domingo, 29 de dezembro de 2013

Auto da Fé


Benito       Ella es noche d´alegría;
                 ninguno está aqui soñoliento.

Fé             É noite do nascimento,
                 em que Deus mostrou seu dia.
                 É noite de grã memória,
                 noite em dia convertida,
                 escuridão consumida
                 com grã resplendor de glória:
                 no meio mais luminosa
                 que no mundo nunca viste,
                 e de escura, fria e triste,
                 a mais doce e gloriosa.
                 Oh, noite favorecida
                 de memorável coroa,
                 vista de Deus em pessoa,
                 começando humana vida!
                 dos anjos toda cercada,
                 dos elementos servida,
                 do Padre e Filho escolhida,
                 do Espírito Santo expirada!

Brás:         Que ño os entiendo, ño,
                 ñi sé que cosas habláis,
                 si más no lo aclaráis.
                 Como estava me estó.

Fé:            Haveis de crer firmemente
                 tudo quanto vos disser
                 os que salvos quereis ser
                 naquesta vida presente:
                 crede o santo nascimento,
                 ser Deus de Virgem nascido,
                 Verbo de Deus concebido
                 pera Novo Testamento
                 E que a Virgem glotiosa
                 ficou tal como nasceu;
                 e sem dor apareceu
                 a nossa flor preciosa.
                 Deus em toda perfeição,
                 homem pera padecer,
                 e tirar a Lúcifer
                 toda sua jurdição.

                 Gil Vicente
                 http://www.youtube.com/watch?v=k1iURdc181A

domingo, 22 de dezembro de 2013

O menino no sapatinho


Era uma vez o menino pequenito, tão minimozito que todos seus dedos eram mindinhos. Dito assim, fino modo, ele, quando nasceu, nem foi dado à luz mas a uma simples fresta de claridade.
De tão miserenta, a mãe se alegrou com o destamanho do rebento - assim pediria apenas os menores alimentos. A mulher, em si, deu graças: que é bom a criança nascer assim desprovida de peso que é para não chamar os maus espíritos. E suspirava, enquanto contemplava a diminuta criatura. Olhar de mãe, quem mais pode apagar as feiuras e defeitos nos viventes?
Ao menino nem se lhe ouvia o choro. Sabia-se de sua tristeza pelas lágrimas. Mas estas, de tão leves, nem lhe desciam pelo rosto. As lagriminhas subiam pelo ar e vogavam suspensas. Depois, se fixavam no teto e ali se grutavam, missangas tremeluzentes.
Pois, aconteceu o seguinte: dadas as dimensões de sua vida e não havendo berço à medida, a mãe colocou o menininho num sapato. E cujo era o esquerdo do único par, o do marido.
Até que o ano findou, esgotada a última folha do calendário. Vinda da igreja, a mãe descobriu-se do véu e anunciou que iria compor a árvore de Natal. Sem despesa nem sobrepeso.
Tirou à lenha um tosco arbusto.
Os enfeites eram tampinhas de cerveja, sobras da bebedeira do homem. Junto à árvore ela rezou com devoção de Eva antes de haver a macieira. Pediu a Deus que fosse dada ao seu menino o tamanho que lhe era devido. Só isso, mais nada. Talvez, depois, um adequado berço. Ou quem sabe, um calçado novo para o seu homem. Que aquele sapato já espreitava pelo umbigo, o buraco na frente autorizando o frio.
Na sagrada antenoite, a mulher fez como aprendera dos brancos: deixou o sapatinho na árvore para uma qualquer improbabilíssima oferta que lhe miraculasse o lar.
Acordou cedo e foi direta ao arbusto de Natal. Dentro do sapato, porém, só o vago vazio, a redonda concavidade do nada. O filho desaparecera? Não para os olhos da mãe. Que ele tinha sido levado por Jesus, rumo aos céus, onde há um mundo apto para crianças. Descida em seus joelhos, agradeceu a bondade divina.
De relance, ainda notou que lá no teto já não brilhavam as lágrimas do seu menino. Mas ela desviou o olhar, que essa é a competência de mãe: o não enxergar nunca a curva onde o escuro faz extinguir o mundo.

Mia Couto
http://www.youtube.com/watch?v=D_naXf_c6As


domingo, 15 de dezembro de 2013

Sermão do Bom Ladrão


O ladrão que furta para comer, não vai nem leva ao Inferno; os que não só vão, mas levam (de que eu trato) são outros ladrões de maior calibre e de mais alta esfera, os quais, debaixo do mesmo nome e do mesmo predicamento, distingue muito bem S. Basílio Magno. Não são só ladrões, diz o Santo, os que cortam bolsas, ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa; os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título, são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades; os quais, já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. Os outros ladrões roubam um homem; estes roubam cidades e reinos. Os outros furtam debaixo do seu risco; estes, sem temor nem perigo. Os outros, se furtaram, são enforcados; estes furtam, e enforcam. Quantas vezes se viu em Roma ir a enforcar um ladrão, por ter furtado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em trinfo um cônsul ou ditador, por ter roubado uma província! E quantos ladrões teriam enforcado estes mesmos ladrões triunfantes?

domingo, 8 de dezembro de 2013

Divergências profundas


Na acção governamental as dissenções são perpétuas. Assim o partido histórico propõe um imposto. Porque, não há remédio, é necessário pagar a religião, o exército, a centralização, a lista civil, a diplomacia... - Propõe um imposto.
"Caminhamos para a ruína -  exclama o Presidente do Conselho. - O défice cresce! O país está pobre!  A única maneira de nos salvarmos é o imposto que temos a honra, etc..."
Mas então o partido regenerador, que está na oposição, brame de desespero, reúne o seu centro. As faces luzem de suor, os cabelos pintados destingem-se de agonia, e cada um alarga o colarinho na atitude de um homem que vê desmoronar-se a Pátria!
- Como assim! - exclamam todos. - Mais impostos!?
E então contra o imposto escrevem-se artigos, elaboram-se discursos, tramam-se votações! Por toda a Lisboa rodam carruagens de aluguel, levando, a 300 réis por corrida, inimigos do imposto! Prepara-se o cheque ao ministério histórico... Zás! Cai o ministério histórico!
E ao outro dia, o partido regenerador, no poder, triunfante, ocupa as cadeiras de S. Bento. Esta mudança alterou tudo: os fundos desceram mais, as transacções diminuíram mais, a opinião descreu mais, a moralidade pública abateu mais - mas finalmente caiu aquele ministério desorganizador que concebera o imposto, e está tudo confiado, esperando.
Abre a sessão parlamentar. O novo ministério regenerador vai falar.
- Tem a palavra o Sr. Presidente do Conselho.
- O novo presidente: " Um ministério nefasto (apoiado, apoiado! - exclama a maioria histórica da véspera) caiu perante a reprovação do País inteiro. Porque, Senhor Presidente o País está desorganizado, é necessário restaurar o crédito. É a única maneira de nos salvarmos..."
Murmúrios. Vozes: Ouçam! Ouçam!
"... É por isso que eu peço que entre já em discussão... (atenção ávida que faz palpitar debaixo dos fraques o coração da maioria...) que entre em discussão  - o imposto que temos a honra, etc. (apoiado, apoiado!)"
Não, não! Com divergências tão profundas é impossível a conciliação dos partidos!

