sábado, 28 de dezembro de 2019

Paz

                   

                  Como ao terror do Inferno
                   Sucedeu 
                   O horror do Nada!
                   A inquietação moderna,
                   A antevisão
                   Da cósmica catástrofe,
                   Prometida
                   Por sábios e teólogos
                   Apocalípticos.
                   Divino Orfeu, vem tu salvar-nos.
                   Tange, de novo, a lira!
                   Amansa as feras.
                   Que o teu cantar volatilize
                   A estátua em bronze do deus Marte!
                   A esculpa, em oiro amanhecente,
                   Sobre o mais alto
                   Píncaro do mundo,
                   O Anjo simbólico
                   Da Paz.

                  Teixeira de Pascoaes
                         Pintura "O Poeta e o Anjo" de Mário Eloy
                         https://www.youtube.com/watch?v=XVn0dSKx0z0

domingo, 15 de dezembro de 2019

O Natal em Aveiro


Em todas as ocasiões importantes é na nossa casa de Aveiro que gostamos de nos reunir. No Natal, todos marcam presença e agora com as crianças (bisnetos) o “Menino” renasceu. A Teté (neta mais nova) ofereceu uns versos à avó Lena, em 2006, que retratam bem o espírito de Natal para nós:

Natal, casa cheia, animação, alegria…
Assim é o Natal cá em casa!!
Mesmo que passemos o ano todo separados
No Natal juntamo-nos…
Contamos as nossas últimas aventuras,
Brincamos uns com os outros,
Discutimos temas actuais
E falamos dos tempos de outrora.

Ao cheiro característico da casa,
Junta-se o aroma da comida e dos doces!
O barulho das tábuas a ranger
E as “luzes” no chão
São únicos desta casa
Que já viu tanta gente crescer!!

E aquele nervosismo miudinho
Que nos cresce depois da ceia de Natal,
Porque ainda falta fazer embrulhos,
Ou encontrar as palavras certas
Para um postal ou uma brincadeira,
Ou porque nos faltam os laços
Ou a fita-cola e a tesoura…

Ora o Natal não é prendas
Mas sim a alegria dentro de nós…
Porque as prendas chegam sempre
Atrasadas aos sapatinhos,
(Que normalmente são todos da Avó)
E têm sempre um papelzinho
Com o nome de cada um
Escrito à última da hora…

Aqui, o Natal nunca começa à meia-noite!!
Começa com o valor que damos à palavra FAMÍLIA!!

Com os bisnetos, iniciou-se um novo ciclo. Voltaram as correrias pela casa, a algazarra e os gritos de alegria por todo o lado. Felizmente,  de vez em quando abrandam e então dá gosto vê-los entretidos a brincar e a jogar. Mas na Noite de Natal as crianças ficam particularmente agitadas e costuma ser grande o rebuliço que precede a "chegada do Pai Natal". Depois, desembrulham as prendas o mais depressa possível e sentem-se as pessoas mais felizes do mundo porque vêem quase sempre os seus desejos concretizados. Dificilmente esquecerão estes momentos únicos vividos em família e com certeza não vão deixar morrer o espírito de Natal. 


