domingo, 27 de dezembro de 2015
O fósforo na palha
Choro
como um seixo. Reconheço a ferida
que o meu peso marca sobre a areia,
sulco inútil. O vento
limpa a duna, cobre
o eco do meu rastro.
Como um seixo! Se ao menos
uma criança me erguesse e me guardasse
no bolso do babeiro!
Egito Gonçalves
(escultura de Rui Chafes)
https://www.youtube.com/watch?v=FtrBUuVzpMY
sábado, 19 de dezembro de 2015
Os Girassóis de Van Gogh
Hoje eu vi
Soldados cantando por estradas de sangue
Frescura de manhãs em olhos de crianças
Mulheres mastigando as esperanças mortas.
Hoje eu vi homens ao crepúsculo
Recebendo o amor no peito.
Hoje eu vi homens recebendo a guerra
Recebendo o pranto como balas no peito.
E, como a dor me abaixasse a cabeça,
Eu vi os girassóis de Van Gogh.
Manoel de Barros
domingo, 13 de dezembro de 2015
Confidências
Senta-te ao meu lado, que eu vou contar-te a viagem que eu fiz. Dá-me a tua mão para que eu a conte bem!
Dei a volta ao mundo, fiz o itinerário universal. Tudo consta do meu diário íntimo onde é memorável a viagem que eu fiz desde o universo até ao meu peito quotidiano. Vim de muito longe até ficar dentro do meu próprio peito e defendido pelo meu próprio corpo.
Durante a viagem encontrei tudo disposto de antemão para que nunca me apartasse dos meus sentidos. E assim aconteceu desde aquele dia inolvidável em que reparei que tinha olhos na minha própria cara. Foi precisamente nesse dia inolvidável que eu soube que tudo o que há no universo podia ser visto com os dois olhos que estão na nossa cara. Não foi, portanto, sem orgulho que constatei que era precisamente por causa de cada um de nós que havia o universo.
E assim foi que todas as coisas que a princípio me pareciam tão estranhas começaram logo desde esse dia inolvidável a dirigirem-se-me e a interrogarem-me, quando ainda ontem era eu que lhes perguntava tudo. Ontem, cada um de nós viajava por todas as partes do universo, com aquele desejo íntimo de se encontrar, e se a viagem demorou mais do que devia é que não seria fácil acreditar imediatamente que cada um de nós estava, na verdade, em todas as partes do universo.
Ainda ontem o universo me parecia um gigante colossal capaz de me atropelar sem querer; e enquanto eu procurava a maneira de não ficar espezinhado pelo gigante, quem poderia, Mãe, ter-me convencido de que éramos nós próprios o gigante?
Ainda ontem o universo me parecia um gigante colossal capaz de me atropelar sem querer; e enquanto eu procurava a maneira de não ficar espezinhado pelo gigante, quem poderia, Mãe, ter-me convencido de que éramos nós próprios o gigante?
Todas as coisas do universo aonde, por tanto tempo, me procurei, são as mesmas que encontrei dentro do peito no fim da viagem que fiz pelo universo.
Almada Negreiros
(pintura de Almada Negreiros)
https://www.youtube.com/watch?v=dZknZcVtGr8
Almada Negreiros
(pintura de Almada Negreiros)
https://www.youtube.com/watch?v=dZknZcVtGr8
sábado, 5 de dezembro de 2015
Com licença poética
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado p´ra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição p´ra homem
Mulher é desdobrável. Eu sou.
Adélia Prado
( Pintura de Paula Rego)
https://www.youtube.com/watch?v=cs4d3QOHHsE
domingo, 29 de novembro de 2015
Bibliotecas
As bibliotecas deviam ser declaradas da família dos aeroportos, porque são lugares de partir e de chegar.
Os livros são parentes directos dos aviões, dos tapetes-voadores ou dos pássaros. Os livros são da família das nuvens e, como elas, sabem tornar-se invisíveis enquanto pairam, como se entrassem dentro do próprio ar, a ver o que existe para depois do que não se vê.
O leitor entra com o livro para o depois do que não se vê. O leitor muda para o outro lado do mundo ou para outro mundo, do avesso da realidade até ao avesso do tempo. Fora de tudo, fora da biblioteca. As bibliotecas não se importam que os leitores se sintam fora das bibliotecas.
