domingo, 29 de dezembro de 2013
Auto da Fé
Benito Ella es noche d´alegría;
ninguno está aqui soñoliento.
Fé É noite do nascimento,
em que Deus mostrou seu dia.
É noite de grã memória,
noite em dia convertida,
escuridão consumida
com grã resplendor de glória:
no meio mais luminosa
que no mundo nunca viste,
e de escura, fria e triste,
a mais doce e gloriosa.
Oh, noite favorecida
de memorável coroa,
vista de Deus em pessoa,
começando humana vida!
dos anjos toda cercada,
dos elementos servida,
do Padre e Filho escolhida,
do Espírito Santo expirada!
Brás: Que ño os entiendo, ño,
ñi sé que cosas habláis,
si más no lo aclaráis.
Como estava me estó.
Fé: Haveis de crer firmemente
tudo quanto vos disser
os que salvos quereis ser
naquesta vida presente:
crede o santo nascimento,
ser Deus de Virgem nascido,
Verbo de Deus concebido
pera Novo Testamento
E que a Virgem glotiosa
ficou tal como nasceu;
e sem dor apareceu
a nossa flor preciosa.
Deus em toda perfeição,
homem pera padecer,
e tirar a Lúcifer
toda sua jurdição.
Gil Vicente
http://www.youtube.com/watch?v=k1iURdc181A
domingo, 22 de dezembro de 2013
O menino no sapatinho
Era uma vez o menino pequenito, tão minimozito que todos seus dedos eram mindinhos. Dito assim, fino modo, ele, quando nasceu, nem foi dado à luz mas a uma simples fresta de claridade.
De tão miserenta, a mãe se alegrou com o destamanho do rebento - assim pediria apenas os menores alimentos. A mulher, em si, deu graças: que é bom a criança nascer assim desprovida de peso que é para não chamar os maus espíritos. E suspirava, enquanto contemplava a diminuta criatura. Olhar de mãe, quem mais pode apagar as feiuras e defeitos nos viventes?
Ao menino nem se lhe ouvia o choro. Sabia-se de sua tristeza pelas lágrimas. Mas estas, de tão leves, nem lhe desciam pelo rosto. As lagriminhas subiam pelo ar e vogavam suspensas. Depois, se fixavam no teto e ali se grutavam, missangas tremeluzentes.
Pois, aconteceu o seguinte: dadas as dimensões de sua vida e não havendo berço à medida, a mãe colocou o menininho num sapato. E cujo era o esquerdo do único par, o do marido.
Até que o ano findou, esgotada a última folha do calendário. Vinda da igreja, a mãe descobriu-se do véu e anunciou que iria compor a árvore de Natal. Sem despesa nem sobrepeso.
Tirou à lenha um tosco arbusto.
Os enfeites eram tampinhas de cerveja, sobras da bebedeira do homem. Junto à árvore ela rezou com devoção de Eva antes de haver a macieira. Pediu a Deus que fosse dada ao seu menino o tamanho que lhe era devido. Só isso, mais nada. Talvez, depois, um adequado berço. Ou quem sabe, um calçado novo para o seu homem. Que aquele sapato já espreitava pelo umbigo, o buraco na frente autorizando o frio.
Na sagrada antenoite, a mulher fez como aprendera dos brancos: deixou o sapatinho na árvore para uma qualquer improbabilíssima oferta que lhe miraculasse o lar.
Acordou cedo e foi direta ao arbusto de Natal. Dentro do sapato, porém, só o vago vazio, a redonda concavidade do nada. O filho desaparecera? Não para os olhos da mãe. Que ele tinha sido levado por Jesus, rumo aos céus, onde há um mundo apto para crianças. Descida em seus joelhos, agradeceu a bondade divina.
De relance, ainda notou que lá no teto já não brilhavam as lágrimas do seu menino. Mas ela desviou o olhar, que essa é a competência de mãe: o não enxergar nunca a curva onde o escuro faz extinguir o mundo.
Mia Couto
http://www.youtube.com/watch?v=D_naXf_c6As
domingo, 15 de dezembro de 2013
Sermão do Bom Ladrão
O ladrão que furta para comer, não vai nem leva ao Inferno; os que não só vão, mas levam (de que eu trato) são outros ladrões de maior calibre e de mais alta esfera, os quais, debaixo do mesmo nome e do mesmo predicamento, distingue muito bem S. Basílio Magno. Não são só ladrões, diz o Santo, os que cortam bolsas, ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa; os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título, são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades; os quais, já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. Os outros ladrões roubam um homem; estes roubam cidades e reinos. Os outros furtam debaixo do seu risco; estes, sem temor nem perigo. Os outros, se furtaram, são enforcados; estes furtam, e enforcam. Quantas vezes se viu em Roma ir a enforcar um ladrão, por ter furtado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em trinfo um cônsul ou ditador, por ter roubado uma província! E quantos ladrões teriam enforcado estes mesmos ladrões triunfantes?
P. António Vieira
http://www.youtube.com/watch?v=5NX32PqN9QY
http://www.youtube.com/watch?v=5NX32PqN9QY
domingo, 8 de dezembro de 2013
Divergências profundas
Na acção governamental as dissenções são perpétuas. Assim o partido histórico propõe um imposto. Porque, não há remédio, é necessário pagar a religião, o exército, a centralização, a lista civil, a diplomacia... - Propõe um imposto.
"Caminhamos para a ruína - exclama o Presidente do Conselho. - O défice cresce! O país está pobre! A única maneira de nos salvarmos é o imposto que temos a honra, etc..."
Mas então o partido regenerador, que está na oposição, brame de desespero, reúne o seu centro. As faces luzem de suor, os cabelos pintados destingem-se de agonia, e cada um alarga o colarinho na atitude de um homem que vê desmoronar-se a Pátria!
- Como assim! - exclamam todos. - Mais impostos!?
E então contra o imposto escrevem-se artigos, elaboram-se discursos, tramam-se votações! Por toda a Lisboa rodam carruagens de aluguel, levando, a 300 réis por corrida, inimigos do imposto! Prepara-se o cheque ao ministério histórico... Zás! Cai o ministério histórico!
E ao outro dia, o partido regenerador, no poder, triunfante, ocupa as cadeiras de S. Bento. Esta mudança alterou tudo: os fundos desceram mais, as transacções diminuíram mais, a opinião descreu mais, a moralidade pública abateu mais - mas finalmente caiu aquele ministério desorganizador que concebera o imposto, e está tudo confiado, esperando.
Abre a sessão parlamentar. O novo ministério regenerador vai falar.
- Tem a palavra o Sr. Presidente do Conselho.
- O novo presidente: " Um ministério nefasto (apoiado, apoiado! - exclama a maioria histórica da véspera) caiu perante a reprovação do País inteiro. Porque, Senhor Presidente o País está desorganizado, é necessário restaurar o crédito. É a única maneira de nos salvarmos..."
