sábado, 15 de julho de 2023

Autografia

Tenho a cabeça cheia de fábulas.
Basta olhar para uma porta de bandeiras
altas, ela abre-se, e no seu vão surge um
noivo antigo trazendo ao colo uma noiva
antiquíssima, branca e virgem, com um
diadema nos cabelos.

O amor que faço descer do tecto canta
do lado do Atlântico canções com trompete
que vêm de New Orleans ou de uma outra
cidade do Mississippi ainda mais longínqua.

Ele ainda não a pousou no leito e eu
continuo com a cabeça cheia de fábulas.
A porta deveria fechar-se, não consigo fechar 
a porta - Silêncio entre fechar e abrir esta porta.

Decorrem oito décadas, eu seguro os batentes
com toda a força dos meus pulsos, mas aí vem
a morte caminhando, munida de ossos e de foices.
Delicada posição para aqueles que ficaram além
do limiar da porta. São os meus avós maternos
quando ainda não tinham feito os filhos.
Levanto a pistola que não tenho e abato a morte...

Os netos do noivado regressam de muito longe
para uma celebração em família, um século mais tarde.
Só agora a noiva deixa cair os sapatos no soalho
e as meias ainda são de fio-de-escócia como 
muito antigamente.

Tenho na cabeça um relógio de adiar a morte.
Possuo uma chave que fecha e abre as portas
sobre o peito. Rodo a chave sobre as fábulas.
quando eu decido, ninguém morre.

Entrego estas fábulas intactas aos filhos dos filhos
dos seus filhos, eles viajam de avião com as fábulas
nos braços, façam delas alguma coisa útil.

Lídia Jorge
Pintura de Graça Morais


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