Os livros são também toupeiras ou minhocas, troncos caídos, maduros de uma longevidade inteira, os livros escutam e falam ininterruptamente. São estações do ano, dos anos todos, desde o princípio do mundo e já do fim do mundo. Os livros esticam e tapam furos na cabeça. Eles sabem chover e fazer escuro, casam filhos e coram, choram, imaginam que mais tarde voltam ao início, a serem como crianças. Os livros têm crianças ao dependuro e giram como carrosséis para as ouvir rir e para as fazer brincar.
Os livros têm olhos para todos os lados e bisbilhotam o cima e o baixo, a esquerda e a direita de cada coisa ou coisa nenhuma. Nem pestanejam de tanta curiosidade. Podemos pensar que abrir e fechar um livro é obrigá-lo a pestanejar, mas dentro de um livro nunca se faz escuro. Os livros querem sempre ver e estão sempre a contar.
As bibliotecas só aparentemente são casas sossegadas. O sossego das bibliotecas é a ingenuidade dos ignorantes e dos incautos. Porque elas são como festas ou batalhas contínuas e soam canções ou trombetas a cada instante.
Valter Hugo Mãe
(Arte de JAS)
https://www.youtube.com/watch?v=paNhhUaLZXc
As bibliotecas só aparentemente são casas sossegadas. O sossego das bibliotecas é a ingenuidade dos ignorantes e dos incautos. Porque elas são como festas ou batalhas contínuas e soam canções ou trombetas a cada instante.
Valter Hugo Mãe
(Arte de JAS)
https://www.youtube.com/watch?v=paNhhUaLZXc
domingo, 22 de novembro de 2015
TRATAdoDITOeFEITO
Ao António Lobo Antunes
A estória é o que deitamos na panela a amornar nas cinzas
onde inesperado sopro lhe levantará fervura.
A cozinha é a cozinha como
uma rosa é uma rosa, querem
coisa mais simples? E se ao dizê-lo alto
não sentirem no ouvido
um fósforo riscar luz no ponto exacto
onde começa o corredor que leva
ao mais obscuro dos labirintos, a culpa é do
nosso compromisso anacrónico com a sinomínia, valor em queda
na bolsa das palavras com
as aplicações descendo dia-a-dia. Certifiquem-se
na banca da poesia, onde a prática mostra como
os dicionários se incompletam quando
afloram a palavra.
Júlio Pomar
https://www.youtube.com/watch?v=l7fy2Ixw84s
domingo, 15 de novembro de 2015
A cabeça no ar
andar nas nuvens, devanear,
voar, sonhar, falar no ar,
fazer castelos no ar
e ir lá para dentro morar,
ou então estar em qualquer sítio só a estar,
a respiração a respirar,
o coração a pulsar,
o sangue a sangrar,
a imaginação a imaginar,
os olhos a olhar
(embora sem ver),
e ficar muito quietinho a ser,
os tecidos a tecer,
os cabelos a crescer,
e isto tudo a saber
que isto tudo está a acontecer!
As melhores coisas são de ar,
só é preciso abrir os olhos e olhar,
basta respirar.
Manuel António Pina
(pintura de Zhongnai)
https://www.youtube.com/watch?v=SR_ejfbHaWw
domingo, 8 de novembro de 2015
Landgrave ou M.Helena Vieira da Silva
Lugar de aparição. Diálogo do visual e da visão. Onde do visível emerge a aparição. Assim no verso de Pascoaes vemos "O que há de aparição no seio da aparência".
Um rebrilhar de teatro. Multiplicando a luz imaginária da noite.
A luz inventada da noite.
As paredes, o chão, o tecto avançam para o fundo. Mas no fundo outro espaço desponta. E em cada espelho um novo espaço nasce.
É um lugar onde tudo está atento, denso de memória e de veemência. Lugar de revelação, de espanto e cismar e descobrimento.
As cores estão acesas como as luzes de um teatro à hora da representação. O mundo é "re-presentado", tornado mais uma vez presente. O ar está queimado pelas luzes como o ar de um palco. Todas as cores se reflectem uma na outra. Há um difuso tremular luminoso como o das escamas de um peixe. Os múltiplos espelhos formam uma rede de escamas: amarelas, cor de barro, cinzentas, rosadas, negras, cor de nácar, cor de pedra. Um pouco atrás as musas da penumbra tocam as suas finas flautas. É o rigor da música que estrutura a ordem das formas, as variações, o retomar dos temas, o contraponto da repetição.
Reconhecemos o tão atento olhar. Os olhos muito abertos como os olhos que estão pintados à proa dos barcos. O olhar que busca o aparecer do mundo, o surgir do mundo, o emergir do visível e da visão. Reconhecemos a viagem, a longa navegação, a memória acumulada. A atenção da Sibila, da bússola, do sismógrafo, da antena.