Murmúrios. Vozes: Ouçam! Ouçam!
"... É por isso que eu peço que entre já em discussão... (atenção ávida que faz palpitar debaixo dos fraques o coração da maioria...) que entre em discussão - o imposto que temos a honra, etc. (apoiado, apoiado!)"
Não, não! Com divergências tão profundas é impossível a conciliação dos partidos!
Eça de Queiroz
http://www.youtube.com/watch?v=_LUJVOJMRr0
domingo, 1 de dezembro de 2013
Heróis do Mar
Coimbra, 31 de Outubro de 1993
Estamos irremediavelmente perdidos. E já ninguém o ignora e cala. É um clamor uníssono que vai do Minho ao Algarve. Um dobre a finados de uma pátria sem esperança, que o poder não ouve, ou finge não ouvir, a fazer-lhe discursos e a descerrar lápides, num desprezo olímpico pelo povo que em má hora o elegeu. Um povo que já foi senhor da sua vontade e dos seus actos, mas que muitos anos de obscurantismo, de inquisição e ditadura degradaram e perverteram, e agora, de novo tiranizado, insofrido e impotente, geme. Oiço esse gemido insistente e generalizado, e fico transido. Dói-me em todos os recessos da alma acabar os dias com ele a ressoar-me nos ouvidos atentos e solidários, confrangido de apenas poder registar o desalento de uma colectividade que se deixa sistematicamente iludir, e beija agradecida a mão de quem cinicamente, nas horas eleitorais, lhe promete o paraíso e argamassa sem pejo, em cada localidade a primeira pedra de uma escola, centro de cultura ou saúde, que nunca serão realidade. E que, depois de ser mais uma vez ludibriada, barafusta, perde a cabeça, corta estradas e interrompe o trânsito, até que a bastonadas paternais, recolhe a casa pacificamente, numa indignação envergonhada e vencida.
Miguel Torga
http://www.youtube.com/watch?v=MMiBQENi6uo
http://www.youtube.com/watch?v=MMiBQENi6uo
domingo, 24 de novembro de 2013
Avó Ménha
Os anos da Avó Ménha eram uma festa. Lá se encontravam, para além dos bolos e das sandes e das gasosas, uns cheiros estranhíssimos e apelativos. Ela morava na parte lateral de uma enorme oficina; mas não era nesta que residia a origem dos cheiros. Era entre ela, a casa e a neta. Esta trilogia cheirante haveria de representar para toda a família um eterno mistério olfactivo.
A maior curiosidade da trilogia era o contraste evidente que entre elas havia. Ainda olfactivamente falando. Ao passo que a casa transpirava tempo e mofo, a Anika - neta da Avó Ménha, emanava uma intensa juventude, representada e muito bem representada no reino do olfacto pela sua catinga penetrante, perigosa, pontiaguda mesmo. O último elemento tríptico, sem dúvida o principal, era a rija Avó Ménha que numa mistura mais que mística reunia nela e na sua aura todo um mundo de cheiros deste e do outro mundo. Os seus cheiros deste mundo eram de certa maneira decifráveis e nessa mistura, mesmo para um nariz infantil ou amador, era possível reconhecer o cheiro de muitos temperos acumulados, cheiros de caminhadas longas a pé, cheiro do tempo, de solidão e da dor dos que lhe tinham morrido. Os seus cheiros do outro mundo eram mais reservados, sendo-nos somente permitida uma pequena associaçãozinha: com a morte. No seu andar vagaroso, na sua boca bafienta, nos seus olhos de pele cansada, nos seus movimentos custosos e até nos calos salientes das suas mãos, a Avó Ménha transbordava cheiros do outro mundo.
domingo, 17 de novembro de 2013
Sol invernal
Sentado ao sol, num dia frio de inverno, o homem
espera que as nuvens cheguem. Com elas virão as notícias
do norte, o som de antigos vapores ao entrarem
na barra, o pregão dos ardinas a venderem os primeiros
jornais do dia, os gritos das criadas, no pátio,
enxotando as galinhas e os rapazes que as vinham
espreitar, a voz abafada das raparigas em lágrimas,
nas grades do confessionário, e os sinos que chamavam
à missa e traziam, atrás deles, o ladrar de cães vadios
em matilha no meio dos campos. Mas o sol que
aquece o dia de inverno parece afastar as nuvens;
os vapores afastaram-se no cais de uma ode
marítima; os jornais foram queimados por vagabundos
que precisavam de se aquecer; as criadas envelheceram,
e nos seus olhos secos pela idade morreu
o desejo dos rapazes; e a rapariga que saiu
do confessionário, secando as lágrimas, ainda
desfia as contas de um rosário há muito
perdido. E o homem, sentado ao sol,
num dia frio de inverno, pergunta em que campo
se perderam as matilhas de cães vadios, e tenta
ouvir, para lá dos prédios da cidade, os latidos
que se confundem com o toque dos sinos
que enche de nuvens o seu espírito.
Nuno Júdice
http://www.youtube.com/watch?v=Dxjpn39PXXY
domingo, 10 de novembro de 2013
Avó e Neto
Tinham ido à praia, porque estava uma manhã bonita. A avó vestia uma saia clara e levava o neto pela mão. Ia muito contente, e o seu coração cantava.
O neto levava um balde, porque se propunha apanhar conchas e búzios, como já fizera de outras vezes em que tinha ido à praia com a avó.
Ir à praia com a avó era uma das melhores coisas que lhe podiam acontecer nos dias livres. Por isso também ele ia contente, e o balde dançava-lhe na mão.
A praia estava como devia estar, com sol e ondas baixas. Quase não havia vento, e a água do mar não estava fria. Por isso o neto teve muito tempo de procurar conchas e búzios e de tomar banho no mar. A avó sentou-se num rochedo, e ficou a olhar para o neto, por detrás dos óculos. Nunca se cansava de olhá-lo porque o achava perfeito. Se pudesse mudar alguma coisa nele, não mudaria nada.
Estava uma manhã tão boa que também a avó tirou a blusa e a saia e ficou em fato-de-banho. Depois tirou os óculos, que deixou em cima de um rochedo, e entrou no mar, atrás do neto, que nadava à sua frente, muito melhor e mais depressa do que ela.
- Não te afastes, dizia a avó, um pouco ofegante. Volta para trás!
A avó tinha medo de muitas coisas: dos paus que podiam furar os olhos, das agulhas e alfinetes que se podiam engolir se se metessem na boca, das janelas abertas, de onde se podia cair, do mar onde as pessoas se podiam afogar. A avó via todas esses perigos e avisava. Ele ouvia, mas não ligava muito. Só o suficiente.
Não tinha medo de nada, mas, apesar disso, gostava de sentir o olhar da avó. De vez em quando voltava a cabeça, para ver se ela lá estava sentada, a olhar para ele. Depois esquecia-se dela e voltava a ser o rei do mundo.
Por isso se sentiam tão bem um com o outro.