https://www.youtube.com/watch?v=NuGHTthQj_I&list=RDEl_-n4wjA7E&index=5

domingo, 8 de dezembro de 2019

Entre flores e obras de arte









A terceira duquesa de Palmela, de seu nome completo Maria Luísa Domingues Eugénia Ana Filomena Josefa Antónia Francisca Xavier Sales de Borja de Assis Paula de Sousa Holstein Beck, era também terceira marquesa do Faial e terceira condessa do Calhariz e de Sanfrè.
A duquesa acompanhou as obras de restauro que promoveu no palácio, construído nos finais do século XVIII, que foi também redecorado com novas e valiosas peças que o casal Palmela adquiria em Portugal e no estrangeiro, onde muitas vezes passavam férias. O próprio avô Pedro tinha feito restauros e ampliações no palácio, para onde fora viver, depois de se reformar da política que tantas glórias e amarguras lhe causara. Restara-lhe a alegria de coleccionar obras de arte e transmitir à neta esse amor pelo Belo.
Sabe-se que a duquesa tinha um especial carinho pelas árvores e flores e que aprendeu mesmo horticultura para poder explicar aos jardineiros como tratar e cuidar das flores conforme as estações do ano. O palácio tinha sempre nas jarras flores frescas do seu jardim.
No lindíssimo estúdio que a duquesa mandou construir nas traseiras do palácio, entre flores e árvores, passava longas horas dedicada à escultura. Se bem que os motivos religiosos fossem uma das suas fontes de inspiração, muitos outros temas a encantaram, e também se dedicou a moldar e esculpir bustos de figuras conhecidas ou notáveis da sociedade do seu tempo. Artista, era amiga dos artistas auxiliando-os não apenas com o seu dinheiro mas também com o seu afecto, a sua solidariedade amiga, a aura que lhes criava. A ela se deve que Maria Amália tenha escrito uma das suas obras mais notáveis "A Vida do Duque de Palmela”. A duquesa, mais tarde, legaria a Maria Amália Vaz de Carvalho uma casa em Cascais e uma quantia em forma de pensão.
O casal Palmela, bem ao estilo da sociedade do seu tempo, fazia uma intensa vida social, sendo o Palácio do Rato local de encontros culturais, bailes e jantares de convívio com grandes nomes da cena internacional: de realçar as faustosas festas de Carnaval, que já vinham do tempo do avô Pedro, especialmente naquele ano de 1885,que contou com uma orquestra de ciganos do príncipe Esterhazy e também aquele memorável jantar onde se homenageou a actriz famosa Sarah Bernhardt, corria o mês de Novembro de 1895.

Maria Luísa V. Paiva Boléo (texto com supressões)
https://www.youtube.com/watch?v=QzLVmVXVjyU


domingo, 1 de dezembro de 2019

Fado da Tristeza


Não cantes alegrias a fingir
Se alguma dor existir
A roer dentro da toca
Deixa a tristeza sair
Pois só se aprende a sorrir
Com a verdade na boca

Quem canta uma alegria que não tem
Não conta nada a ninguém
Fala verdade a mentir
Cada alegria que inventas
Mata a verdade que tentas
Pois e tentar a fingir

Não cantes alegrias de encomenda
Que a vida não se remenda
Com morte que não morreu
Canta da cabeça aos pés
Canta com aquilo que és
Só podes dar o que é teu

José Mário Branco
https://www.youtube.com/watch?v=EjgroRhQKJA

domingo, 24 de novembro de 2019

A casa

         

         Um sossegado alento na penumbra de madeira.
          A casa adormeceu e está viva numa tranquila pulsação.
          Oiço um leve martelar de teclas de sombra.
          Um prato de cobre brilha verticalmente na obscuridade.
          A mesa é redonda e limpa como um círculo de
          harmonia.
          Numa parede flutuam arabescos cintilantes.
          O tempo segrega sílabas de argila e espuma.

          António Ramos Rosa
          (retirado de livro ilustrado com fotos de árvore de Belgais
               da autoria de Paulo Gaspar Ferreira)



            https://www.youtube.com/watch?v=QW94FTi60Fk

domingo, 17 de novembro de 2019

Poema

               Feita de sol é a carne que nos veste
            Os ossos, que são feitos de  luar.
            E a nossa alma é sombra
            A sonhar e a pensar, conforme é dia
            Ou noite, pois em nosso pensamento
            Esplende o sol.
            Mas ao luar é que se expande 
            O nosso dom fantástico, esse voo
            Sem fim do nosso ser
            Que ultrapassa as estrelas                  
            E alcança além do espaço a eternidade.
            E o infinito, além do espaço,
            E Deus, além dos deuses.

            Teixeira de Pascoaes
            (poema e desenho)
            https://www.youtube.com/watch?v=bWRy9ejTNe8

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Dormir na floresta


Pensei que a terra
se lembrasse de mim, tão
carinhosamente me recebeu de novo, ajeitando
as saias escuras, com os bolsos
cheios de líquenes e sementes. Dormi
como nunca, uma pedra
no leito do rio, sem nada
entre mim e o fogo branco das estrelas
a não ser os meus pensamentos e estes flutuavam
leves como mariposas por entre os ramos
das árvores perfeitas. Ouvi
toda a noite os pequenos reinos a respirarem
à minha volta, os insectos e as aves
que trabalham na escuridão. Toda a noite
me levantei e caí, como se estivesse dentro de água, a lutar
com uma fatalidade luminosa. De manhã
tornara-me em alguma coisa melhor
umas doze vezes pelo menos.


Mary Oliver
Mudado para português por Francisco José Craveiro de Carvalho
Pintura de Graça Morais
https://www.youtube.com/watch?v=lv_4xmh_WtE

domingo, 3 de novembro de 2019

Os Poetas

             


              Os Poetas
              Debruçados e mudos
              Esticam os arcos.
              Cegos
              Raramente acertam
              No alvo.