Sophia de Mello Breyner Andresen
https://www.youtube.com/watch?v=P4EuUDfGZIE
https://www.youtube.com/watch?v=P4EuUDfGZIE
sábado, 31 de outubro de 2015
O segredo da Mãe
Quando o Verão se aproxima, com os seus calores de cozedura e o Sol de bico mais amarelo, as mulheres da aldeia juntam-se, ao fim da tarde, e conversam em surdina. A reunião é logo à saída da aldeia, debaixo da sombra das árvores que se alinham pela rua: e elas fazem um círculo em volta do tronco, como se precisassem de um eixo para a sua conversa. As mulheres da aldeia são baixas, e é por isso que se podem juntar sob as ramagens que, embora estejam carregadas de folhas, não as impedem de se verem umas às outras, e de se rirem com as conversas que só elas ouvem, enxotando um ou outro homem mais curioso, que se procure aproximar.
Lembro-me de ter tentado saber de que falavam. À noite, já depois de todas terem voltado para suas casas, ia até junto da árvore e tentava ouvir o barulho que o vento fazia, por entre a folhagem, como se ainda aí subsistisse o eco das suas palavras. O mais que conseguia era entrever, por entre a agitação dos ramos, o rosto branco da Lua cheia que, ainda hoje não sei se se ria de mim ou, pelo contrário, me lançava um desses esgares de desprezo que os seres do alto atiram cá para baixo, quando sentem que os espreitam. Eu, no entanto, não espreitava ninguém, e muito menos a Lua, que só o acaso do movimento das folhas me punha diante dos olhos. Foi assim durante todo um Verão em que, cansado de ver essas reuniões das mulheres da aldeia, pretendi saber do que é que elas falavam, como se um segredo se pudesse desvendar sem mais nem menos.
A figura central dessas reuniões era a Mãe. Não sei se era a mais velha do grupo; mas era a que falava menos, e era em volta dela que se passavam as conversas mais sérias, já que muitas das frases que eram ditas em surdina despertavam risos abafados, como se não passassem dessas pequenas intrigas que animam os verões e despertam a imaginação de quem sabe que não terá outra oportunidade para se divertir, quando o frio fizer cair as folhas das árvores, fechando nas suas casas as mulheres e calando as suas conversas em volta das árvores. Mais estranho era ainda o facto de essa Mãe aparecer, muitas vezes, com uma ovelha às costas, e uma tesoura aberta na mão enluvada.
sábado, 24 de outubro de 2015
As maçãs de Cézanne
Um artista é um mestre do olhar. Gosto de pensar assim em Cézanne. Ele viveu narrando a apaixonada visualidade do mundo, mas mantendo-se à procura (em cada paisagem ou figura, em cada maçã) de alguma coisa que nunca se toca completamente. "O que eu procuro traduzir é mais misterioso, enxerta-se na própria raiz do ser, na fonte inapreensível das sensações" - explicava-se assim. Pintava sempre os mesmos objetos, e pintava-os por eles mesmos, pela sua ressonância espiritual. Tinha por técnica a sobreposição de cores sucessivas, que não se misturavam. Para obter esse efeito, precisava esperar que a primeira tinta secasse, para introduzir então a seguinte: um processo extraordinariamente lento, rigoroso e, claro, contemplativo. Concentrava-se na cor, sintetizava nela a experiência de revelação e a tomada de consciência das coisas. "A montanha pensa em mim, e eu torno-me a sua consciência" era um dos seus lemas. Por isso aquele que disse que "suspensas entre a natureza e a utilidade, as maçãs de Cézanne existem apenas para serem contempladas", não se enganou. Estas maçãs que podiam simplesmente estar sobre a nossa mesa são uma espécie de exercício proposto ao olhar. Essas pequenas esferas, leves e maciças, desenhadas nas frestas invisíveis da luz, iluminam o nosso modo instável de segurar o escuro.
