terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Em cruz não era acabado





As crianças viravam as folhas
dos dias enevoados
e da página do Natal
nasciam os montes prateados

da infância. Intérmina, a mãe
fazia o bolo unido e quente
da noite na boca das crianças
acordadas de repente.

Torres e ovelhas de barro
que do armário saíam
para formar a cidade
onde o menino nascia.

Menino pronunciado
como uma palavra vagarosa
que terminava numa cruz
e começava numa rosa.

Natal bordado por tias
que teciam com seus dedos
estradas que então havia
para a capital dos brinquedos.

E as crianças com a tinta invisível
do medo de serem futuro
escreviam os seus pedidos
no muro que dava para o impossível,

chão de estrelas onde dançavam
a sua louca identidade
de serem no dicionário
da dor futura: saudade.

Natália Correia
Postais antigos portugueses

Natal de 1971


Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm?
Dos que não são cristãos?...
Ou de quem traz às costas
as cinzas de milhões?
Natal de paz agora
nesta terra de sangue?
Natal de liberdade
num mundo de oprimidos?
Natal de uma justiça
roubada sempre a todos?
Natal de ser-se igual
em ser-se concebido,
em de um ventre nascer-se,
em por de amor sofrer-se,
em de morte morrer-se,
e de ser-se esquecido?
Natal de caridade,
quando a fome ainda mata?
Natal de qual esperança
num mundo todo bombas?
Natal de honesta fé,
com gente que é traição,
vil ódio, mesquinhez,
e até Natal de amor?
Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm,
ou dos que olhando ao longe
sonham de humana vida
um mundo que não há?
Ou dos que se torturam
e torturados são
na crença de que os homens
devem estender-se a mão?

Jorge de Sena
Arte de Isabel Lhano

Natal é quando o homem quiser


Tu que dormes a noite na calçada de relento
Numa cama de chuva com lençóis feitos de vento
Tu que tens o Natal da solidão, do sofrimento
És meu irmão amigo
És meu irmão

E tu que dormes só no pesadelo do ciúme
Numa cama de raiva com lençóis feitos de lume
E sofres o Natal da solidão sem um queixume
És meu irmão amigo
És meu irmão

Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher

Tu que inventas ternura e brinquedos para dar
Tu que inventas bonecas e comboios de luar
E mentes ao teu filho por não os poderes comprar
És meu irmão amigo
És meu irmão

E tu que vês na montra a tua fome que eu não sei
Fatias de tristeza em cada alegre bolo-rei
Pões um sabor amargo em cada doce que eu comprei
És meu irmão amigo
És meu irmão

Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher


José Carlos Ary dos Santos
Pintura de Goya

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Nada tão silencioso


Nada tão silencioso como o tempo
no interior do corpo. Porque ele passa
com um rumor nas pedras que nos cobrem,
e pelo sonoro desalinho de algumas árvores
que são os nossos cabelos imaginários.
Até na íris dos olhos o tempo
faz estalar faíscas de luz breve.
Só no interior sem nome do nosso corpo
ou esfera húmida de algum astro
ignoto, numa órbita apartada,
o tempo caladamente persegue
o sangue que se esvai sem som.
Entre o princípio e o fim vem corroer
as vísceras, que ocultamos como a Terra.

Trilam os lábios nossos, à semelhança
das musicais manhãs dos pássaros.
Mesmo os ouvidos cantam até à noite
ouvindo o amor de cada dia.
A pele escorre pelo corpo, com o seu correr
de água, e as lágrimas da angústia
são estridentes quando buscam o eco.

Mas nós sentimos dentro do coração que somos
filhos dilectos do tempo e que, se hoje amamos,
foi depois de termos amado ontem.
O tempo é silencioso e enigmático
imerso no denso calor do ventre.
Guardado no silêncio mais espesso,
o tempo faz e desfaz a vida.


Fiama Hasse Pais Brandão

domingo, 3 de dezembro de 2023

Velhas árvores

Olha estas velhas árvores, mais belas 
Do que as árvores novas, mais amigas: 
Tanto mais belas quanto mais antigas, 
Vencedoras da idade e das procelas... 