              HN       
                    https://www.youtube.com/watch?v=24avjNTjasY
                    Arte de Manuel Casimiro

             

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Brueghel e o fascínio



Lembro-me de estar no Museu do Prado e de me encontrar com O Triunfo da Morte, de Brueghel.
Não poderia descrever aqui o caos generalizado daquele mundo atacado por esqueletos ceifando, degolando, enredando, afogando, enterrando homens e mulheres de todas as classes e idades e profissões - que, em pânico, gritam, fogem, tentam ignorar ainda o massacre. Não é sequer uma dança macabra, mas a mais simples chacina. Um Apocalipse sem Jerusalém celeste. 
Há muito que ver. Num canto, um esqueleto mostra a um rei, vestido de arminhos e armadura, uma ampulheta inexorável. Algures, outro esqueleto apalpa as mamas de uma nobre roliça, enquanto um terceiro serve uma sopa de tíbias e caveira. Noutro canto, dois amantes trocam melodias e palavras de amor - logo imitados por um esqueleto, cheio de cínica complacência.
Por que não consigo desligar os olhos deste quadro?
Primeiro, porque é o maior jogo de massacre que conheço. Sem paciência: a morte tem de ser toda - e já - e não há desculpas para ninguém!
Em segundo lugar, porque há nessa sincronia tantas histórias citadas, tantas anedotas e provérbios e exegeses bíblicas e paródias e ironias e antíteses! O olhar fascinado não pára de desvendar micro-narrativas.
E finalmente: porque é tão divertido!
O quê, a morte?
Sim, claro, a morte.

Pedro Eiras
Pintura O Triunfo da Morte de Brueghel (Pormenores)
https://www.youtube.com/watch?v=S_nswb0Mh14

domingo, 20 de outubro de 2019

De repente...

                     

                 De repente, sem o teres esperado, a flor
                 nasce a partir do seu centro. Depois recebe
                 as cores, a flexibilidade da haste, o círculo
                 à volta de cada pétala. Aproximas-te mais
                 ao sentires o perfume e reparas na forma
                 que tinha sido por ti há muito imaginada,
                 o seu anel. É aí que tudo existe. Outras folhas
                 nasceram; por vezes estremecem. Segura-a
                 nos teus dedos. Está alta para tu a colheres.

                 Fernando Guimarães
                              Arte de Lourdes Castro
                              https://www.youtube.com/watch?v=fqKN4qKO0BM

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

As bolas de sabão

                       

                          As bolas de sabão que esta criança
                          Se entretém a largar de uma palhinha
                          São translucidamente uma filosofia toda.
                          Claras, inúteis e passageiras como a Natureza,
                          Amigas dos olhos como as coisas.
                          São aquilo que são
                          Com uma precisão redondinha e aérea,
                          E ninguém, nem mesmo a criança que as deixa,
                          Pretende que elas são mais do que parecem ser.

                          Algumas mal se vêem no ar lúcido.
                          São como a brisa que passa e mal toca nas flores
                          E que só sabemos que passa
                          Porque qualquer coisa se aligeira em nós
                          E aceita tudo mais nitidamente.

                           Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)
                           Pintura de Manet
                           https://www.youtube.com/watch?v=xyFF_5a02g4

domingo, 29 de setembro de 2019

O sol

                      

                 o sol,                    
                 a poeira 
                 lentíssima do sul

                 a pedra do ar
                 clara e mordida,

                 a branca e nua
                 e tão antiga
                 poeira do sol,

                 vem poisar-me 
                 nos olhos.

                 Ainda.

                 Eugénio de Andrade
                              Desenho de Álvaro Siza
                              https://www.youtube.com/watch?v=F0NvAjKGy6A