https://www.youtube.com/watch?v=D25zQsfNPYY
domingo, 18 de outubro de 2015
Amadeo
Dos vários modelos de reconciliação, a frequência da cozinha de uma casa será por certo o mais antigo e o mais conseguido. Reconhecerá isto Amadeo quando pinta a "Cozinha da Casa de Manhufe", nesse calor de evocados convívios, solilóquios a que o lume crepitante faz companhia, presentificando gerações que vêm aconchegar o corpo dos viventes, dando ao diário fluir um gosto de coisa perfeita que se nos insere na pele. O ocre terno do reboco, que o castanho húmido das madeiras povoa de uma confidência temperada de seriedade, a negra crosta dos potes de três pés, onde se confeccionam riquíssimas substâncias ora gomosas ora enxutas, ora papudas ora rechinantes de gordura que rapidamente a si mesma se come, tudo faz parte dessa geografia vital. A cancela ficou aberta para as escadas de fora, e bem assim se ergueu a ventana, pois que estamos no São Miguel e na cozinha se abafa. Até quem cabeceia no trasfogueiro, ascende o cheiro do mosto e o hausto do saibro dos caminhos, em cujas margens as amoras se toldam de um sudário pulverulento. A cozinha de Manhufe é lugar de trempes e covilhetes de banha, espetos e alguidares onde o sangue suíno paulatinamente coagula sob a elástica película, as carnes salgadas se desfazem da enxúndia gelatinosa que implora o corte do vinho. O sol, então, acalenta ou doira. Estamos no ano de mil novecentos e treze, a cozinha é do homem e o homem dela, que mais falta para que a obra se cumpra?
Mário Claúdio
https://www.youtube.com/watch?v=5ze0Y8tDEWk
sábado, 10 de outubro de 2015
Painéis do Infante
Por quem chamava nos longínquos céus nocturnos
A verdade das estrelas nunca vistas.
A vossa face é a face dos elementos,
Solitária como o mar e como os montes
Vinda do fundo de tudo como as fontes
Dura e pura como os ventos.
Sophia de Mello Breyner Andersen
https://www.youtube.com/watch?v=TXGV0WM7M48
sábado, 3 de outubro de 2015
A Primavera de Botticelli
- Florença, Itália, final de tarde. Uma fila enorme de turistas aguarda a sua vez para visitar a Galleria Degli Uffizi. Falta escassa hora e meia para fecharem ao público e eu anseio por entrar...
Em suma, entro naquele mundo fantástico e viajo, de sala em sala, como se revisse, nas obras de arte, velhos amigos meus. Até que chego à sala de Botticelli... - Levanta-se da cadeira e, de forma teatral, abre os braços em toda a amplitude - e vejo-a. Ali está ela, à minha frente, imponente em tamanho e em beleza... A Primavera!
- A Primavera? - questionaram as duas amigas, incrédulas.
Ele sorri, reconhecendo que as baralhou um pouco.
- Sim, um dos quadros mais belos que já tive ocasião de ver. De repente, sinto-me a caminhar ao encontro de Vénus mas, quando estou quase a tocar-lhe, sou envolvido pelas Três Graças que dançam em redor de mim e não me consigo libertar do seu cerco. Mercúrio empunha o seu sabre na minha direcção, enquanto Amor, filho de Vénus, se prepara para me lançar uma das suas setas. Esta experiência terrível durou alguns segundos. Não sei como descrever o terror que senti! Estava prestes a gritar por socorro mas, simultaneamente, havia em mim um desejo profundo de prolongar aquela situação única... poder estar dentro de um quadro de Botticelli. Até sentia o perfume das laranjas nas árvores! Ainda hoje sinto o perfume daquelas laranjas...Quando terminou essa experiência, o meu corpo tremia, os meus joelhos fraquejavam e foi com o auxílio dos meus amigos que consegui fazer o caminho de regresso ao hotel. Uf!
- A Primavera? - questionaram as duas amigas, incrédulas.
Ele sorri, reconhecendo que as baralhou um pouco.
- Sim, um dos quadros mais belos que já tive ocasião de ver. De repente, sinto-me a caminhar ao encontro de Vénus mas, quando estou quase a tocar-lhe, sou envolvido pelas Três Graças que dançam em redor de mim e não me consigo libertar do seu cerco. Mercúrio empunha o seu sabre na minha direcção, enquanto Amor, filho de Vénus, se prepara para me lançar uma das suas setas. Esta experiência terrível durou alguns segundos. Não sei como descrever o terror que senti! Estava prestes a gritar por socorro mas, simultaneamente, havia em mim um desejo profundo de prolongar aquela situação única... poder estar dentro de um quadro de Botticelli. Até sentia o perfume das laranjas nas árvores! Ainda hoje sinto o perfume daquelas laranjas...Quando terminou essa experiência, o meu corpo tremia, os meus joelhos fraquejavam e foi com o auxílio dos meus amigos que consegui fazer o caminho de regresso ao hotel. Uf!
segunda-feira, 28 de setembro de 2015
Descrição da guerra em Guernica
onde aparece
a linha da garganta,
a curva distendida como
o gráfico dum grito,
o som é impossível; impede-o pelo menos
o animal fumegante;
com o peso das patas; com os longos
músculos negros; sem esquecer
o sal silencioso
no outro coração:
por cima dele; inútil; a mão desta
mulher de joelhos
entre as pernas do touro.