Teolinda Gersão
http://www.youtube.com/watch?v=Z94aL-hrrYQ
Teolinda Gersão
http://www.youtube.com/watch?v=Z94aL-hrrYQ
domingo, 3 de novembro de 2013
Dois meninos
Meu menino canta, canta
Uma canção que só ele entende
E o faz sorrir.
Meu menino tem nos olhos os mistérios
Dum mundo que ele vê e que eu não vejo
Mas de que tenho saudades infinitas.
As cinco pedrinhas são mundos na mão.
Formigas que passam,
Se brinca no chão,
São seres irreais...
Meu menino d'olhos verdes como as águas
Não sabe falar,
Mas sabe fazer arabescos de sons
Que têm poesia.
Meu menino ama os cães,
Os gatos, as aves e os galos,
(São Francisco de Assis
Em menino pequeno)
E fica horas sem fim,
Enlevado, o olhá-los.
E ao vê-lo brincar, no chão sentadinho,
Eu tenho saudades, saudades, saudades
Dum outro menino...
Francisco Bugalho
http://www.youtube.com/watch?v=sWa8O3V8SgU
sábado, 26 de outubro de 2013
Poema enjoadinho
Melhor não tê-los!
Mas se não os temos
Como sabê-lo?
Se não os temos
Que de consulta
Quanto silêncio
Como os queremos!
Banho de mar
Diz que é um porrete...
Resultado: filho.
E então começa
A aporrinhação:
Cocô está branco
Cocô está preto
Bebe amoníaco
Comeu botão
Filhos? Filhos
Melhor não tê-los
Noites de insônia
Cãs prematuras
Prantos convulsos
Meu Deus, salvai-o!
Filhos são o demo
Melhor não tê-los...
Mas se não os temos
Como sabê-lo?
Como saber
Que macieza
Nos seus cabelos
Que cheiro morno
Na sua carne
Que gosto doce
Na sua boca!
Chupam gilete
Bebem shampô
Ateiam fogo
No quarteirão
Porém, que coisa
Que coisa louca
Que coisa linda
Que os filhos são!
Vinicius de Moraes
http://www.youtube.com/watch?v=5f-T3oUtSHI
http://www.youtube.com/watch?v=5f-T3oUtSHI
domingo, 20 de outubro de 2013
Estou vivo e escrevo sol
Eu escrevo versos ao meio dia
e a morte ao sol é uma cabeleira
que passa em frios frescos sobre a minha cara de vivo
Estou vivo e escrevo sol.
Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam
no vazio fresco
é porque aboli todas as mentiras
e não sou mais que este momento puro
a coincidência perfeita
no acto de escrever e sol
A vertigem única da verdade em riste
a nulidade de todas as próximas paragens
navego para o cimo
tombo na claridade simples
e os objectos atiram suas faces
e na minha língua o sol trepida
Melhor que beber vinho é mais claro
ser no olhar o próprio olhar
a maravilha é este espaço aberto
a rua
um grito
a grande toalha do silêncio verde
António Ramos Rosa
http://www.youtube.com/watch?v=fFtGfyruroU
domingo, 13 de outubro de 2013
De que tristeza falam?
Ouço dizer que anda lá fora uma tristeza. Inclino-me à janela e não a vejo. Pergunto-me então: de que tristeza falam? "Da morte." Oh, sim , morre-se muito no Outono. É esse, aliás, o tempo natural. As árvores, por exemplo, cumprem sempre. Deitam ao chão as suas chaves de ouro e fecham-se por dentro, inacessíveis. Mas a que morte se referem? A que perda, a que grande vazio se referem?
Faço a minha vigília em solidão, sem perceber de que tristeza falam. E sobre que tristeza escrevem eles. Não conhecem os rios da Irlanda? Existem, na Irlanda, rios assim: seguem pelo seu curso e, de repente, desaparecem, deixam a paisagem. E, mais longe, aparecem outra vez. Entram na terra, continuam a fluir pelos túneis do subsolo, depois emergem. É um fenómeno próprio do que ali se chama karst, formações de calcário vulneráveis à corrosão das águas pluviais. Não é um plágio da eternidade, é simplesmente aquilo que permanece ainda quando deixa de ser visto. É isso que eles ensinam, esses rios. É isso o que, apesar de uma tristeza andar lá fora, como me dizem, leva a que não a compartilhe.
Quando vier a hora de chorar já eu não estarei viva há muito tempo. Só acontecerá quando as catástrofes eliminarem a humanidade e, com ela, as palavras e, com elas, o que o António escreveu. Esse caudal.
Comparam-no alguns a um menino autocentrado e pronto a fascinar-se. O que há nele, sobretudo, é uma nobre e sábia rebelião, a que não dobra ante a realidade e quer ver tudo e ligar tudo com os fios que a luz e a pressa ocultam aos comuns. Os fios que ele descobria entre as palavras.
http://www.youtube.com/watch?v=NCID3781Xcg
sábado, 5 de outubro de 2013
Incertezas ou Evidências
Ninguém me disse: Vai por este caminho de água
ou Segue esta vereda silenciosa
Eu vivia na obscuridade com uma lâmpada negra
e a tortura do infinito na minha cabeça esguia
Mas eu amava os muros com insectos e urtigas
e os campos de verdura leve e os límpidos regatos
era um homem da terra que queria pertencer à terra
e consagrá-la numa relação viva e fértil
Eu queria construir com a matéria espessa
um edifício solar com amplas vidraças
e um terraço aberto à dinâmica languidez do mar
Não sei se o que fiz tem a solidez flexível
de um corpo vegetal mas com extensas pedras
Os que o habitarem talvez se deslumbrem com as claras planícies
e amem a tranquilidade misteriosa dos vales escuros
Mas para mim não é mais que um amontoado de folhas
algumas verdes outras secas e todas o vento varrerá
António Ramos Rosa
http://www.youtube.com/watch?v=he-R7b-15e0
domingo, 29 de setembro de 2013
António Ramos Rosa
Conversa pós-prandial com o Ramos Rosa num café. Que personagem este grande poeta. Claude Roy disse dele, salvo erro, que lembrava um Quixote surrado. Enganou-se de mundo, anda aqui por se ter distraído. Porque ele nasceu para viver noutro lado onde não haja regras de trânsito, de disciplina, de subsistência. De modo que faz um esforço enorme para se acomodar. Um grande achado para ele foram as práticas do ioga ou coisa que o valha. O mundo em que circula desarranja-lhe os mecanismos interiores. E toda a sua preocupação é consertá-los. Mas ele a compor e a realidade a estragar. Quando julga que venceu, fica radiante. Dias depois volta à oficina com o psíquico esmurrado. Não chegará nunca a tirar carta de condução no mundo. Hoje trazia outra descoberta: mastigar interminavelmente um pedaço de alimento até sentir vómitos. Isso lhe afinaria o sabor para recuperar um paladar originário. E ria. Estava feliz. Nós alimentamo-nos tão estupidamente, com um paladar tão encortiçado. Ele quer restaurar cá o sabor que deve haver talvez do lado de lá. Encantado com a descoberta. E eu com o encantamento dele. Adorável poeta. Extraordinário poeta.
