domingo, 30 de julho de 2023

Alentejano recoveiro de seu ofício


Pois, nessa tarde fria, vem à baila um homem de pelico, calçando botas de atanado, um homem metido consigo, recoveiro de seu ofício, que, depois de a muito custo aceitar um copo de vinho, nos desabafou parte da sua existência, com os braços erguidos: "Há quarenta anos que faço recados para as aldeias!"
- Tenho visto muito mundo, nestas andanças das aldeias, mas posso afiançar-lhe que nunca vi Inverno tão triste... Não vêm cantar às estradas os meus patrícios, perdeu-se a alma de outrora, é tudo uma dúvida... Ali fica a Igrejinha, uma terra gentil como uma charneca cor-de-rosa, cheia de trigo e de favas; mais para baixo, à distância do olhar de um maltês, fica a povoação de Lavre, com as suas ricas herdades, e Mora, com as suas ricas cortiças...
Por um rasgo de paz, tornei a encher o copo de vinho ao charnaquenho, meu irmão. Custosamente, só com a alegria do líquido, o homem conseguiu sorrir para a paisagem de Inverno.
- Está o tempo fusco, senhor. Nunca vi um Janeiro tão triste... - prosseguiu na sua voz cantada. - Vem aí a temporada dos ventos rijos. Na serra de Ossa nasce o temporal nalguma cova de ladrões, ou quem sabe se nasce das profundezas do mar salgado, a muitas horas de comboio daqui!...
Não havia dúvidas de que o homenzinho era mais um daqueles poetas que dão coragem às pessoas. No entanto, com uma réstia de incerteza, perguntei:
- Vossemecê faz versos?
- Eu? Que ideia! Não senhor, nunca fiz versos na minha vida! Quero lá saber disso! Só canto as modas de improviso e que os caminhos me ensinam. Veja que é fácil: anda-se por uma azinhaga e ouve-se o rouxinol, passa-se um alqueive e ouve-se a calhandra, o pintarroxo e a milheirinha. São nossos mestres desde a infância. E vêem-se as verduras das árvores a nascer todos os anos. Depois vem a chuva, o vento, o frio, a estorrina do sol, o céu misterioso e a existência que uma pessoa leva, e é isto que faz o Alentejo! E também falta o trabalho, sabe? E vem a fome disfarçada em almoços de ervas cozidas, catacuzes, poejos, vem a desgraça numa casa de campo. De maneira que se aprende a cantar. É isso mesmo que vossemecê vê. 

Antunes da Siva
Pintura de Joaquim Rosa


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