Cavalo; reprodutor
de luz nos prados; quando
respira, os brônquios;
dois frémitos de soro; exalam
essa névoa
que o primeiro sol transforma
numa crina trémula
sobre pastos e éguas; mas aqui
marcou-o o ferro
dos lavradores que o anjo ignora;
e endureceu-o de tal modo
que se entrega;
como as bestas bíblicas;
ao tétano, ao furor.
O incêndio desce;
do canto superior direito;
sobre os sótãos,
os degraus das escadas
a oscilar;
hélices, vibrações, percutem os alicerces;
e o fogo, veloz agora, fende-os, desmorona
toda a arquitectura;
as paredes áridas desabam:
mas os seu desenho
sobrevive no ar; sustém-no
a terceira mulher; a última; com os braços
erguidos; com o suor da estrela
tatuada na testa.
Carlos de Oliveira
https://www.youtube.com/watch?v=ZHzXoF5QIFs
segunda-feira, 21 de setembro de 2015
Klimt
Gostava de tratar do seu jardim. Foi aí que um dia aprendeu
que uma flor pode nascer dentro dos olhos. É essa interioridade
e não a flor que se deve pintar. Conseguiu fazê-lo. Por isso
do seu perfume é que chegam as cores e as formas. Talvez
as dos cabelos que ficam soltos, de um bracelete, de um leve tecido
circular. E também da nudez. Veio depois ensinar que ela existe
como se estremecêssemos quando um rosto principia a tocar outro
com suavidade. Há algumas linhas que se tornaram iguais a caules
inexistentes. Vemos pequenos triângulos, escamas douradas ou círculos
que permanecem à sua volta. Ele sabia ornamentar a morte.
Fernando Guimarães
https://www.youtube.com/watch?v=5h5Xc-rUef4
segunda-feira, 14 de setembro de 2015
Soneto dos túmulos
Escuta o adeus da grande voz sentida
Santa e Rainha, aguarda aquela vida
Que só depois do fim é começada.
Pedra de sonho e dor, foste lavrada
Pela saudade imensa aqui vivida;
Guarda a Saudade, pois, da despedida,
E a esperança da hora desejada.
Guarda a Saudade que jamais acaba,
Que o dia há-de vir, de amor contente,
Os que dormem aqui vão esperando.
E no fragor do mundo que desaba,
Hão-de acordar, sorrindo eternamente,
Os olhos um no outro enfim pousando!
Afonso Lopes Vieira
https://www.youtube.com/watch?v=1-5XPPkyCI8
domingo, 6 de setembro de 2015
Inês de Castro
De teus anos colhendo doce fruito
Naquele engano de alma, ledo e cego,
Que a Fortuna não deixa durar muito,
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus fermosos olhos nunca enxuito,
Aos montes insinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas
Do teu Príncipe ali te respondiam
As lembranças que na alma lhe moravam,
Que sempre ante seus olhos te traziam,
Quando dos teus fermosos se apartavam;
De noite, em doces sonhos que menriam
De dia, em pensamentos que voavam;
E quanto, enfim, cuidava e quanto via
Eram tudo memórias de alegria.
Luís de Camões
https://www.youtube.com/watch?v=tq9DF-1OCho
segunda-feira, 31 de agosto de 2015
Alcobaça
Transpõe-se o portal do Mosteiro: e entra-se de súbito numa atmosfera de irrealidade transcendente. De majestade austera. De espiritualidade sublime.
Ao alto, a pedra ganhou asas. A alma arrebatada, paira. Participa irresistivelmente do voo das colunas.
Reintegremos o templo na terra e no tempo em que se ergueu. O solo, e junto ao rio, está ainda coberto de florestas, pouco menos que virgens. E os grandes troncos das árvores seculares, unidos ao alto pelas possantes ramarias, deram aos pilares da nave e aos artesãos da abóbada o modelo natural e a lógica da ascensão abstracta para o céu; o resguardo íntimo e o silêncio augusto, propícios ao recolhimento e à prece. O arquitecto foi buscar às linhas dos fustes e ao entrosado das copas a síntese euclidiana das naves.