Vergílio Ferreira
http://www.youtube.com/watch?v=xk3KMv7F-N0
sábado, 21 de setembro de 2013
A concha
A minha casa é concha. Como os bichos
Segreguei-a de mim com paciência:
Fachada de marés, a sonho e lixos,
O horto e os muros só areia e ausência.
Minha casa sou e os meus caprichos,
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda, vence-a
O sal que os santos esboroou nos nichos.
E telhados de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!
Lareira aberta ao vento, as salas frias.
A minha casa....Mas é outra história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.
Vitorino Nemésio
http://www.youtube.com/watch?v=VPZF2Mrc4OM
domingo, 15 de setembro de 2013
Nasjonalgalleriet
Acerca da solidão não se enganaram
os jovens Mestres (quão bem entenderam a
condição humana) como está presente
enquanto outros festejam ou se abraçam ou simplesmente
conversam
entre si. Como (ante
a solidão) deve sempre haver alguém
que não queria especialmente que acontecesse.
Nunca esqueceram que a mais terrível solidão
tem uma geografia (o quarto abandonado
onde conversa sozinha ou isolada de tantos
no imo da multidão).
No Grito de Munch por exemplo:
a ponte é oblíqua como o medo. Os dois
amigos até podem não ter escutado o grito
mas tal não é determinante -
o céu em tumulto assistiu à angústia
da boca aberta (as
mãos cerrando os ouvidos ao grito essencial) e
sob o fiorde azul deu-se algo de extraordinário:
o grito chegou a acender-se mas
não se desfez em som.
João Luís Barreto Guimarães
http://www.youtube.com/watch?v=QnoGHHm_gTA
sábado, 7 de setembro de 2013
Castelo da Lousã
Este castelo é um castelinho, e faria muito mal quem o tivesse feito maior. Ocupa, e apenas em parte, o espinhaço de um monte que é, insolitamente, o mais baixo da vizinhança. Quem diz castelo, pensa altura, domínio de quem está de cima, mas aqui tem de pensar outras coisas. Pensará, sem dúvida, que o castelo de Lousã é, paisagisticamente, das mais belas coisas que em Portugal se encontram. A sua própria situação, no centro duma roda de montes que o excedem em porte, torna, por um paradoxo aparente, mais impressiva a sensação da altura. É justamente a proximidade das encostas fronteiras que dá ao viajante uma impressão quase angustiante de equilíbrio precário quando entra no castelo e vai à torre. Já sentira o mesmo quando se aventurou até ao fim do espinhaço e ouviu do fundíssimo vale o estrondo das águas invisíveis do rio que ali passa, apertado entre as paredes da rocha. O dia está ventoso, toda a ramaria em redor se agita, e o viajante não se sente muito seguro em cima da torre cilíndrica a que conseguiu chegar. Está nisto, nesta romântica situação de desafiador de ventos e tempestades, quando subitamente lhe acode a ideia maravilhosa: neste lugar, neste castelo familiar, no centro deste círculo de montes que ameaçam avançar um dia, é que Hamlet viveu e se atormentou, foi debruçado para o rio que fez a sua irrespondível pergunta, e, se nada disto aqui aconteceu, ao menos o viajante acredita que nenhum lugar existe no mundo com mais adequado cenário para uma representação skakespeariana, das que metem castigos, vaticínios funestos e grandeza. É uma cenografia natural que não precisa de retoques, e em tenebrismo dramático nada poderia ser mais impressionante. Construído de xisto, o castelo da Lousã resiste mal ao martelar alternante do sol, da chuva, das geadas, do vento, ou então é o viajante que isso teme por ver como se estão esboroando, nos sítios mais expostos, os muros restaurados. Tem porém o xisto uma coisa boa: cai uma lasca, facilmente, se põe outra.
José Saramago
http://www.youtube.com/watch?v=5B4Lw58Tx-o
http://www.youtube.com/watch?v=5B4Lw58Tx-o
segunda-feira, 26 de agosto de 2013
Ria Formosa
O Verão é um lugar do espírito para onde as quatro estações do ano se encaminham sem cessar. Nesse lugar que fica fora do calendário, esperamos pelo rumor de um outro espaço que esteja fora do tempo. Assim sendo, quem conta como se passou o momento mais próximo do desejo de Verão, que vai na nossa alma? Quem quer contar? Estamos na varanda do Hotel Faro, e já agora eu posso dar início à embaraçosa conversa, não tenho nada a perder.
O meu dia de Verão mais próximo desse momento revelador poderia ser outro, mas diante da ria Formosa, escondida no escuro da noite, só pode ser aquele em que subi a um cataramã com 12 pessoas, e fomos de esteiro em esteiro, e de sapal em sapal, até atingirmos a ilha do Farol. Assim, invoquei o melhor que pude o voo das aves, o cheiro a lodo, o borbulhar das espécies bivalves, e, depois de me desembaraçar desse campo de fertilidade, ataquei a descrição da Deserta, quando o Estaminé ainda estava em construção, e já então parecia o cenário ideal onde rodar um filme que se chamasse "Destino".
Mas outras narrativas iriam ser diferentes. Até que certa pessoa se levantou no meio da varanda e disse que o seu momento precioso tinha ocorrido em Veneza. Fora durante um simpósio sobre os espaços húmidos da Terra, a maternidade das espécies. O especialista disse que havia sido o Verão mais feliz da sua vida porque tinha defendido que certas formações lacustres, como a ria Formosa, deveriam ser vedadas à espécie humana e um terço dos seus colegas havia-o compreendido. Pois que direito tinham as pessoas de estragar o ambiente dos pássaros? Que direito temos de destruir o cavalo-marinho, o pobre dizimado? Aquele que deveria ser para Portugal o que a flor Edelweiss é para os Alpes? Que direito o de impedir a oxigenação das águas pela atracagem dos barcos, que direito o de conspurcarmos o seu habitat? Que direito teríamos nós de entrar na maternidade das espécies para destruirmos os seus úteros e os seus berços? Disse que, se acaso Cousteau regressasse às pradarias aquáticas da ria, não as reconheceria. Pensaria que uma guerra cósmica havia acontecido no fundo dos lagos.
Fez-se um enorme silêncio. Era de noite, a hora da verdade. Não acredito que tenhamos nascido unidos para viver separados. Em vez de me proibirem o acesso, expliquem-me como e por onde entrar.