Eça de Queiroz
http://www.youtube.com/watch?v=_LUJVOJMRr0

domingo, 1 de dezembro de 2013

Heróis do Mar


Coimbra, 31 de Outubro de 1993
Estamos irremediavelmente perdidos. E já ninguém o ignora e cala. É um clamor uníssono que vai do Minho ao Algarve. Um dobre a finados de uma pátria sem esperança, que o poder não ouve, ou finge não ouvir, a fazer-lhe discursos e a descerrar lápides, num desprezo olímpico pelo povo que em má hora o elegeu. Um povo que já foi senhor da sua vontade e dos seus actos, mas que muitos anos de obscurantismo, de inquisição e ditadura degradaram e perverteram, e agora, de novo tiranizado, insofrido e impotente, geme. Oiço esse gemido insistente e generalizado, e fico transido. Dói-me em todos os recessos da alma acabar os dias com ele a ressoar-me nos ouvidos atentos e solidários, confrangido de apenas poder registar o desalento de uma colectividade que se deixa sistematicamente iludir, e beija agradecida a mão de quem cinicamente, nas horas eleitorais, lhe promete o paraíso e argamassa sem pejo, em cada localidade a primeira pedra de uma escola, centro de cultura ou saúde, que nunca serão realidade. E que, depois de ser mais uma vez ludibriada, barafusta, perde a cabeça, corta estradas e interrompe o trânsito, até que a bastonadas paternais, recolhe a casa pacificamente, numa indignação envergonhada e vencida.

domingo, 24 de novembro de 2013

Avó Ménha


Os anos da Avó Ménha eram uma festa. Lá se encontravam, para além dos bolos e das sandes e das gasosas, uns cheiros estranhíssimos e apelativos. Ela morava na parte lateral de uma enorme oficina; mas não era nesta que residia a origem dos cheiros. Era entre ela, a casa e a neta. Esta trilogia cheirante haveria de representar para toda a família um eterno mistério olfactivo.
A maior curiosidade da trilogia era o contraste evidente que entre elas havia. Ainda olfactivamente falando. Ao passo que a casa transpirava tempo e mofo, a Anika - neta da Avó Ménha, emanava uma intensa juventude, representada e muito bem representada no reino do olfacto pela sua catinga penetrante, perigosa, pontiaguda mesmo. O último elemento tríptico, sem dúvida o principal, era a rija Avó Ménha que numa mistura mais que mística reunia nela e na sua aura todo um mundo de cheiros deste e do outro mundo. Os seus cheiros deste mundo eram de certa maneira decifráveis e nessa mistura, mesmo para um nariz infantil ou amador, era possível reconhecer o cheiro de muitos temperos acumulados, cheiros de caminhadas longas a pé, cheiro do tempo, de solidão e da dor dos que lhe tinham morrido. Os seus cheiros do outro mundo eram mais reservados, sendo-nos somente permitida uma pequena associaçãozinha: com a morte. No seu andar vagaroso, na sua boca bafienta, nos seus olhos de pele cansada, nos seus movimentos custosos e até nos calos salientes das suas mãos, a Avó Ménha transbordava cheiros do outro mundo.

domingo, 17 de novembro de 2013

Sol invernal


Sentado ao sol, num dia frio de inverno, o homem
espera que as nuvens cheguem. Com elas virão as notícias
do norte, o som de antigos vapores ao entrarem
na barra, o pregão dos ardinas a venderem os primeiros
jornais do dia, os gritos das criadas, no pátio,
enxotando as galinhas e os rapazes que as vinham
espreitar, a voz abafada das raparigas em lágrimas,
nas grades do confessionário, e os sinos que chamavam
à missa e traziam, atrás deles, o ladrar de cães vadios
em matilha no meio dos campos. Mas o sol que
aquece o dia de inverno parece afastar as nuvens;
os vapores afastaram-se no cais de uma ode
marítima; os jornais foram queimados por vagabundos
que precisavam de se aquecer; as criadas envelheceram,
e nos seus olhos secos pela idade morreu
o desejo dos rapazes; e a rapariga que saiu
do confessionário, secando as lágrimas, ainda
desfia as contas de um rosário há muito
perdido. E o homem, sentado ao sol,
num dia frio de inverno, pergunta em que campo
se perderam as matilhas de cães vadios, e tenta
ouvir, para lá dos prédios da cidade, os latidos
que se confundem com o toque dos sinos
que enche de nuvens o seu espírito.

Nuno Júdice
http://www.youtube.com/watch?v=Dxjpn39PXXY

domingo, 10 de novembro de 2013

Avó e Neto


Tinham ido à praia, porque estava uma manhã bonita. A avó vestia uma saia clara e levava o neto pela mão. Ia muito contente, e o seu coração cantava.
O neto levava um balde, porque se propunha apanhar conchas e búzios, como já fizera de outras vezes em que tinha ido à praia com a avó.
Ir à praia com a avó era uma das melhores coisas que lhe podiam acontecer nos dias livres. Por isso também ele ia contente, e o balde dançava-lhe na mão.
A praia estava como devia estar, com sol e ondas baixas. Quase não havia vento, e a água do mar não estava fria. Por isso o neto teve muito tempo de procurar conchas e búzios e de tomar banho no mar. A avó sentou-se num rochedo, e ficou a olhar para o neto, por detrás dos óculos. Nunca se cansava de olhá-lo porque o achava perfeito. Se pudesse mudar alguma coisa nele, não mudaria nada.
Estava uma manhã tão boa que também a avó tirou a blusa e a saia e ficou em fato-de-banho. Depois tirou os óculos, que deixou em cima de um rochedo, e entrou no mar, atrás do neto, que nadava à sua frente, muito melhor e mais depressa do que ela.
- Não te afastes, dizia a avó, um pouco ofegante. Volta para trás!
A avó tinha medo de muitas coisas: dos paus que podiam furar os olhos, das agulhas e alfinetes que se podiam engolir se se metessem na boca, das janelas abertas, de onde se podia cair, do mar onde as pessoas se podiam afogar. A avó via todas esses perigos e avisava. Ele ouvia, mas não ligava muito. Só o suficiente.
Não tinha medo de nada, mas, apesar disso, gostava de sentir o olhar da avó. De vez em quando voltava a cabeça, para ver se ela lá estava sentada, a olhar para ele. Depois esquecia-se dela e voltava a ser o rei do mundo.
Por isso se sentiam tão bem um com o outro.