Por isso desde logo impressiona a sobriedade orgânica dos meios. Colunas e abóbadas são pura e desnuda arquitectura. O homem cujo espírito ordenou as abadias madres da Ordem de Cister, em Pontigny e Claraval (1114-1115) - São Bernardo, já anatematizara as esculturas românicas que decoravam as igrejas clunisianas, tão profusas de imagens "que o monge, dizia ele, é tentado bem mais a estudar as pedras do que os livros e a meditar mais nessas figuras do que na lei de Deus". As formas da vida, animadas por um sopro sensual e pagão, repugnavam ao misticismo do grande inspirador da arte cisterciense. O espírito católico, tal como São Bernardo o entendia, estava ameaçado de ser destruído pela invasão livre e laica da vida comunal. E era indispensável manter a fé militante e o ímpeto das Cruzadas na tensão suprema que leva aos grandes sacrifícios colectivos e dar-lhe expressão e permanência no seio místico do templo.
Jaime Cortesão
https://www.youtube.com/watch?v=ckgOT0tczdQ
https://www.youtube.com/watch?v=ckgOT0tczdQ
segunda-feira, 24 de agosto de 2015
Do tanque
limosa, verde, reflectiram-se:
primeiro um cisne soberbo,
depois gansos grasnando,
mais tarde rústicos patos.
E o tanque, se falasse,
diria: a minha vida,
feita de afectos por sombras,
é cada vez mais bela e pobre.
Fiama Hasse Pais Brandão
https://www.youtube.com/watch?v=yzXq9_uUYX8
domingo, 16 de agosto de 2015
No tempo dividido
Tudo quanto acontece é solitário
Fora de saber fora das leis
Dentro de um ritmo cego inumerável
Onde nunca foi dito nenhum nome
Sophia de Mello Breyner Andresen
https://www.youtube.com/watch?v=oE3v-VxbycM
sábado, 8 de agosto de 2015
As palavras abrem portas
que só elas abrem-fecham:
revolvem o pó da lembrança
batem no vidro do coração
temporário Jonas prisioneiro
Engolidas pela máquina do tempo
um dia irão reaparecer
em mudos ecrãs iluminados
Hão-de ser recopiadas
mas sem poderem já recuperar
o acre sabor metafísico
da sua perdida voz
Ana Hatherly
https://www.youtube.com/watch?v=rlh22OakuUs
domingo, 2 de agosto de 2015
Numa despedida
Eis-nos com cabelos brancos;
E, todavia, os barrancos
Do seu destino, e do meu,
Se nos quebraram as pernas,
As asas não as partiram.
Em altos sonhos deliram
As nossas almas eternas!
Depois de tantos baldões,
Devera ter-se ido a fé:
Temos tido pontapé
Das mais altas ilusões...
E não morre a mocidade!
Após enganos, enganos...
Pois só daqui a cem anos
Choraremos de saudade?
Camilo Pessanha
https://www.youtube.com/watch?v=BLAEK2xRoWA
domingo, 26 de julho de 2015
São Paio da Torreira
O São Paio da Torreira é a festa da ria e dos arredores. Acorrem à velha praia ribeirinha e marítima desde moliceiros, pescadores e donos de mercantéis, aos moços da lavoura e ao povo de toda a região. De ano para ano as confrarias do santo procuram melhorar os festejos, mas, quer os melhorem ou não, e se o tempo o permitir, são, em quaisquer circunstâncias, dias de festa rija e de grande animação, porque para isso bastam dois simples números do programa e estes nunca falham: a procissão do Santo com bênção da ria e do mar, onde os barcos se alongam como fiéis ajoelhados, e os arraiais populares com músicas esgrimindo entre si a taça do prestígio e da popularidade, barracas de comes e bebes, carrosséis, máquinas de forças, bancas de jogo batoteiro e, sobretudo, com a animação que o povo sabe dar a tudo quanto é do seu agrado.
Todos os anos a aldeia de São Jacinto se despovoa naqueles dias, e os homens, as mulheres e as crianças vão vivê-los no arraial do Senhor São Paio. Para isso juntaram o ano inteiro economias, e, apesar da fome, do luto, das histórias negras da ria, há sempre um lenço novo, uma blusa, uma camiseta ou umas calças, como se o Santo quisesse ver o povo bem vestido.
Quando chegavam à Torreira amarravam os barcos em ancoradoiros de ocasião, depois os homens juntavam-se aos homens, as mulheres às mulheres que arrastavam pela mão os filhos miúdos, e as raparigas às raparigas, não sem que as mães lhes tivessem chamado a atenção para o sítio do ancoradoiro e para as horas a que deviam regressar.