Mas outras narrativas iriam ser diferentes. Até que certa pessoa se levantou no meio da varanda e disse que o seu momento precioso tinha ocorrido em Veneza. Fora durante um simpósio sobre os espaços húmidos da Terra, a maternidade das espécies. O especialista disse que havia sido o Verão mais feliz da sua vida porque tinha defendido que certas formações lacustres, como a ria Formosa, deveriam ser vedadas à espécie humana e um terço dos seus colegas havia-o compreendido. Pois que direito tinham as pessoas de estragar o ambiente dos pássaros? Que direito temos de destruir o cavalo-marinho, o pobre dizimado? Aquele que deveria ser para Portugal o que a flor Edelweiss é para os Alpes? Que direito o de impedir a oxigenação das águas pela atracagem dos barcos, que direito o de conspurcarmos o seu habitat? Que direito teríamos nós de entrar na maternidade das espécies para destruirmos os seus úteros e os seus berços? Disse que, se acaso Cousteau regressasse às pradarias aquáticas da ria, não as reconheceria. Pensaria que uma guerra cósmica havia acontecido no fundo dos lagos.
Fez-se um enorme silêncio. Era de noite, a hora da verdade. Não acredito que tenhamos nascido unidos para viver separados. Em vez de me proibirem o acesso, expliquem-me como e por onde entrar.
Lídia Jorge (texto com supressões)
http://www.youtube.com/watch?v=dnCC0dMNUvE
http://www.youtube.com/watch?v=dnCC0dMNUvE
domingo, 18 de agosto de 2013
Encontro com um Deus instântaneo
Chovia docemente sobre a erva brava coberta de papoilas. Era o fim de uma trovoada de Maio sobre aquela relva dourada, coberta de papoilas, onde em tempos idos se ergueram as ruínas da Comuna.
Mas o que Sálvio procurava na fibrilação da relva não eram esses idos heróicos mas o rosto de Deus.
Em vão buscara de noite tantas vezes, entre o sonho e a vigília, que ele lhe desse um sinal da sua presença.
Talvez não tivesse forma concreta nem voz audível.
Talvez vagasse no céu nuvioso entre a luz e a sombra.
E eis que, de repente, a folhagem das árvores começou a abanar, um vento inconcreto sacudiu a terra e sobre a pávida planície desceu um vulto gigantesco, sem forma definida, e Sálvio ouviu - ou teria enlouquecido? - um terrível grito:
- Sentes-me agora dentro de ti?
Sálvio nada sentiu senão medo, os seus dentes castanholando.
O Senhor Deus, ou o que quer que fosse, riu com estrépito e, tal como surgira, inopinadamente, desapareceu, num estrondo arrepiante.
E Sálvio descansou.
Urbano Tavares Rodrigues
http://www.youtube.com/watch?v=YEdehAN2l2E
sábado, 10 de agosto de 2013
Pequena Artista
Vinte e um meses incompletos
As habilidades sucedem-se
Naturalmente:
andar à roda, de joelhos,
em bicos dos pés ou de pernas afastadas,
fazer a ponte ou dar cambalhotas.
Danças de braços no ar
Baloiçando-te ao ritmo da música
com verdadeiro prazer.
Cantas, ou melhor, dás concertos de jazz
Interpretando a canção do bebé
ou da mamã e do papá
com voz tão doce e envolvente.
Mas o máximo foi quando
pegaste num livro e começaste a ler
alto e com entoação perfeita:
bebubibobubububibibibi.
HN
http://www.youtube.com/watch?v=PslouhmA1CE
domingo, 4 de agosto de 2013
Poesia
Ai deixa, deixa lá que a Poesia
no perfume das flores, no quebrar
das ondas pela praia,
na alegria
das crianças que riem sem porquê
- deixa lá que se exprima, a Poesia.
Fica sentado aí onde estás, Poeta,
e não mexas os lábios nem os braços:
deixa-a viver em si;
não tentes segurá-la nos teus braços,
não pretendas vesti-la com palavras.
Se a queres ter,
se a queres sempre ver pairando à flor das coisas, fica aí
no teu cantinho, e nem respires, Poeta, e não te bulas,
para que ela não dê por ti.
Não a faças fugir, toda assustada
com a tua presença...
Deixa-a, nua, pairando à flor das coisas,
que ela não sabe que a viste,
nem sabe que está nua,
nem sequer sabe que existe...
Sebastião da Gama
http://www.youtube.com/watch?v=4240QMQ1jhU
sábado, 27 de julho de 2013
Servidões
até cada objecto se encher de luz e ser apanhado
por todos os lados hábeis, e ser ímpar,
ser escolhido,
e lampejando do ar à volta,
na ordem do mundo aquela fracção real dos dedos juntos
como para escrever cada palavra:
pegar ao alto numa coisa em estado de milagre: seja:
um copo de água,
tudo pronto para que a luz estremeça:
o terror da beleza, isso, o terror da beleza delicadíssima
tão súbito e implacável na vida administrativa
Herberto Helder
http://www.youtube.com/watch?v=vid5ye_wPwk
sábado, 20 de julho de 2013
O poder de mentir
Que orgulho: o meu neto Antoninho, com pouco mais de dois anos no mercado, já sabe mentir. Não para fugir ou para escapar às consequências do que disse ou do que fez, mas para encantar e comover, fazer rir e manipular.
A mãe e vítima dele, a minha filha Tristana, sendo mestra de cinto negro dessas artes, contou-me a artimanha do Antoninho com o brilho vaidoso de quem ama tanto que gosta de se deixar enganar.
Que esquema arranjou esse aprendiz de feiticeiro - imperador absoluto de todos quantos têm a sorte de se aproximarem dele - para manipular tão bem que toma conta dele?
A mãe indo buscá-lo à escola depois do trabalho dela, perguntou como ele tinha passado. O Antoninho, que está muito bem na escolinha onde está, respondeu, humorística e sadicamente : "Cho'ei".
Mas, quando a mãe, muito culpabilizada e comovida, por ter estado tantas horas longe do filhote, finalmente perguntou ao Antoninho "se estava a dizer que chorou só para a mãe sentir-se mais culpada", o Antoninho explodiu de alegria.
O Antoninho desatou a rir, com amor, como quem admira a sua própria pessoa, enquanto ama ainda mais quem enganou.
Aposto que, a primeira vez, o Antoninho chorou mesmo. Mas quando disse que chorou ("cho'ei"), aprendeu que falar é mais poderoso que chorar.
http://www.youtube.com/watch?v=jWWOMrrtNfw
terça-feira, 16 de julho de 2013
Tempo
foram passando os anos
Simulando vagares de eternidade
a burilar os sonhos
que sonhamos e a acrescentar
saudades à saudade
Num sobressalto
fomos tomando o gosto
Às infiéis constelações
das nossas rimas
no rasto de anjos e paixões
feitas de fulgores e neblinas
Num alvoroço
foi-se ganhando o tempo
Tecendo o poeta verso a verso
o corpo da poesia acalentada
no excesso e no gosto do colher
sedento a seduzir cada palavra
Num tumulto
fomos iludindo o nada
Na partilha astuciosa do prazer
numa grande vontade adivinhada
escrever com a língua portuguesa
dizendo do país Poema e asa
Maria Teresa Horta
http://www.youtube.com/watch?v=SkwBEpSfuYg
http://www.youtube.com/watch?v=SkwBEpSfuYg
segunda-feira, 8 de julho de 2013
Pintar com palavras
Começa AQUI. Um castanho muito escuro para o Outono. Juntar branco. Pouco a pouco distingue-se uma casa. Os contornos são agora mais nítidos. De repente surge um duende que atravessa o quadro a correr e escapa-se lá para cima para a...
mi
...cha né. Amarelo. Vem aí gente. Depressa, vermelho, por favor. É melhor sair e ir lá para baixo, ao fundo...