Teolinda Gersão
http://www.youtube.com/watch?v=Z94aL-hrrYQ

domingo, 3 de novembro de 2013

Dois meninos

                           
                             Meu menino canta, canta
                             Uma canção que só ele entende
                             E o faz sorrir.

                             Meu menino tem nos olhos os mistérios
                             Dum mundo que ele vê e que eu não vejo
                             Mas de que tenho saudades infinitas.

                             As cinco pedrinhas são mundos na mão.
                             Formigas que passam,
                             Se brinca no chão,
                             São seres irreais...

                             Meu menino d'olhos verdes como as águas
                             Não sabe falar,
                             Mas sabe fazer arabescos de sons
                             Que têm poesia.

                             Meu menino ama os cães,
                             Os gatos, as aves e os galos,
                             (São Francisco de Assis
                             Em menino pequeno)
                             E fica horas sem fim,
                             Enlevado, o olhá-los.

                             E ao vê-lo brincar, no chão sentadinho,
                             Eu tenho saudades, saudades, saudades
                             Dum outro menino...

                             Francisco Bugalho
                             http://www.youtube.com/watch?v=sWa8O3V8SgU

sábado, 26 de outubro de 2013

Poema enjoadinho

                               
                                Filhos...Filhos?
                                Melhor não tê-los!
                                Mas se não os temos
                                Como sabê-lo?
                                Se não os temos
                                Que de consulta
                                Quanto silêncio
                                Como os queremos!
                                Banho de mar 
                                Diz que é um porrete...
                                Resultado: filho.
                                E então começa 
                                A aporrinhação:
                                Cocô está branco
                                Cocô está preto
                                Bebe amoníaco
                                Comeu botão
                                Filhos? Filhos
                                Melhor não tê-los
                                Noites de insônia
                                Cãs prematuras
                                Prantos convulsos
                                Meu Deus, salvai-o!
                                Filhos são o demo
                                Melhor não tê-los...
                                Mas se não os temos
                                Como sabê-lo?
                                Como saber 
                                Que macieza
                                Nos seus cabelos
                                Que cheiro morno
                                Na sua carne
                                Que gosto doce 
                                Na sua boca!
                                Chupam gilete
                                Bebem shampô
                                Ateiam fogo
                                No quarteirão
                                Porém, que coisa
                                Que coisa louca
                                Que coisa linda
                                Que os filhos são!

                                Vinicius de Moraes
                                http://www.youtube.com/watch?v=5f-T3oUtSHI

domingo, 20 de outubro de 2013

Estou vivo e escrevo sol


Eu escrevo versos ao meio dia
e a morte ao sol é uma cabeleira
que passa em frios frescos sobre a minha cara de vivo
Estou vivo e escrevo sol.

Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam
no vazio fresco
é porque aboli todas as mentiras
e não sou mais que este momento puro
a coincidência perfeita
no acto de escrever e sol

A vertigem única da verdade em riste
a nulidade de todas as próximas paragens
navego para o cimo
tombo na claridade simples
e os objectos atiram suas faces
e na minha língua o sol trepida

Melhor que beber vinho é mais claro
ser no olhar o próprio olhar
a maravilha é este espaço aberto
a rua
um grito
a grande toalha do silêncio verde

António Ramos Rosa
http://www.youtube.com/watch?v=fFtGfyruroU

domingo, 13 de outubro de 2013

De que tristeza falam?



( a António Ramos Rosa)

Ouço dizer que anda lá fora uma tristeza. Inclino-me à janela e não a vejo. Pergunto-me então: de que tristeza falam? "Da morte." Oh, sim , morre-se muito no Outono. É esse, aliás, o tempo natural. As árvores, por exemplo, cumprem sempre. Deitam ao chão as suas chaves de ouro e fecham-se por dentro, inacessíveis. Mas a que morte se referem? A que perda, a que grande vazio se referem?
Faço a minha vigília em solidão, sem perceber de que tristeza falam. E sobre que tristeza escrevem eles. Não conhecem os rios da Irlanda? Existem, na Irlanda, rios assim: seguem pelo seu curso e, de repente, desaparecem, deixam a paisagem. E, mais longe, aparecem outra vez. Entram na terra, continuam a fluir pelos túneis do subsolo, depois emergem. É um fenómeno próprio do que ali se chama karst, formações de calcário vulneráveis à corrosão das águas pluviais. Não é um plágio da eternidade, é simplesmente aquilo que permanece ainda quando deixa de ser visto. É isso que eles ensinam, esses rios. É isso o que, apesar de uma tristeza andar lá fora, como me dizem, leva a que não a compartilhe.
Quando vier a hora de chorar já eu não estarei viva há muito tempo. Só acontecerá quando as catástrofes eliminarem a humanidade e, com ela, as palavras e, com elas, o que o António escreveu. Esse caudal.
Comparam-no alguns a um menino autocentrado e pronto a fascinar-se. O que há nele, sobretudo, é uma nobre e sábia rebelião, a que não dobra ante a realidade e quer ver tudo e ligar tudo com os fios que a luz e a pressa ocultam aos comuns. Os fios que ele descobria entre as palavras.