Então começava verdadeiramente o São Paio para o pessoal da ria. Depois duma rápida visita ao Santo, os homens iam para as barracas gastar os cobres de que dispunham e tentar a sorte na vermelhinha. As mulheres sentavam-se no adro olhando a mancha colorida do arraial. Por seu turno os jovens, moços e moças, ora passeavam ao longo das ruas embandeiradas, ora organizavam bailes populares animados por um harmónio ou uma concertina. Ouvia-se ao longe o bater das chinelas, e nuvens de pó iam tornando mais densa a atmosfera carregada de fumo e das vozes fanhosas dos gramofones.
No meio do bailarico erguia-se uma voz atrevida convidando ao despique, não raras vezes acabado com zangas e zaragatas:
Meu Santo Senhor São Paio,
Meu Santo rapioqueiro,
Se eu não me casar, pr´ó ano
Não te deixo mais dinheiro.
Augusto Lindolfo
https://www.youtube.com/watch?v=UCLaa6a86Uc
Quando chegavam à Torreira amarravam os barcos em ancoradoiros de ocasião, depois os homens juntavam-se aos homens, as mulheres às mulheres que arrastavam pela mão os filhos miúdos, e as raparigas às raparigas, não sem que as mães lhes tivessem chamado a atenção para o sítio do ancoradoiro e para as horas a que deviam regressar.
Então começava verdadeiramente o São Paio para o pessoal da ria. Depois duma rápida visita ao Santo, os homens iam para as barracas gastar os cobres de que dispunham e tentar a sorte na vermelhinha. As mulheres sentavam-se no adro olhando a mancha colorida do arraial. Por seu turno os jovens, moços e moças, ora passeavam ao longo das ruas embandeiradas, ora organizavam bailes populares animados por um harmónio ou uma concertina. Ouvia-se ao longe o bater das chinelas, e nuvens de pó iam tornando mais densa a atmosfera carregada de fumo e das vozes fanhosas dos gramofones.
No meio do bailarico erguia-se uma voz atrevida convidando ao despique, não raras vezes acabado com zangas e zaragatas:
Meu Santo Senhor São Paio,
Meu Santo rapioqueiro,
Se eu não me casar, pr´ó ano
Não te deixo mais dinheiro.
Augusto Lindolfo
https://www.youtube.com/watch?v=UCLaa6a86Uc
domingo, 12 de julho de 2015
Natureza-morta com frutos
1
O sangue matinal das framboesas
escolhe a brancura do linho para amar.
2
A manhã cheia de brilhos e doçura
debruça o rosto puro na maçã.
3
Na laranja o sol e a lua
dormem de mãos dadas.
4
Cada bago de uva sabe de cor
o nome dos dias todos do verão.
5
Nas romãs eu amo
o repouso no coração do lume.
Eugénio de Andrade
https://www.youtube.com/watch?v=dLqwBf_tzWk
domingo, 5 de julho de 2015
Oh as casas as casas as casas
Oh as casas as casas as casas
as casas nascem vivem e morrem
Enquanto vivas distinguem-se umas das outras
distinguem-se designadamente pelo cheiro
variam até de sala pra sala
As casas que eu fazia em pequeno
onde estarei eu hoje em pequeno?
Onde estarei aliás eu dos versos daqui a pouco?
Terei eu casa onde reter tudo isto
ou serei sempre somente esta instabilidade?
As casas essas parecem estáveis
mas são tão frágeis as pobres casas
Oh as casas as casas as casas
mudas testemunhas da vida
elas morrem não só ao ser demolidas
elas morrem com a morte das pessoas
As casas de fora olham-nos pelas janelas
Eu amei as casas os recantos das casas
Visitei casas apalpei casas
Só as casas explicam que exista
uma palavra como intimidade
Sem casas não haveria ruas
as ruas onde passamos pelos outros
mas passamos principalmente por nós
Na casa nasci e hei-de morrer
na casa sofri convivi amei
na casa atravessei as estações
respirei - ó vida simples problema de respiração
oh as casas as casas as casas
Ruy Belo
https://www.youtube.com/watch?v=b5ZjPD0eARE
segunda-feira, 29 de junho de 2015
A terceira miséria
A de quem já não ouve nem pergunta.
A de quem não recorda. E, ao contrário
Do orgulhoso Péricles, se torna
Num entre os mais, num entre os que se entregam,
Nos que vão misturar-se como um líquido
Num líquido maior, perdida a forma,
Desfeita em pó a estátua.