...Pinceladas leves de azul. Ar. Mar. Com algumas nuvens. Ao longe é quase tudo azul, calmo, sereno. Pode ser manhã. Pedacinhos de azul esvoaçam. Um bocado ficou aqui.
HN
Exposição de Graça Morais em Aveiro, 2003
http://www.youtube.com/watch?v=yZv5mXazJTw
domingo, 30 de junho de 2013
Os justos
o tempo que se inclina para o lado partido
as escassas laranjas que se tornam
amarelas no meio da palha
as talhas sem vinho
Olham por dentro a brancura da manhã
e em tudo quanto auxilia um homem no seu ofício
louvam o vulnerável e o inacabado
Estão sentados à soleira dos espaços
trabalhados devagar pelo silêncio
Quando Deus voltar
não terá de arrombar todas as portas
José Tolentino Mendonça
http://www.youtube.com/watch?v=xF9SltYJAT8
http://www.youtube.com/watch?v=xF9SltYJAT8
domingo, 23 de junho de 2013
A casa da minha infância
A casa da minha infância é muito longe de Lisboa, entre pinhais, castanheiros, a vinha, montes ao longe. E amoras, veredas de amoras. Em toda a vida nunca fui tão feliz como ali. Podia correr-se nas ruas
(ruas?)
andar de carroça, brincar nas esquinas, sentarmo-nos numa pedra, durante muito tempo, a ver os lagartos, as abelhas, a bicharada toda. Apanhar calhaus de mica, cheios de brilho. E escutar os ramos da trepadeira à noite, contra os vidros do janelico. Onde estão as pessoas desse tempo, onde está o eu desse tempo? A mercearia não era mercearia, era loja de quase tudo, semana sim semana não havia feira, ciganos, ourives, leitões, barros, barros, barros. Bicicletas tão velhas! Manchas de sol no chão! Chamavam-me
- Tóino
não me chamavam
- António
e que é do Tóino, meu Deus? Está a partir pinhões, batendo-os com um pedaço de granito contra um pedaço de granito. Está a comer castanhas verdes e a ficar mal da barriga. Está a ouvir o sino da igreja, aos domingos, e o som das moedas do ofertório a caírem na caixa de lata. Estão a dar-lhe banho na selha. Está a ver os comboios lá em baixo, pelo meio das árvores fora. Está a espreitar as pessoas na taberna, sempre escura, cheia de moscas. Quase tantas como no curral da burra.
Infância, ainda sinto o teu mistério, as descobertas diárias, o teu murmúrio no meu sangue. Ainda me acompanhas com, nos intervalos da alegria, tristezas inexplicáveis que passavam depressa, perplexidades inexplicáveis que passavam depressa, angústias inexplicáveis que passavam depressa. Saudades disso, também e, de repente, o maravilhamento de novo. Paixões por meninas entrevistas, um par de tranças sem cara, um sorriso que se me não dirigia, e ainda bem porque, no caso de se me dirigir, não saberia o que fazer com ele. Isto vai tudo mal redigido mas pouco me importa. Importa-me a casa da minha infância muito longe de Lisboa, para mim, em criança, no outro lado do mundo, entre pinhais, castanheiros, a vinha, montes ao longe. E as amoras, claro, as amoras. A conversa das pessoas crescidas, à noite, no andar de cima, conversas, risos, passos no corredor e a trepadeira no postigo sempre, a trepadeira no postigo.
António Lobo Antunes
http://www.youtube.com/watch?v=yxU7mYeF1w8
http://www.youtube.com/watch?v=yxU7mYeF1w8
segunda-feira, 17 de junho de 2013
Alentejo
Há quem se canse de percorrer as estradas intermináveis e lisas desse latifúndio sem relevos. Há quem adormeça de tédio a olhar a uniformidade da sua paisagem, que no inverno se veste dum pelico castanho e no verão duma croça madura. Que é parda mesmo quando o trigo desponta e loura mesmo quando o ceifaram. Queixam-se da melancolia dos estevais negros e peganhosos, que meditam a sua corola branca um ano inteiro, da semelhança aflitiva das azinheiras, que parecem medidas pelo mesmo estalão, e não distinguem nos rebanhos que encontram, quer de ovelhas, quer de porcos, as particularidades que individualizam todo o ser vivo. Afeitos à variedade do Norte, que até aos bichos domésticos consente cara própria e personalidade, aflige-os a constante do Sul, que obriga todo o circunstancial a ocupar o seu lugar de zero diante do infinito. Perdidos e sós no grande descampado, sentem-se desamparados e vulneráveis como crianças. Amedronta-os a solidão de uma natureza que não se esconde por detrás de nenhum acidente, corajosa da sua nudez limpa e total.
Eu, porém, não navego nas águas desses desiludidos. A percorrer o Alentejo, nem me fatigo, nem cabeceio de sono, nem me torno hipocondríaco. Cruzo a região de lés a lés, num deslumbramento de revelação. Tenho sempre onde consolar os sentidos, mesmo sem recorrer aos lugares selectos dos guias. Embriago-me na pura charneca rasa, encontrando encantos particulares nessa pseudo-monotonia rica de segredos. Nada me emociona tanto como um oceano de terra estreme, austero e viril. A palmilhar aqueles montados desmedidos, sinto-me mais perto de Portugal do que no castelo de Guimarães. Tenho a sensação de conquistar a pátria de novo e de a merecer. O chão das outras províncias já se não vê, ou porque vive coberto pela verdura doméstica de oito séculos, ou porque a erosão levou toda a carne do corpo e deixou apenas os ossos. Mas a terra alentejana pode contemplar-se ainda no estado original, virgem, exposta e aberta. E é nela que encho a alma e afundo os pés, num encontro da raiz com o húmus da origem. Abraço numa ternura primária as léguas e léguas duma argila que permanece disponível mesmo quando tudo parece semeado. O corpo, ali, pode ainda tocar o barro de que Deus o criou.
Miguel Torga
http://www.youtube.com/watch?v=MQRJKSCnH0o
Miguel Torga
http://www.youtube.com/watch?v=MQRJKSCnH0o
domingo, 9 de junho de 2013
As visitas
Caem co'a calma as aves intermináveis do passado,
os tentilhões, as poupas, os noitibós,
crianças cegas e desamparadas
também elas, agora que se perderam de nós.