Hélia Correia
http://www.youtube.com/watch?v=NCID3781Xcg

sábado, 5 de outubro de 2013

Incertezas ou Evidências


Ninguém me disse: Vai por este caminho de água
ou Segue esta vereda silenciosa
Eu vivia na obscuridade com uma lâmpada negra
e a tortura do infinito na minha cabeça esguia
Mas eu amava os muros com insectos e urtigas
e os campos de verdura leve e os límpidos regatos
era um homem da terra que queria pertencer à terra
e consagrá-la numa relação viva e fértil
Eu queria construir com a matéria espessa
um edifício solar com amplas vidraças
e um terraço aberto à dinâmica languidez do mar
Não sei se o que fiz tem a solidez flexível
de um corpo vegetal mas com extensas pedras
Os que o habitarem talvez se deslumbrem com as claras planícies
e amem a tranquilidade misteriosa dos vales escuros
Mas para mim não é mais que um amontoado de folhas
algumas verdes outras secas e todas o vento varrerá

António Ramos Rosa
http://www.youtube.com/watch?v=he-R7b-15e0

domingo, 29 de setembro de 2013

António Ramos Rosa


Conversa pós-prandial com o Ramos Rosa num café. Que personagem este grande poeta. Claude Roy disse dele, salvo erro, que lembrava um Quixote surrado. Enganou-se de mundo, anda aqui por se ter distraído. Porque ele nasceu para viver noutro lado onde não haja regras de trânsito, de disciplina, de subsistência. De modo que faz um esforço enorme para se acomodar. Um grande achado para ele foram as práticas do ioga ou coisa que o valha. O mundo em que circula desarranja-lhe os mecanismos interiores. E toda a sua preocupação é consertá-los. Mas ele a compor e a realidade a estragar. Quando julga que venceu, fica radiante. Dias depois volta à oficina com o psíquico esmurrado. Não chegará nunca a tirar carta de condução no mundo. Hoje trazia outra descoberta: mastigar interminavelmente um pedaço de alimento até sentir vómitos. Isso lhe afinaria o sabor para recuperar um paladar originário. E ria. Estava feliz. Nós alimentamo-nos tão estupidamente, com um paladar tão encortiçado. Ele quer restaurar cá o sabor que deve haver talvez do lado de lá. Encantado com a descoberta. E eu com o encantamento dele. Adorável poeta. Extraordinário poeta.

Vergílio Ferreira
http://www.youtube.com/watch?v=xk3KMv7F-N0

sábado, 21 de setembro de 2013

A concha


A minha casa é concha. Como os bichos
Segreguei-a de mim com paciência:
Fachada de marés, a sonho e lixos,
O horto e os muros só areia e ausência.

Minha casa sou e os meus caprichos,
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda, vence-a
O sal que os santos esboroou nos nichos.

E telhados de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!
Lareira aberta ao vento, as salas frias.

A minha casa....Mas é outra história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.

Vitorino Nemésio
http://www.youtube.com/watch?v=VPZF2Mrc4OM

domingo, 15 de setembro de 2013

Nasjonalgalleriet


Acerca da solidão não se enganaram
os jovens Mestres (quão bem entenderam a
condição humana) como está presente
enquanto outros festejam ou se abraçam ou simplesmente
conversam
entre si. Como (ante
a solidão) deve sempre haver alguém
que não queria especialmente que acontecesse.
Nunca esqueceram que a mais terrível solidão
tem uma geografia (o quarto abandonado
onde conversa sozinha ou isolada de tantos
no imo da multidão).
No Grito de Munch por exemplo:
a ponte é oblíqua como o medo. Os dois
amigos até podem não ter escutado o grito
mas tal não é determinante -
o céu em tumulto assistiu à angústia
da boca aberta (as
mãos cerrando os ouvidos ao grito essencial) e
sob o fiorde azul deu-se algo de extraordinário:
o grito chegou a acender-se mas
não se desfez em som.

João Luís Barreto Guimarães
http://www.youtube.com/watch?v=QnoGHHm_gTA

sábado, 7 de setembro de 2013

Castelo da Lousã


Este castelo é um castelinho, e faria muito mal quem o tivesse feito maior. Ocupa, e apenas em parte, o espinhaço de um monte que é, insolitamente, o mais baixo da vizinhança. Quem diz castelo, pensa altura, domínio de quem está de cima, mas aqui tem de pensar outras coisas. Pensará, sem dúvida, que o castelo de Lousã é, paisagisticamente, das mais belas coisas que em Portugal se encontram. A sua própria situação, no centro duma roda de montes que o excedem em porte, torna, por um paradoxo aparente, mais impressiva a sensação da altura. É justamente a proximidade das encostas fronteiras que dá ao viajante uma impressão quase angustiante de equilíbrio precário quando entra no castelo e vai à torre. Já sentira o mesmo quando se aventurou até ao fim do espinhaço e ouviu do fundíssimo vale o estrondo das águas invisíveis do rio que ali passa, apertado entre as paredes da rocha.  O dia está ventoso, toda a ramaria em redor se agita, e o viajante não se sente muito seguro em cima da torre cilíndrica a que conseguiu chegar. Está nisto, nesta romântica situação de desafiador de ventos e tempestades, quando subitamente lhe acode a ideia maravilhosa: neste lugar, neste castelo familiar, no centro deste círculo de montes que ameaçam avançar um dia, é que Hamlet viveu e se atormentou, foi debruçado para o rio que fez a sua irrespondível pergunta, e, se nada disto aqui aconteceu, ao menos o viajante acredita que nenhum lugar existe no mundo com mais adequado cenário para uma representação skakespeariana, das que metem castigos, vaticínios funestos e grandeza. É uma cenografia natural que não precisa de  retoques, e em tenebrismo dramático nada poderia ser mais impressionante. Construído de xisto, o castelo da Lousã resiste mal ao martelar alternante do sol, da chuva, das geadas, do vento, ou então é o viajante que isso teme por ver como se estão esboroando, nos sítios mais expostos, os muros restaurados. Tem porém o xisto uma coisa boa: cai uma lasca, facilmente, se põe outra.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Ria Formosa


O Verão é um lugar do espírito para onde as quatro estações do ano se encaminham sem cessar. Nesse lugar que fica fora do calendário, esperamos pelo rumor de um outro espaço que esteja fora do tempo. Assim sendo, quem conta como se passou o momento mais próximo do desejo de Verão, que vai na nossa alma? Quem quer contar? Estamos na varanda do Hotel Faro, e já agora eu posso dar início à embaraçosa conversa, não tenho nada a perder.
O meu dia de Verão mais próximo desse momento revelador poderia ser outro, mas diante da ria Formosa, escondida no escuro da noite, só pode ser aquele em que subi a um cataramã com 12 pessoas, e fomos de esteiro em esteiro, e de sapal em sapal, até atingirmos a ilha do Farol. Assim, invoquei o melhor que pude o voo das aves, o cheiro a lodo, o borbulhar das espécies bivalves, e, depois de me desembaraçar desse campo de fertilidade, ataquei a descrição da Deserta, quando o Estaminé ainda estava em construção, e já então parecia o cenário ideal onde rodar um filme que se chamasse "Destino".
Mas outras narrativas iriam ser diferentes. Até que certa pessoa se levantou no meio da varanda e disse que o seu momento precioso tinha ocorrido em Veneza. Fora durante um simpósio sobre os espaços húmidos da Terra, a maternidade das espécies. O especialista disse que havia sido o Verão mais feliz da sua vida porque tinha defendido que certas formações lacustres, como a ria Formosa, deveriam ser vedadas à espécie humana e um terço dos seus colegas havia-o compreendido. Pois que direito tinham as pessoas de estragar o  ambiente dos pássaros? Que direito temos de destruir o cavalo-marinho, o pobre dizimado? Aquele que deveria ser para Portugal o que a flor Edelweiss é para os Alpes? Que direito o de impedir a oxigenação das águas pela atracagem dos barcos, que direito o de conspurcarmos o seu habitat? Que direito teríamos nós de entrar na maternidade das espécies para destruirmos os seus úteros e os seus berços? Disse que, se acaso Cousteau regressasse às pradarias aquáticas da ria, não as reconheceria. Pensaria que uma guerra cósmica havia acontecido no fundo dos lagos.
Fez-se um enorme silêncio. Era de noite, a hora da verdade. Não acredito que tenhamos nascido unidos para viver separados. Em vez de me proibirem o acesso, expliquem-me como e por onde entrar.