Hélia Correia
terça-feira, 23 de junho de 2015
As mulheres
E muitas transformam-se em árvores cheias de ninhos - digo,
As mulheres - ainda que as casas apresentem os telhados inclinados
Ao peso dos pássaros que se abrigam.
É à janela dos filhos que as mulheres respiram
Sentadas nos degraus olhando para eles e muitas
Transformam-se em escadas
Muitas mulheres transformam-se em paisagens
Em árvores cheias de crianças trepando que se penduram
Nos ramos - no pescoço das mães - ainda que as árvores irradiem
Cheias de rebentos
As mulheres aspiram para dentro
E geram continuamente. Transformam-se em pomares.
Elas arrumam a casa
Elas põem a mesa
Ao redor do coração.
Daniel Faria
https://www.youtube.com/watch?v=legjWFLBzak
domingo, 14 de junho de 2015
Presenças
Eles estão por dentro. Nas
palavras
e nos actos.
Nas cadeiras
nas gavetas
nos cabides e nos fatos.
Quando menos se espera
fogem dos retratos.
Tem cuidado quando te calças
eles podem esconder-se
nos sapatos.
Na sopa e na maçã
quem sabe se
no vinho.
Vê bem por onde vais
eles gostam das curvas
do caminho.
Na cama onde te deitas
nas camisas
e nas meias
no lençol com que te enxugas
no remédio que tomas para
desentupir as veias
no garfo sobre a mesa
nos copos e nos pratos
eles estão por dentro e por fora.
Podes crer que nunca ficam
nos retratos.
Manuel Alegre
https://www.youtube.com/watch?v=3Mx0NFKqeig
sábado, 6 de junho de 2015
(Quero dar-te...)
bago de arroz grão de areia semente de linho
suspiro de pássaro pedra de sal
som de regato
a coisa mais pequena do mundo
a sombra do meu nome
o peso do meu coração na tua pele
Rosa Lobato Faria
https://www.youtube.com/watch?v=iwvGq3W8OhI
domingo, 31 de maio de 2015
Gatinha ou dança?
Parece uma
bola
Com braços e pernas
A dançar
Braços e pernas
Movimentos perfeitos
Com passos de gatinha
A andar
Confiante e
alegre
Não se cala
Nham…nham!
NHAM!
Nhanhanhanhanha!...
Explora todos os cantinhos
Aponta em
todas as direcções
A chamar
Tão pequenina
Parece uma
bola
Com braços e pernas
A dançar
Triunfante
Gatinha ou dança?
31-05-2015
HN
HN
segunda-feira, 25 de maio de 2015
A casa
sem portas, sem paredes, sem telhado:
entrasse o mar por ela ouviria as sereias,
fosse outra vez verão seria só orvalho.
Eugénio de Andrade
https://www.youtube.com/watch?v=q-HAyqUPmeo
domingo, 17 de maio de 2015
A sombra do passado
Ó serra das divinas madrugadas,
Das estrelas, das nuvens e do vento
E das águias enormes, chamuscadas
De chegarem tão próximas do sol!
Ó trágico Marão! Ó serra esfíngica
De muda, triste, e austera face humana,
Com a cauda ondeante sobre o Minho
E as garras sobre a terra transmontana!
Ó velhas criaturas bem amadas
Já sepultas na eterna escuridão,
Vinde a mim! Vinde a mim! Nunca deixeis
De povoar a minha solidão!
Comigo divagai por estes ermos,
Onde ao menos eu sinto, meus Avós,
Esta alegria imensa de me ver
Quasi fantasma e sombra como vós!
Velhinha casa! Ó portas oscilando,
Desconjuntadas já das mãos do vento,
E amolecidas do contacto brando
Dos longos dedos húmidos da chuva.
Tristes ruínas que a Volúpia faz!
A volúpia do Tempo sensual
Que tudo abraça e beija e tudo funde
Em seu peito quimérico e espectral...
Para que tudo, em novo sentimento,
Em novo amor mais alto e mais profundo,
Em alegria nova e nova dor,
Para outra vida, surja em outro mundo!
Teixeira de Pascoaes
http://www.jamor.eu/se/t/teixeira-de-pascoaes-1.html
domingo, 10 de maio de 2015
E tudo era possível
Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido
Chegava o mês de maio era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido
E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer
Só sei que tinha o poder duma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer
Ruy Belo
https://www.youtube.com/watch?v=uX1zQboxAAk
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