Anjos sonâmbulos pousados no telhado
das noites de insónia (espécie de curvatura
da insónia para dentro de si
sobre paisagens desabitadas).
Onde se refugiará de dia
a sua alada materialidade,
em que desvãos da realidade ou da literatura,
entre restos de coisas que li:
Sá de Miranda (caem co'a calma as aves),
Junqueiro (as andorinhas da infância),
e dias errantes, casa vazias,
camiões de mudanças,
remorsos, lentas estações:
e aves, agora como eu
desprovidas de centro e de tempo
agora, como eu, apenas emoções?
Manuel António Pina
Sabugal, 6/8/11
http://www.youtube.com/watch?v=Xl71VPq6LiE
domingo, 2 de junho de 2013
As águas livres
Ainda se peneirava a farinha para fazer o pão, havia nos armários uma série de peneiras redondas, encaixadas umas nas outras e com redes de malhas diferentes.
E havia o ferro velho, que comprava garrafas e frascos de vidro, tubos vazios de pasta de dentes, jornais, papéis, pregos, latas, fechaduras estragadas ou partidas.
E o farrapeiro, que chegava à procura de roupa velha e pedaços de tecido, peles de coelho e tranças de mulheres. Vinha de carroça e por cada saco de vinte e cinco quilos que enchia de farrapos recebia do patrão travessas e pratos de faiança, que depois vendia no mercado. Dos cabelos entrançados das mulheres faziam-se perucas, uma arte difícil sobre a qual ele pouco dizia, a não ser que às vezes era preciso tingirem-se os cabelos, numa cor ao gosto de quem encomendava. Prometeu que um dia nos mostrava uma peruca pronta, que ia trazer na carroça, dentro de uma caixa de chapéus, mas nunca chegou a trazê-la.
E havia a peixeira, o leiteiro, o padeiro, o latoeiro, o mola-tesouras. E "o velho da areia", que aparecia uma vez por mês e vendia um tostão e meio de areia branca muito fina com que se areavam os tachos, frigideiras, talheres, objectos de ferro ou de alumínio, esfregando-os com força com um pano molhado passado pela areia. Era um velho magro, de bigode amarelado de nicotina e um cheiro insuportável a mau tabaco, a suor e a pó, no capote alentejano que trazia aos ombros no inverno. Gostava de crianças e ria muito connosco quando vínhamos ao portão do quintal. Reparávamos então que os seus óculos estavam baços e o capote se começava a desfazer nos ombros.
Teolinda Gersão
http://www.youtube.com/watch?v=zOhbSWR2XN4
Teolinda Gersão
http://www.youtube.com/watch?v=zOhbSWR2XN4
sexta-feira, 24 de maio de 2013
Poema do Homem Só
Sós,
irremediavelmente sós,
como um astro perdido que arrefece.
Todos passam por nós
e ninguém nos conhece.
Os que passam e os que ficam.
Todos se desconhecem.
Os astros não se explicam:
arrefecem.
Nesta envolvente solidão compacta,
quer se grite ou não se grite,
nenhum dar-se de dentro se refracta,
nenhum ser nós se transmite.
Quem sente o meu sentimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem sofre o meu sentimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem estremece este meu estremecimento
sou eu só, e mais ninguém.
Mas este íntimo secreto
que no silêncio concentro,
este oferecer-se de dentro
num esgotamento completo,
este ser-se sem disfarce,
virgem de mal e de bem,
este dar-se, este entregar-se,
descobrir-se e desflorar-se,
é nosso, de mais ninguém.
António Gedeão
http://www.youtube.com/watch?v=MUt7qmSvxLI
domingo, 12 de maio de 2013
Estilo
- Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio... Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã num quarto vazio, acende-se um cigarro... Está a ver? A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida... compreende?... a nossa vida, a vida inteira, está ali como... como um acontecimento excessivo... Tem de se arrumar muito depressa. Há felizmente o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é um modo subtil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação. Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos, do Amor ou da Morte. Percebe? Uma dessas abstracções que servem para tudo. O cigarro consome-se, não é?, a calma volta. Mas pode imaginar o que seja isto todas as noites, durante semanas ou meses ou anos?
http://www.youtube.com/watch?v=_jXKIy_2p5U
domingo, 5 de maio de 2013
Mãe
Eu sou aquela que os vê.
E caminho pelos seus caminhos e sou a
fogueira distante.
O tempo não me apaga.
Tenho os pontos cardeais e sou a bússola nas
suas mãos,
quando eles vão sobre as águas.
Sou os mapas, a constelação, o cruzeiro do sul,
o arado, o cão,
aquela que os guarda.
Sou o regaço, as belas plumas do meu regaço,
a imensa luz de amor que cai sobre a sua
penumbra,
sobre a sua loucura.
Sou a mãe da sua vida, da sua morte.
E vou com eles, espalhando as rosas tristes,
e os meus cabelos espalham sobre os seus
cabelos as raízes brancas.
Sou aquela que escreve quando eles dormem,
sou as palavras através do sono.
E adormeço com eles,
fechando as últimas portas.
José Agostinho Baptista
http://www.youtube.com/watch?v=BcXxfQHd2WQ
domingo, 28 de abril de 2013
Família
A toalha de mesa era nova e só se usava nesses almoços ao domingo. Havia uma garrafa de laranjada de vidro grosso ao centro da mesa, ao lado do vinho.
Nesses dias, não faltava sol no quintal. Agora, parece-me que eram sempre domingos de uma primavera em que já se imaginava o verão. E as galinhas debatiam um assunto calmo na capoeira, as coelhas ameigavam os filhos na coelheira, os pombos atiravam-se em voos desde o pombal. A claridade desse tempo entrava pela janela e pousava sobre a mesa posta, a melhor terrina com canja, os melhores copos, os guardanapos dos dias de festa. A televisão a cores brilhava. Estava ligada e não importa o que estivesse a dar. Eu tinha entre seis e quinze anos (1980-1987).
Depois, chegou uma altura em que essa toalha de mesa, já mais desbotada, começou a ser usada nas refeições dos dias de semana. Lavada muitas vezes, tornou-se mais suave ao toque. Ganhou nódoas que já não saíam e, um dia, tornou-se demasiado velha até para esse uso. Então, a minha mãe rasgou-a e transformou-a num esfregão. Agora, até esse dia é remoto. Até o dia em que a minha mãe decidiu pôr o esfregão no lixo é remoto.
Esses almoços de domingo moldaram a minha vida.
Tenho a idade que os meus pais tinham durante esses almoços e pergunto-me se eles olhariam para mim da mesma maneira que eu, agora, olho para os meus filhos.
Talvez os meus pais já fossem capazes de imaginar este momento, eu crescido, estas crianças à mesa, a minha mãe com setenta anos e o meu pai sem estar cá.
Chego a casa de uma das minhas irmãs. A televisão está ligada num dos canais de desenhos animados. As vozes fingidas dos bonecos misturam-se com as nossas vozes, reais, a dizerem palavras que, para mim, com trinta e oito anos, são demasiado nítidas.