sábado, 21 de setembro de 2019

A casa do mar


Dentro de casa o mar ressoa como no interior de um búzio. Quando abro as gavetas a minha roupa cheira a maresia como um molho de algas. Profundos os espelhos reflectem demoradamente os dias. E em frente das janelas o mar brilha como inumeráveis espelhos quebrados. Os móveis são escuros e finos, sem verniz, encerados. O chão é esfregado, as paredes caiadas. Em todas as coisas está inscrita uma limpeza de sal. A exaltação marinha habita o ar. A casa é aberta e secreta, veemente e serena. Nela o menor ruído - tinir de louça, degrau que range, respiração do vento, comboio que ao longe passa - é escutado. A casa está atenta a cada coisa. Todos os dias a renovam. A mais leve nuvem que passa ensombra o vidro dos espelhos. Nela cada dia é único e precioso como se contivesse a totalidade do tempo. No brilho da mesa, na transparência do copo, há como que uma intensidade repousada. 
À esquerda da copa, no lado da casa que dá para a praia, fica a sala de jantar. Tem no meio uma mesa comprida rodeada de cadeiras e em cada ângulo dos muros pequenas cantoneiras de madeira.
No centro da mesa há um fruteiro redondo onde maçãs vermelhas se recortam sobre a madeira escura e contra a cal das paredes. Polidas e redondas as maçãs brilham e parecem interiormente acesas, como se as habitasse o lume de uma intensa felicidade à qual responde o luzir do mar cujo azul cintila entre as persianas. E, quando as vidraças estão abertas, o perfume seco das dunas mistura-se com o perfume das maçãs.

Sophia de Mello Breyner Andresen
Desenho de Júlio Reis Pereira
https://www.youtube.com/watch?v=OoVjz14Rx98

domingo, 15 de setembro de 2019

Saúdo o que não conheço

             

                Saúdo o que não conheço
                o inominável obscuro
                com palavras da mais pura incoerência
                ou que desejariam sê-lo e são ainda a trama demasiado consistente
                por onde passa o fulgor verde da matéria submersa
                Ah nós vivemos e morremos sem conhecer
                a glória da identidade intangível
                na sua secreta continuidade sob o manto do olvido!
                Procuramos uma abertura para o bosque interior
                e tentamos abrir o diafragma levemente
                para que a transparente rosa da transpiração floresça
                Em cada hausto procuramos a unidade pura
                em que o nosso hálito se confundiria com o sopro cósmico
                como uma constelação à plácida baía das águas superiores

                António Ramos Rosa
                Pintura: "Fábula" de El Greco
                https://www.youtube.com/watch?v=8daGqy3Jles

sábado, 7 de setembro de 2019

Plaza de Cólon

Plaza de Cólon com a estátua de Cristóvão Colombo



Plaza de Cólon, Monumento a Colombo

Madrid, 4 de Dezembro de 1892
Cristóvão Colombo, marítimo, casado em Lisboa na freguesia de Santos, hóspede do Sr. Agostinho de Ornelas na ilha da Madeira, sócio da Sociedade de Geografia, sucedeu-lhe um dia descobrir a América, e assim principou a festa.
Por esse eufemismo "descobriu a América", se deve entender unicamente que o que ele fez foi ir lá. Enquanto a descobri-la, a verdade é que a América nunca esteve - como por exemplo a nossa ameixa de Elvas - coberta. Pela regra por que Cristóvão Colombo a descobriu, também o primeiro americano que veio à Europa descobriu a Europa, e não há ninguém que na sua classe, mais ou menos, não tenha descoberto alguma coisa... não azedemos, porém, o debate com reivindicações pungentes, posto que justificadas, e narremos com serenidade os acontecimentos.
Com o pretexto de que ele a descobriu, fez-se-lhe um centenário. Bosch, o malogrado alcaide, gizou as festas. 
Forasteiros vieram. Hotéis subiram preços. Chuva caía. Grupos de provincianos, de gorra encarnada e medalha ao peito, passavam tossindo por baixo de gotejantes chapéus de chuva, e eram os órfãos. Lamentáveis estudiantinas em traje escolar do século XVll, colher de pau no chapéu de dois bicos, tacões tortos pateando o lamaçal, eram a mocidade estudiosa. Perante Bosch, constituído em júri de exame, pilhos em folga e mendigos em vilegiatura prorrompiam em saltos de tigre e em uivos de chacal, para o fim de serem contratados como feras do mato virgem na cavalgada histórica...

