domingo, 9 de julho de 2023

Meu avô


o amor esteve ligado a ofícios, a trabalhos. À memória. Onde se inventa. E reconhece. Nunca a palavras:
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Um copo de leite frio, tapado com um guardanapo, à noite, na mesa-de-cabeceira.
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Meu avô a fazer barcos de cortiça, de casquinha de pinheiro, de balsa: caravelas, buques, traineiras, bacalhoeiros: alinhavam-se no alto do guarda-fatos, no mármore do aparador, nas mesas, por todo o lado. Esperavam a minha chegada. E eu ia de sala em sala, a abrir as portas, num rompante. E contava. Contava-os. Era uma contagem interminável. Havia sempre mais um barco escondido debaixo de uma cama, numa gaveta, no canto escuro da despensa. Meu avô acompanhava-me, silencioso. Silêncio aberto
o dele. 
Aberto para a minha alegria.
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tocava a roda, e a roda girava. O barro parecia ter fome do seu corpo: apanhava-lhe os dedos, a mão, o pulso, subia-lhe o braço até o cotovelo como um animal ainda informe. E o cântaro surgia. Eu não me cansava de ver todas as manhãs a criação do mundo: os ruídos atenuavam-se: o trote dos machos, a rede das vozes, de um lado ao outro da rua. E, no sossego que se ia fazendo, o barro tornava-se um objecto, íntegro, a escorrer uma luz avermelhada, um muco, uma água de sangue, nas mãos daquele velho. Que, cheio de cautela, o pousava na tábua ao lado de outros.

Rui Nunes
Pintura de Eduarda Lapa

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