Sinto-me culpado. Diante de todas as escolhas, como diante de cruzamentos, quando escolhi caminhos que me afastavam dos almoços de domingo, senti-me sempre culpado. Os almoços nunca são na minha casa. Não tenho casa para almoços de domingo.
José Luís Peixoto
http://www.youtube.com/watch?v=WDWq5I-Znkk
Talvez os meus pais já fossem capazes de imaginar este momento, eu crescido, estas crianças à mesa, a minha mãe com setenta anos e o meu pai sem estar cá.
Chego a casa de uma das minhas irmãs. A televisão está ligada num dos canais de desenhos animados. As vozes fingidas dos bonecos misturam-se com as nossas vozes, reais, a dizerem palavras que, para mim, com trinta e oito anos, são demasiado nítidas.
Sinto-me culpado. Diante de todas as escolhas, como diante de cruzamentos, quando escolhi caminhos que me afastavam dos almoços de domingo, senti-me sempre culpado. Os almoços nunca são na minha casa. Não tenho casa para almoços de domingo.
José Luís Peixoto
http://www.youtube.com/watch?v=WDWq5I-Znkk
domingo, 21 de abril de 2013
Livro das Horas
A tradição familiar me acompanha. Cedeu-me um repertório de acertos e desacertos. Uma bagagem que atualiza certos episódios, como os dois anos vividos em Borela, em comunhão com a natureza galega.
Na casa da avó, o mundo me exaltava. Sentia-me Atlas a reter a esfera da Terra em suas mãos. Enfrentava, destemida, a geografia adversa, enquanto aprendia o galego, o espanhol, os costumes locais, o substrato da grei de que me originara.
Aos poucos aprendia a respeitar as funções milenares das aldeias, a entender as peculiaridades inerentes ao camponês galego. Não me furtava a participar das ocorrências diárias, que já faziam parte da minha vida. Em especial da colheita do milho, que exigia celebração. Afinal, o milho salvava-os da fome, da inclemência do inverno.
Reunidos no pátio da casa da avó Isolina, desfolhávamos as espigas que seriam estocadas no belo hórreo, ou canastro, localizado atrás da casa.
O clima era festivo. Eu copiava a diligência com que eles retiravam a palha da espiga até ao sabugo, jogada dentro das cestas empilhadas à nossa frente. Dali a espiga iria para o canastro, construção hoje clássica do cenário galego.
O clima era festivo. Eu copiava a diligência com que eles retiravam a palha da espiga até ao sabugo, jogada dentro das cestas empilhadas à nossa frente. Dali a espiga iria para o canastro, construção hoje clássica do cenário galego.
O trabalho árduo só era interrompido para a merenda regada a vinho e a histórias fomentadas pelas intrigas. Na expectativa todos de surgir a qualquer momento a espiga vermelha alçada à categoria de relíquia. E isto porque quem a obtivesse ganhava o direito de cobrar um beijo de quem fosse. Um achado que propiciava festejar os sentidos, entoar canções com poemas de Rosalía de Castro e rubores no rosto, além de acanhamentos.
http://www.youtube.com/watch?v=6fmkJoWCcw8
domingo, 14 de abril de 2013
Pequena Feiticeira
Tudo é novidade
O mundo está aí
Só para ti
Ao alcance da tua mão
dos teus passos
da tua vontade
Muito obstinada,
Adoras fazer experiências
Correr, saltar, trepar, andar para trás
Inventas variantes cada vez mais difíceis
Festejas com orgulho as tuas vitórias
Já descobriste o poder da palavra,
Minha pequena feiticeira,
Diverte-te imenso brincar com os sons
Mas repetir uma palavra exige de ti
Muita concentração.
Palminhas, palminhas,
Conseguiste!
domingo, 7 de abril de 2013
Minha Pátria
Minha pátria não é a língua portuguesa.
Nenhuma língua é a pátria.
Minha pátria é a terra mole e peganhenta onde nasci
e o vento que sopra em Maceió.
São os caranguejos que correm na lama dos mangues
e o oceano cujas ondas continuam molhando os meus pés quando sonho.
Minha pátria são os morcegos suspensos no forro das igrejas carcomidas,
os loucos que dançam ao entardecer no hospício junto ao mar,
e o céu encurvado pelas constelações.
Minha pátria são os apitos dos navios
e o farol no alto da colina.
A língua de que me utilizo não é e nunca foi a minha pátria.
Nenhuma língua enganosa é a pátria.
Ela serve apenas para que eu celebre a minha grande e pobre pátria
muda,
minha pátria disentérica e desdentada, sem gramática e sem dicionário,
minha pátria sem língua e sem palavras.
Lêdo Ivo
http://www.youtube.com/watch?v=YIrMJ_ix0FA
quarta-feira, 27 de março de 2013
Dúvida
O céptico sorriso da paisagem
Quando, funéreo, o sino
Avisa o mundo de que vai cerrar-se
O véu de trevas da Semana Santa!
A seiva é tanta
A borbulhar nas vinhas,
Voam com tal volúpia as andorinhas
Rente ao chão semeado,
É tão fresco, ligeiro e perfumado
O ar que se respira,
Que tem de ser mentira
O negro pesadelo anunciado.
Miguel Torga
http://www.youtube.com/watch?v=hPtwB_ph594
domingo, 24 de março de 2013
O que a vida me ensinou
Muitas vezes ia ao Campo Pequeno. Uma vez fui lá para me sentar ou para passear. Estava cheio de gente a conversar ou a ler os jornais. Fui para um recanto mais pequeno, onde não estava ninguém. Eu gostava muito de estar a olhar para uma árvore e não estar a pensar. Não lia o jornal, nem nada. Sentei-me no banco e estava com a mão em cima da travessa superior, com as costas da mão para cima. Não sei se isso tem algum significado. A certa altura um pardal veio pousar uns centímetros adiante da minha mão. Eu pensei como seria interessante se o pobre pardal pousasse em cima da minha mão. E o pardal realmente, daí a uns segundos, deu um salto para a minha mão. Continuei imóvel. O pardal não ficou por aí. Começou a subir-me pelo braço esquerdo, depois pousou no ombro um bocadinho, deu a volta às minhas costas, e pousou no lado direito. Mas também não ficou por aí. Deu um salto para a minha cabeça e começou a debicar na minha cabeça. Aí está um acontecimento inexplicável, em que há um pardal que vem ter comigo e eu senti-me assim relacionado com o Universo de uma maneira que não aconteceria a conversar com qualquer pessoa ou a ler o jornal. É uma coisa insignificante ou insignificável.
A vida não me ensinou nada.
António Ramos Rosa
(depoimento recolhido por Valdemar Cruz)
http://www.youtube.com/watch?v=-DpUtM9d_sA
http://www.youtube.com/watch?v=-DpUtM9d_sA
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