Lídia Jorge (texto com supressões)
http://www.youtube.com/watch?v=dnCC0dMNUvE

domingo, 18 de agosto de 2013

Encontro com um Deus instântaneo


Chovia docemente sobre a erva brava coberta de papoilas. Era o fim de uma trovoada de Maio sobre aquela relva dourada, coberta de papoilas, onde em tempos idos se ergueram as ruínas da Comuna.
Mas o que Sálvio procurava na fibrilação da relva não eram esses idos heróicos mas o rosto de Deus.
Em vão buscara de noite tantas vezes, entre o sonho e a vigília, que ele lhe desse um sinal da sua presença.
Talvez não tivesse forma concreta nem voz audível.
Talvez vagasse no céu nuvioso entre a luz e a sombra.
E eis que, de repente, a folhagem das árvores começou a abanar, um vento inconcreto sacudiu a terra e sobre a pávida planície desceu um vulto gigantesco, sem forma definida, e Sálvio ouviu - ou teria enlouquecido? - um terrível grito:
- Sentes-me agora dentro de ti?
Sálvio nada sentiu senão medo, os seus dentes castanholando.
O Senhor Deus, ou o que quer que fosse, riu com estrépito e, tal como surgira, inopinadamente, desapareceu, num estrondo arrepiante.
E Sálvio descansou.

Urbano Tavares Rodrigues
http://www.youtube.com/watch?v=YEdehAN2l2E

sábado, 10 de agosto de 2013

Pequena Artista


Vinte e um meses incompletos
As habilidades sucedem-se
Naturalmente:
andar à roda, de joelhos,
em bicos dos pés ou de pernas afastadas,
fazer a ponte ou dar cambalhotas.

Danças de braços no ar
Baloiçando-te ao ritmo da música
com verdadeiro prazer.
Cantas, ou melhor, dás concertos de jazz
Interpretando a canção do bebé
ou da mamã e do papá
com voz tão doce e envolvente.

Mas o máximo foi quando
pegaste num livro e começaste a  ler
alto e com entoação perfeita:
bebubibobubububibibibi.

HN
http://www.youtube.com/watch?v=PslouhmA1CE


domingo, 4 de agosto de 2013

Poesia


Ai deixa, deixa lá que a Poesia
no perfume das flores, no quebrar
das ondas pela praia,
na alegria
das crianças que riem sem porquê
- deixa lá que se exprima, a Poesia.

Fica sentado aí onde estás, Poeta,
e não mexas os lábios nem os braços:
deixa-a viver em si;
não tentes segurá-la nos teus braços,
não pretendas vesti-la com palavras.

Se a queres ter,
se a queres sempre ver pairando à flor das coisas, fica aí
no teu cantinho, e nem respires, Poeta, e não te bulas,
para que ela não dê por ti.

Não a faças fugir, toda assustada
com a tua presença...
Deixa-a, nua, pairando à flor das coisas,
que ela não sabe que a viste,
nem sabe que está nua,
nem sequer sabe que existe...

Sebastião da Gama
http://www.youtube.com/watch?v=4240QMQ1jhU

sábado, 27 de julho de 2013

Servidões


até cada objecto se encher de luz e ser apanhado
por todos os lados hábeis, e ser ímpar,
ser escolhido,
e lampejando do ar à volta,
na ordem do mundo aquela fracção real dos dedos juntos
como para escrever cada palavra:
pegar ao alto numa coisa em estado de milagre: seja:
um copo de água,
tudo pronto para que a luz estremeça:
o terror da beleza, isso, o terror da beleza delicadíssima
tão súbito e implacável na vida administrativa

Herberto Helder
http://www.youtube.com/watch?v=vid5ye_wPwk

sábado, 20 de julho de 2013

O poder de mentir


Que orgulho: o meu neto Antoninho, com pouco mais de dois anos no mercado, já sabe mentir. Não para fugir ou para escapar às consequências do que disse ou do que fez, mas para encantar e comover, fazer rir e manipular.
A mãe e vítima dele, a minha filha Tristana, sendo mestra de cinto negro dessas artes, contou-me a artimanha do Antoninho com o brilho vaidoso de quem ama tanto que gosta de se deixar enganar.
Que esquema arranjou esse aprendiz de feiticeiro - imperador absoluto de todos quantos têm a sorte de se aproximarem dele - para manipular tão bem que toma conta dele?
A mãe indo buscá-lo à escola depois do trabalho dela, perguntou como ele tinha passado. O Antoninho, que está muito bem na escolinha onde está, respondeu, humorística e sadicamente : "Cho'ei".
Mas, quando a mãe, muito culpabilizada e comovida, por ter estado tantas horas longe do filhote, finalmente perguntou ao Antoninho "se estava a dizer que chorou só para a mãe sentir-se mais culpada", o Antoninho explodiu de alegria.
O Antoninho desatou a rir, com amor, como quem admira a sua própria pessoa, enquanto ama ainda mais quem enganou.
Aposto que, a primeira vez, o Antoninho chorou mesmo. Mas quando disse que chorou ("cho'ei"), aprendeu que falar é mais poderoso que chorar.

