos portões viam-se rododendros, buxos, cameleiras.

Depois surgia um rio e ao longo do rio eu caminhava sobre os cais de pedra, até à barra, até aos rochedos onde se espraiam as ondas.

Histórias de naufrágios, de barcos perdidos, de navios encalhados. Por isso nas noites de temporal se rezava pelos pescadores. Ouvia-se ao longe o tumulto do mar onde navegavam os pequenos barcos da Aguda tentando chegar à praia. Quando a trovoada estava próxima, a luz apagava-se. Então se acendiam velas e se rezava a Magnífica. […]

Porque nasci no Porto sei o nome das flores e das árvores e não escapo a um certo bairrismo. Mas escapei ao provincianismo da capital.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Foto da casa Andresen

https://www.youtube.com/watch?v=Op2klbYYLIk



A velha e livre cidade do Porto

A velha e livre cidade do Porto, onde há pouco tempo ainda só se podia entrar a tremer sobre pontes, com licença paga, por um túnel, ou revistado de cima a baixo e cujos forais não permitiam a fidalgo, nem poderoso, nem abade bento, o poisar nela mais que três dias, é muito velha no meu sangue e na minha consciência. 
A grande pedra de ara da minha meninice, o Marão, dividia o mundo em dois. E na metade que se não via ficava esse Porto só adivinhado, mas donde vinha já, positivo e genuíno, o que ele tinha de seu: a sólida alimentação do corpo, conquistada a mortificação, e o fermento para levedar um pão mais alto.
Com os anos, essa primeira descoberta alargou-se. E um Porto já de carne e osso, complexo como todas as realidades, entrou-me na candura dos dez anos. Em Cedofeita, a continuar a cavadela deixada em meio pelos que me deram à vida, e na Sé, a olhar pasmado aquelas pedras lavradas, o negativo e o positivo harmonizaram-se na mesma visão reveladora. O Porto real e maravilhoso era uma soma de trabalho e sonho. Trabalho duro, contínuo, com lágrimas amargas a refrescá-lo, e dias santos de libertação, com licença de fuga para as alamedas do intemporal.
Foi muito tempo depois, já quando a triste sabedoria dos anos me explicara as coisas mais pelo íntimo, que voltei a ver a velha cidade. Regressava eu de longes terras, seco dos Cearás da emigração, e punha em todas as lembranças a saudade quente que nelas deixa uma infância por acabar. O Porto era uma dessas recordações. E da trémula ponte D. Maria, suspenso do abismo fluvial e da minha emoção, verifiquei deslumbrado, que estava diante do mesmo Porto de sempre, espraiado na sua encosta, firme, amplo, de boas cores camoesas, humoso e desgraçado na Ribeira, espirital e feliz nos cumes das torres.
É uma admirável certeza esta que os anos nos dão de que a tendência de tudo é para o equilíbrio. O Porto, em muitos aspectos da sua vida, tem sabido encontrar esse equilíbrio. Por isso mesmo, quando tropeço num descrente da sua grandeza e da sua pureza, digo:
- Se as grandes inquietações sociais bateram a esta porta e entraram, se foi aqui dentro que estiveram cercadas as liberdades e romperam o cerco, se a junta da Patuleia se instalou nestas ruas, se o Trinta e Um de Janeiro explodiu na sua alma, se, enquanto se queimava o semelhante a torto e a direito em Lisboa, no Porto houve apenas um auto de fé, e se foi do seu coração que se ergueu a primeira voz contra a pena de morte em Portugal, - haja confiança! As ilhas, a miséria e o resto só duram enquanto um exame de consciência profundo não se faz.
E, sobretudo, que o Porto mantenha inteira, lusitana e pagã, a báquica festa de S. João!

Miguel Torga
Gravura de Roque Gameiro alusiva à revolta Maria da Fonte/Patuleia



Hino Maria da Fonte
Baqueou a tirania
Nobre povo, és vencedor,
Generoso, ousado e livre,
Demos glória ao teu valor.

Refrão:
Eia avante, Portugueses!
Eia avante, não temer!
Pela santa Liberdade,
Triunfar ou perecer!

Algemada era a Nação,
Mas é livre ainda uma vez;
Ora, e sempre, é caro à Pátria
O heroísmo Português.

Lá raiou a Liberdade
Que a Nação há-de aditar!
Glória ao Minho que primeiro
O seu grito fez soar!

Segue, ó Povo, o belo exemplo
De tamanha heroicidade:
Nunca mais deixes tiranos
Ameaçar a Liberdade.

Fugi déspotas! Fugi,
Vis algozes da Nação!
Livre, a Pátria vos repulsa,
Terminou a escravidão!

Letra composta por Paulo Midosi, 1846