Ramalho Ortigão
https://www.youtube.com/watch?v=g1TFPPL6JRY

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Museu do Prado

24 de Maio de 1881

Enquanto Madrid tiver o seu Museu e o deixar ver aos estrangeiros, os estrangeiros não terão direito de pedir nenhuma outra coisa a Madrid. 
Que importa a má cozinha de pimentão, de azeite e de alho, que tão negras fomes fez passar a Dumas quando ele cá veio?
Que importa a ventania agreste, que representa aqui o papel da brisa, e da qual dizia Théophile Gautier que ela faz voar pelos ares não só os chapéus dos homens, mas os próprios cornos dos bois?
Que importa a melancólica e mísera exiguidade desse pobre rio Manzanares, que a municipalidade deveria ter o cuidado de mandar regar às tardes por causa do pó?...
Entrar no Museu de Madrid é na arte um facto tão importante, como é na religião o entrar no Santo Sepulcro Sepulcro em Jerusálem. 
Tenho-me por insuspeito. Não sou a respeito de coisa nenhuma o que se chama em absoluto um crente.
A pintura antiga é-me em geral antipática: em primeiro lugar, porque é antiga, o que é meio caminho andado para ser morta; e em segundo lugar, porque é respeitada. Desde que um artista principia a infundir nas turbas o respeito, ele está acabado como artista, e é apenas um manipanso.
Oh! como eu fui feliz a primeira vez que vi o divino Rafael, em o achar sinceramente, cordialmente, do fundo da minha alma, um belo e sublime sensaborão!
Mas no Museu de Madrid há alguma coisa excepcional e única, tanto na arte antiga como na moderna.
Há Velasquez e há Goya.
Goya é o pintor da força, e Velasquez é o pintor da vida.

Pinturas de Goya 








Goya representa na pintura a mais mordente expressão que pode assumir o sarcasmo, a mais explosiva forma que pode tomar o rancor e o ódio. A sua tinta insulta, infama e dissolve. Os seus pincéis açoitam como azorragues, lanham a pele, dilaceram as carnes. Nos ingredientes da sua factura entram as pedras preciosas e a lama infecta das ruas, a pulverização das pérolas moídas e a pólvora, o orvalho e o vitríolo.
Goya é na arte o precursor do niilismo social.


Pinturas de Velasquez









Velasquez é de per si só toda uma escola, todo um museu. A sua obra prodigiosa é a história inteira de um século. 
O largo ralo da sua visão abrange a vida em todas as suas manifestações, e fixa para a imortalidade todos os tipos preponderantes da sociedade do seu tempo, os tipos da corte e os da igreja, os tipos da rua e os da taverna, a nobreza e a vilanagem, o paraíso e o bordel. Galeria assombrosa de Reis e de histriões, de padres e de saltimbancos, de virgens e de cortesãs, de operárias e de princesas, de sábios e de comediantes, de heróis e de anões, de santos e de bêbados, de deuses e de mendigos, de cortesãos e de cínicos, de bobos e de mártires!

Ramalho Ortigão

https://www.youtube.com/watch?v=ydIC7D2oo7o

Madrid




24 de Maio de 1881
Às seis da manhã, à chegada do comboio de  Portugal à estação das Delícias, Madrid está ainda adormecida.
Uma carruagem de praça conduz-me com a minha bagagem através do Prado, onde estão fechadas todas as barracas da feira de Santo Isidro. Ao longo da calle de Alcalá, larga como um boulevard de Paris, os prédios, de estreitos balcões, revestidos de persianas, segundo a moderna arquitectura francesa, não dão o mínimo sinal de vida.
Subo ao quarto que me estava reservado no Grand Hotel de la Paix.
A praça da Puerta del Sol, sobre a qual se abrem as minhas janelas, está quase inteiramente deserta.
O grande repuxo do centro do largo chapinha na sua taça com estrépito vivaz e ribombante. Uma sentinela em grande uniforme está postada em frente à porta do palácio da Gobernación. Moços em mangas de camisa abrem as portas e espanam as vitrinas das lojas. Criadas de cabelos lustrosos, escrupulosamente penteadas, o pequeno chaile de ramagens cruzado no peito, com o cesto das compras de listras azuis e encarnadas enfiado no braço, dirigem-se ao mercado em curtas passadas elegantes e espertas. Vão-se abrindo a pouco e pouco, com olhos de sono, as janelas das casas...
Visto-me à pressa e vou para a rua.
Madrid tem tido grandes desenvolvimentos materiais desde que o vi pela última vez há doze anos.
As novas  ruas do bairro de Salamanca são espaçosas e alegres.  Os prédios têm construção elegante. A grande maioria das praças estão ajardinadas, e a água corre abundantemente por toda a parte.
Mas o novo Madrid perde de dia para dia a sua feição espanhola, infiltrada pelas influências do gosto e da arte francesa.
A bela e característica arquitectura hispano-árabe, tão notável nas edificações de Sevilha, de Córdoba e de Granada, tende a desaparecer completamente da Vila Coronada.
Na Puerta del Sol e na Calle de Alcalá não se sente mais que um reflexo do chic parisiense de exportação e de segunda mão.
Dos Pirinéus para cá prefiro a esse chic o simples salero.