Miguel Esteves Cardoso
http://www.youtube.com/watch?v=jWWOMrrtNfw

terça-feira, 16 de julho de 2013

Tempo


                             
                                  Num atropelo
                                  foram passando os anos

                                  Simulando vagares de eternidade
                                  a burilar os sonhos
                                  que sonhamos e a acrescentar
                                  saudades à saudade

                                  Num sobressalto
                                  fomos tomando o gosto

                                  Às infiéis constelações
                                  das nossas rimas
                                  no rasto de anjos e paixões
                                  feitas de fulgores e neblinas

                                  Num alvoroço
                                  foi-se ganhando o tempo

                                  Tecendo o poeta verso a verso
                                   o corpo da poesia acalentada
                                   no excesso e no gosto do colher
                                   sedento a seduzir cada palavra

                                   Num tumulto 
                                   fomos iludindo o nada

                                   Na partilha astuciosa do prazer
                                   numa grande vontade adivinhada
                                   escrever com a língua portuguesa
                                   dizendo do país      Poema e asa


                                   Maria Teresa Horta
                                   http://www.youtube.com/watch?v=SkwBEpSfuYg

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Pintar com palavras


Começa AQUI. Um castanho muito escuro para o Outono. Juntar branco. Pouco a pouco distingue-se uma casa. Os contornos são agora mais nítidos. De repente surge um duende que atravessa o quadro a correr e escapa-se lá para cima para a...

        mi
...cha    né. Amarelo. Vem aí gente. Depressa, vermelho, por favor. É melhor sair e ir lá para baixo, ao fundo...

...Pinceladas leves de azul. Ar. Mar. Com algumas nuvens. Ao longe é quase tudo azul, calmo, sereno. Pode ser manhã. Pedacinhos de azul esvoaçam. Um bocado ficou aqui.


HN
Exposição de Graça Morais em Aveiro, 2003
http://www.youtube.com/watch?v=yZv5mXazJTw

domingo, 30 de junho de 2013

Os justos



Começam o dia louvando o imperfeito:
o tempo que se inclina para o lado partido
as escassas laranjas que se tornam
amarelas no meio da palha
as talhas sem vinho

Olham por dentro a brancura da manhã
e em tudo quanto auxilia um homem no seu ofício
louvam o vulnerável e o inacabado

Estão sentados à soleira dos espaços
trabalhados devagar pelo silêncio

Quando Deus voltar
não terá de arrombar todas as portas

domingo, 23 de junho de 2013

A casa da minha infância


A casa da minha infância é muito longe de Lisboa, entre pinhais, castanheiros, a vinha, montes ao longe. E amoras, veredas de amoras. Em toda a vida nunca fui tão feliz como ali. Podia correr-se nas ruas
(ruas?)
andar de carroça, brincar nas esquinas, sentarmo-nos numa pedra, durante muito tempo, a ver os lagartos, as abelhas, a bicharada toda. Apanhar calhaus de mica, cheios de brilho. E escutar os ramos da trepadeira à noite, contra os vidros do janelico. Onde estão as pessoas desse tempo, onde está o eu desse tempo? A mercearia não era mercearia, era loja de quase tudo, semana sim semana não havia feira, ciganos, ourives, leitões, barros, barros, barros. Bicicletas tão velhas! Manchas de sol no chão! Chamavam-me
- Tóino
não me chamavam
-  António
e que é do Tóino, meu Deus? Está a partir pinhões, batendo-os com um pedaço de granito contra um pedaço de granito. Está a comer castanhas verdes e a ficar mal da barriga. Está a ouvir o sino da igreja, aos domingos, e o som das moedas do ofertório a caírem na caixa de lata. Estão a dar-lhe banho na selha. Está a ver os comboios lá em baixo, pelo meio das árvores fora. Está a espreitar as pessoas na taberna, sempre escura, cheia de moscas. Quase tantas como no curral da burra.
Infância, ainda sinto o teu mistério, as descobertas diárias, o teu murmúrio no meu sangue. Ainda me acompanhas com, nos intervalos da alegria, tristezas inexplicáveis que passavam depressa, perplexidades inexplicáveis que passavam depressa, angústias inexplicáveis que passavam depressa. Saudades disso, também e, de repente, o maravilhamento de novo. Paixões por meninas entrevistas, um par de tranças sem cara, um sorriso que se me não dirigia, e ainda bem porque, no caso de se me dirigir, não saberia o que fazer com ele. Isto vai tudo mal redigido mas pouco me importa. Importa-me a casa da minha infância muito longe de Lisboa, para mim, em criança, no outro lado do mundo, entre pinhais, castanheiros, a vinha, montes ao longe. E as amoras, claro, as amoras. A conversa das pessoas crescidas, à noite, no andar de cima, conversas, risos, passos no corredor e a trepadeira no postigo sempre, a trepadeira no postigo.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Alentejo


Há quem se canse de percorrer as estradas intermináveis e lisas desse latifúndio sem relevos. Há quem adormeça de tédio a olhar a uniformidade da sua paisagem, que no inverno se veste dum pelico castanho e no verão duma croça madura. Que é parda mesmo quando o trigo desponta e loura mesmo quando o ceifaram. Queixam-se da melancolia dos estevais negros e peganhosos, que meditam a sua corola branca um ano inteiro, da semelhança aflitiva das azinheiras, que parecem medidas pelo mesmo estalão, e não distinguem nos rebanhos que encontram, quer de ovelhas, quer de porcos, as particularidades que individualizam todo o ser vivo. Afeitos à variedade do Norte, que até aos bichos domésticos consente cara própria e personalidade, aflige-os a constante do Sul, que obriga todo o circunstancial a ocupar o seu lugar de zero diante do infinito. Perdidos e sós no grande descampado, sentem-se desamparados e vulneráveis como crianças. Amedronta-os a solidão de uma natureza que não se esconde por detrás de nenhum acidente, corajosa da sua nudez limpa e total.
Eu, porém, não navego nas águas desses desiludidos. A percorrer o Alentejo, nem me fatigo, nem cabeceio de sono, nem me torno hipocondríaco. Cruzo a região de lés a lés, num deslumbramento de revelação. Tenho sempre onde consolar os sentidos, mesmo sem recorrer aos lugares selectos dos guias. Embriago-me   na pura charneca rasa, encontrando encantos particulares nessa pseudo-monotonia rica de segredos. Nada me emociona tanto como um oceano de terra estreme, austero e viril. A palmilhar aqueles montados desmedidos, sinto-me mais perto de Portugal do que no castelo de Guimarães. Tenho a sensação de conquistar a pátria de novo e de a merecer. O chão das outras províncias já se não vê, ou porque vive coberto pela verdura doméstica de oito séculos, ou porque a erosão levou toda a carne do corpo e deixou apenas os ossos. Mas a terra alentejana pode contemplar-se ainda no estado original, virgem, exposta e aberta. E é nela que encho a alma e afundo os pés, num encontro da raiz com o húmus da origem. Abraço numa ternura primária as léguas e léguas duma argila que permanece disponível mesmo quando tudo parece semeado. O corpo, ali, pode ainda tocar o barro de que Deus o criou.

Miguel Torga
http://www.youtube.com/watch?v=MQRJKSCnH0o

domingo, 9 de junho de 2013

As visitas


Caem co'a calma as aves intermináveis do passado,
os tentilhões, as poupas, os noitibós,
crianças cegas e desamparadas
também elas, agora que se perderam de nós.

Anjos sonâmbulos pousados no telhado
das noites de insónia (espécie de curvatura
da insónia para dentro de si
sobre paisagens desabitadas).

Onde se refugiará de dia
a sua alada materialidade,
em que desvãos da realidade ou da literatura,
entre restos de coisas que li:

Sá de Miranda (caem co'a calma as aves),
Junqueiro (as andorinhas da infância),
e dias errantes, casa vazias,
camiões de mudanças,

remorsos, lentas estações:
e aves, agora como eu
desprovidas de centro e de tempo
agora, como eu, apenas emoções?

Manuel António Pina
Sabugal, 6/8/11
http://www.youtube.com/watch?v=Xl71VPq6LiE

domingo, 2 de junho de 2013

As águas livres


Fragmentos, ecos, pedaços de memórias. Coisas soltas, sem nexo:
Ainda se peneirava a farinha para fazer o pão, havia nos armários uma série de peneiras redondas, encaixadas umas nas outras e com redes de malhas diferentes.
E havia o ferro velho, que comprava garrafas e frascos de vidro, tubos vazios de pasta de dentes, jornais, papéis, pregos, latas, fechaduras estragadas ou partidas.
E o farrapeiro, que chegava à procura de roupa velha e pedaços de tecido, peles de coelho e tranças de mulheres. Vinha de carroça e por cada saco de vinte e cinco quilos que enchia de farrapos recebia do patrão travessas e pratos de faiança, que depois vendia no mercado. Dos cabelos entrançados das mulheres    faziam-se perucas, uma arte difícil sobre a qual ele pouco dizia, a não ser que às vezes era preciso tingirem-se os cabelos, numa cor ao gosto de quem encomendava. Prometeu que um dia nos mostrava uma peruca pronta, que ia trazer na carroça, dentro de uma caixa de chapéus, mas nunca chegou a trazê-la.
E havia a peixeira, o leiteiro, o padeiro, o latoeiro, o mola-tesouras. E "o velho da areia", que aparecia uma vez por mês e vendia um tostão e meio de areia branca muito fina com que se areavam os tachos, frigideiras, talheres, objectos de ferro ou de alumínio, esfregando-os com força com um pano molhado passado pela areia. Era um velho magro, de bigode amarelado de nicotina e um cheiro insuportável a mau tabaco, a suor e a pó, no capote alentejano que trazia aos ombros no inverno. Gostava de crianças e ria muito connosco quando vínhamos ao portão do quintal. Reparávamos então que os seus óculos estavam baços e o capote se começava a desfazer nos ombros.

Teolinda Gersão
http://www.youtube.com/watch?v=zOhbSWR2XN4

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Poema do Homem Só


















Sós,
irremediavelmente sós,
como um astro perdido que arrefece.
Todos passam por nós
e ninguém nos conhece.

Os que passam e os que ficam.
Todos se desconhecem.
Os astros não se explicam:
arrefecem.

Nesta envolvente solidão compacta,
quer se grite ou não se grite,
nenhum dar-se de dentro se refracta,
nenhum ser nós se transmite.

Quem sente o meu sentimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem sofre o meu sentimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem estremece este meu estremecimento
sou eu só, e mais ninguém.

Mas este íntimo secreto
que no silêncio concentro,
este oferecer-se de dentro
num esgotamento completo,
este ser-se sem disfarce,
virgem de mal e de bem,
este dar-se, este entregar-se,
descobrir-se e desflorar-se,
é nosso, de mais ninguém.

António Gedeão
http://www.youtube.com/watch?v=MUt7qmSvxLI

domingo, 12 de maio de 2013

Estilo


- Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio... Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã num quarto vazio, acende-se um cigarro... Está a ver? A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida... compreende?... a nossa vida, a vida inteira, está ali como... como um acontecimento excessivo... Tem de se arrumar muito depressa. Há felizmente o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é um modo subtil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação. Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos, do Amor ou da Morte. Percebe? Uma dessas abstracções que servem para tudo. O cigarro consome-se, não é?, a calma volta. Mas pode imaginar o que seja isto todas as noites, durante semanas ou meses ou anos?

Herberto Helder
http://www.youtube.com/watch?v=_jXKIy_2p5U

domingo, 5 de maio de 2013

Mãe


Eu sou aquela que os vê.
E caminho pelos seus caminhos e sou a
fogueira distante.
O tempo não me apaga.
Tenho os pontos cardeais e sou a bússola nas
suas mãos,
quando eles vão sobre as águas.
Sou os mapas, a constelação, o cruzeiro do sul,
o arado, o cão,
aquela que os guarda.
Sou o regaço, as belas plumas do meu regaço,
a imensa luz de amor que cai sobre a sua
penumbra,
sobre a sua loucura.
Sou a mãe da sua vida, da sua morte.
E vou com eles, espalhando as rosas tristes,
e os meus cabelos espalham sobre os seus
cabelos as raízes brancas.
Sou aquela que escreve quando eles dormem,
sou as palavras através do sono.
E adormeço com eles,
fechando as últimas portas.

José Agostinho Baptista
http://www.youtube.com/watch?v=BcXxfQHd2WQ

domingo, 28 de abril de 2013

Família


A toalha de mesa era nova e só se usava nesses almoços ao domingo. Havia uma garrafa de laranjada de vidro grosso ao centro da mesa, ao lado do vinho.
Nesses dias, não faltava sol no quintal. Agora, parece-me que eram sempre domingos de uma primavera em que já se imaginava o verão. E as galinhas debatiam um assunto calmo na capoeira, as coelhas ameigavam os filhos na coelheira, os pombos atiravam-se em voos desde o pombal. A claridade desse tempo entrava pela janela e pousava sobre a mesa posta, a melhor terrina com canja, os melhores copos, os guardanapos dos dias de festa. A televisão a cores brilhava. Estava ligada e não importa o que estivesse a dar. Eu tinha entre seis e quinze anos (1980-1987).
Depois, chegou uma altura em que essa toalha de mesa, já mais desbotada, começou a ser usada nas refeições dos dias de semana. Lavada muitas vezes, tornou-se mais suave ao toque. Ganhou nódoas que já não saíam e, um dia, tornou-se demasiado velha até para esse uso. Então, a minha mãe rasgou-a e transformou-a num esfregão. Agora, até esse dia é remoto. Até o dia em que a minha mãe decidiu pôr o esfregão no lixo é remoto.
Esses almoços de domingo moldaram a minha vida.
Tenho a idade que os meus pais tinham durante esses almoços e pergunto-me se eles olhariam para mim da mesma maneira que eu, agora, olho para os meus filhos.
Talvez os meus pais já fossem capazes de imaginar este momento, eu crescido, estas crianças à mesa, a minha mãe com setenta anos e o meu pai sem estar cá.
Chego a casa de uma das minhas irmãs. A televisão está ligada num dos canais de desenhos animados. As vozes fingidas dos bonecos misturam-se com as nossas vozes, reais, a dizerem palavras que, para mim, com trinta e oito anos, são demasiado nítidas.
Sinto-me culpado. Diante de todas as escolhas, como diante de cruzamentos, quando escolhi caminhos que me afastavam dos almoços de domingo, senti-me sempre culpado. Os almoços nunca são na minha casa. Não tenho casa para almoços de domingo.