Ramalho Ortigão 

https://www.youtube.com/watch?v=5D2mPeBoJHs

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Peniche


Muralhas do Forte de Peniche


Paredão


Nossa Senhora dos Remédios


Cabo Carvoeiro

Peniche é horrível. Por toda a parte por onde têm passado os homens dos municípios - por toda a parte transformaram terras cheias de carácter em terras incaracterísticas, com edificações banais, avenidas novas e chalés de zinco nos jardins. Degradaram tudo. Peniche, que foi uma fortificação e um ninho de piratas isolado e feroz, à espreita do naufrágio e da presa, cheira que tomba, e só conserva duas coisas interessantes: o cabo (hão-de deitá-lo abaixo) com a Senhora dos Remédios, e a esplanada, que é um esplêndido cenário para o último acto da Tosca. 
Só me ficou uma impressão grata. Perdi-me. Fui por uma rua fora e entrei por acaso num rés-do-chão, escola de rendeiras. Nenhuma teria mais de dez anos. Outras ainda menos. Algumas com dois palmos mal sabiam falar. E todas aquelas mulherzinhas, sentadas do chão e debruçadas sobre os bilros e os piques, levantaram a cabeça e puseram-se a rir para mim...Elas hão-de ser mulheres, eu hei-de ser mais velho do que sou, e não me passa a impressão de ingenuidade e de pureza, dos olhos a sorrir e dos biquitos abertos cor-de -rosa...
Daqui até ao cabo é meia légua através de muros, vinhas e casebres. Quero olhar para as Berlengas de mais perto. Desde que as vi fiquei cismático... A Senhora dos Remédios é escavada na rocha subterrânea,  junto a fragas enormes que mal se sustentam de pé e que os vagalhões assaltam formidavelmente. E no fundo do horizonte sempre aquelas três nuvens pousadas sobre o mar, chamando por mim. Atraem-me e fascinam-me.
                                                                         Agosto de 1919

Raul Brandão
https://www.youtube.com/watch?v=gKwsH-y0rUQ

domingo, 25 de agosto de 2019

Penela


Árvore tutelar

A ti me acolho
árvore tutelar da minha infância.
Conheço-te do tempo dos ninhos
quando descobri o mundo
na copa dos teus segredos
e senti no meu tronco
a seiva transbordante do teu corpo.
Por isso volto sempre ao teu regaço
para ver a lua, as estrelas, os pássaros
que pousam nos teus ramos
como os meus olhos em busca
do tempo aventuroso da raiz.

António Arnaut






                                
                               Castelo de Penela

                                        


                               Vista do castelo

                          
                     


                     Percurso da cascata da Pedra da Ferida





                               Percurso da cascata da Pedra da Ferida




                                Perto da cascata



                                           A cascata



                 Adeus a Penela


sábado, 24 de agosto de 2019

Autobiografia de Fernando Namora


A infância,então. A adolescência melancólica, a juventude dramatizada. Mas os anos longínquos quase se me esvaziaram. Talvez tivesse precisado de os esquecer. Às vezes persiste só um odor: resinas, urze, o chamuscar do porco na bárbara matança ritual, os refogados impregnando quanta vizinhança havia, à hora da ceia - a ceia do par de velhos cujo conduto para a broa era uma cebola apurada na frigideira. Tudo cheiros medulares e sugestivos. Às vezes um som: o vento nas ramarias, os sinos perdidos na charneca, os estalidos na madeira do tecto, o estrondo no castanheiro do fundo do quintal naquela noite de raios e coriscos, o piar nocturno de uma ave. Tudo sons que davam mistérios às coisas.
Com o tempo e o desaparecimento das pessoas, acentuou-se o meu pendor para a solitude. Errava pelos montes, observando os moleiros e os pastores, decorava livros inteiros de poesia, recitando-os para mim próprio no quarto que dava para a rua da vinha.


                           BURGO

          Meu velho burgo dormindo
          meu berço de heras
          poeira húmida
          de secos orvalhos
          minha lembrança 
          de presságios não cumpridos
          meu regaço de penas
          minha brisa alada
          burgo meu cais
          donde não parto nem volto
          aceno de asa
          sem mastros de largada
          minha água 
          de sede crestada
          burgo meu destino
          de fugir e restar
          sem haver partido

          Fernando Namora
          https://www.youtube.com/watch?v=GoahOy1Olfo