José Luís Peixoto
http://www.youtube.com/watch?v=WDWq5I-Znkk

domingo, 21 de abril de 2013

Livro das Horas


A tradição familiar me acompanha. Cedeu-me um repertório de acertos e desacertos. Uma bagagem que atualiza certos episódios, como os dois anos vividos em Borela, em comunhão com a natureza galega.
Na casa da avó, o mundo me exaltava. Sentia-me Atlas a reter a esfera da Terra em suas mãos. Enfrentava, destemida, a geografia adversa, enquanto aprendia o galego, o espanhol, os costumes locais, o substrato da grei  de que me originara.
Aos poucos aprendia a respeitar as funções milenares das aldeias, a entender as peculiaridades inerentes ao camponês galego. Não me furtava a participar das ocorrências diárias, que já faziam parte da minha vida. Em especial da colheita do milho, que exigia celebração. Afinal, o milho salvava-os da fome, da inclemência do inverno.
Reunidos no pátio da casa da avó Isolina, desfolhávamos as espigas que seriam estocadas no belo hórreo, ou canastro, localizado atrás da casa.
O clima era festivo. Eu copiava a diligência com que eles retiravam a palha da espiga até ao sabugo, jogada dentro das cestas empilhadas à nossa frente. Dali a espiga iria para o canastro, construção hoje clássica do cenário galego.
O trabalho árduo só era interrompido para a merenda regada a vinho e a histórias fomentadas pelas intrigas. Na expectativa todos de surgir a qualquer momento a espiga vermelha alçada à categoria de relíquia. E isto porque quem a obtivesse ganhava o direito de cobrar um beijo de quem fosse. Um achado que propiciava festejar os sentidos, entoar canções com poemas de Rosalía de Castro e rubores no rosto, além de acanhamentos.

Nélida Piñon
http://www.youtube.com/watch?v=6fmkJoWCcw8

domingo, 14 de abril de 2013

Pequena Feiticeira



Com a idade de 17 meses
Tudo é novidade
O mundo está aí
Só para ti
Ao alcance da tua mão
dos teus passos
da tua vontade

Muito obstinada,
Adoras fazer experiências
Correr, saltar, trepar, andar para trás
Inventas variantes cada vez mais difíceis
Festejas com orgulho as tuas vitórias

Já descobriste o poder da palavra,
Minha pequena feiticeira,
Diverte-te imenso brincar com os sons
Mas repetir uma palavra exige de ti
Muita concentração.
Palminhas, palminhas,
Conseguiste!


domingo, 7 de abril de 2013

Minha Pátria


Minha pátria não é a língua portuguesa.
Nenhuma língua é a pátria.
Minha pátria é a terra mole e peganhenta onde nasci
e o vento que sopra em Maceió.
São os caranguejos que correm na lama dos mangues
e o oceano cujas ondas continuam molhando os meus pés quando sonho.
Minha pátria são os morcegos suspensos no forro das igrejas carcomidas,
os loucos que dançam ao entardecer no hospício junto ao mar,
e o céu encurvado pelas constelações.
Minha pátria são os apitos dos navios
e o farol no alto da colina.
A língua de que me utilizo não é e nunca foi a minha pátria.
Nenhuma língua enganosa é a pátria.
Ela serve apenas para que eu celebre a minha grande e pobre pátria
              muda,
minha pátria disentérica e desdentada, sem gramática e sem dicionário,
minha pátria sem língua e sem palavras.

Lêdo Ivo
http://www.youtube.com/watch?v=YIrMJ_ix0FA

quarta-feira, 27 de março de 2013

Dúvida


 
















O céptico sorriso da paisagem
Quando, funéreo, o sino
Avisa o mundo de que vai cerrar-se
O véu de trevas da Semana Santa!
A seiva é tanta
A borbulhar nas vinhas,
Voam com tal volúpia as andorinhas
Rente ao chão semeado,
É tão fresco, ligeiro e perfumado
O ar que se respira,
Que tem de ser mentira
O negro pesadelo anunciado.

Miguel Torga
http://www.youtube.com/watch?v=hPtwB_ph594

domingo, 24 de março de 2013

O que a vida me ensinou


Muitas vezes ia ao Campo Pequeno. Uma vez fui lá para me sentar ou para passear. Estava cheio de gente a  conversar ou a ler os jornais. Fui para um recanto mais pequeno, onde não estava ninguém. Eu gostava muito de estar a olhar para uma árvore e não estar a pensar. Não lia o jornal,  nem nada. Sentei-me no banco e estava com a mão em cima da travessa superior, com as costas da mão para cima. Não sei se isso tem algum significado. A certa altura um pardal veio pousar uns centímetros adiante da minha mão. Eu pensei como seria interessante se o pobre pardal pousasse em cima da minha mão. E o pardal realmente, daí a uns segundos, deu um salto para a minha mão. Continuei imóvel. O pardal não ficou por aí. Começou a subir-me pelo braço esquerdo, depois pousou no ombro um bocadinho, deu a volta às minhas costas, e pousou no lado direito. Mas também não ficou por aí. Deu um salto para a minha cabeça e começou a debicar na minha cabeça. Aí está um acontecimento inexplicável, em que há um pardal que vem ter comigo e eu senti-me assim relacionado com o Universo de uma maneira que não aconteceria a conversar com qualquer pessoa ou a ler o jornal. É uma coisa insignificante ou insignificável.
A vida não me ensinou nada.

António Ramos Rosa
(depoimento recolhido por Valdemar Cruz)
http://www.youtube.com/watch?v=-DpUtM9d_sA