O homem, a fera, e o inseto, à sombra delas 
Vivem, livres de fomes e fadigas; 
E em seus galhos abrigam-se as cantigas 
E os amores das aves tagarelas. 

Não choremos, amigo, a mocidade! 
Envelheçamos rindo! envelheçamos 
Como as árvores fortes envelhecem: 

Na glória da alegria e da bondade, 
Agasalhando os pássaros nos ramos, 
Dando sombra e consolo aos que padecem! 


Olavo Bilac

https://www.portugaldenorteasul.pt/11385/oliveira-mais-antiga-de-portugal-nasceu-ha-3350-anos

terça-feira, 28 de novembro de 2023

Os Justos

 




Um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire.

O que agradece que na terra haja música.

O que descobre com prazer uma etimologia.

Dois empregados que num café do Sul jogam um silencioso xadrez.

O ceramista que premedita uma cor e uma forma.

O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.

Uma mulher e um homem que lêem os tercetos finais de certo canto.

O que acarinha um animal adormecido.

O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.

O que agradece que na terra haja Stevenson.

O que prefere que os outros tenham razão.

Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo.

 

José  Luís Borges

Tradução de Fernando Pinto do Amaral

Pinturas de Francesco Clemente

https://www.youtube.com/watch?v=dD5ZV8qz1P0

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

A Sentinela Francesa

Oh! Maldita guerra!
Como entrei em Lisboa e me achei na minha casa, realmente não sei. Sim, lembro-me de passar no Rossio, e vê-lo cheio de uma multidão horrível - toda a população dos arredores refugiando-se, na fuga aterrada diante do inimigo. Era um caos de carros, de gado, de mobílias, de mulheres, gritando; uma massa brutal e apavorada, redemoinhando sobre si mesma, clamando por pão, sob a chuva implacável.
Dias amargos! Todos os meus cabelos encaneceram.
E pensar que durante anos nos podíamos ter preparado! E pensar que, à maneira de Inglaterra, podíamos ter criado corpos de voluntários (...)
Mas de que vale agora pensar no que se poderia ter feito! O nosso grande mal foi o abatimento, a inércia em que tinham caído as almas! Houve ainda algum tempo em que se atribuiu todo o mal ao Governo! Acusação grotesca que ninguém hoje ousaria repetir.
Os Governos! Poderiam ter criado, é certo, mais artilharia, mais ambulâncias; mas o que eles não podiam criar era uma alma enérgica ao País! Tínhamos caído numa indiferença, num cepticismo imbecil, num desdém de toda a ideia, numa repugnância de todo o esforço, numa anulação de toda a vontade... Estávamos caquéticos! O Governo, a Constituição, a própria Carta, dera-nos tudo o que nos podia dar: uma liberdade ampla. Era ao abrigo dessa liberdade que a Pátria, a massa dos Portugueses tinha o dever de tornar o seu País próspero, vivo, forte, digno da independência (..)
Por mim todos os dias levo os meus filhos à janela, tomo-os sobre os meus joelhos e mostro-lhes a SENTINELA! Mostro-lha, passeando devagar, de guarita a guarita, na sombra que faz o edifício ao cálido sol de Julho e embebo-os do horror, do ódio daquele soldado estrangeiro...
Conto-lhes então os detalhes da invasão, as desgraças, os episódios temerosos, os capítulos sanguinolentos da sinistra história... Depois aponto-lhes o futuro - e faço-lhes  desejar ardentemente o dia em que, desta casa que habitam, desta janela, vejam sobre a terra de Portugal, passear outra vez uma sentinela portuguesa!

Eça de Queiroz


quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Memórias das guerras contra a França



A guerra, ganha uma vez, podia ganhar-se novamente agora, disse Januário. Ele, Duarte Augusto, já a ganhara vinte sete anos antes, naquela mesma Casa. Com astúcia, imaginação e audácia, ponderando tudo a seu tempo:
Começara pelas janelas, em que mandara pôr grades de ferro, e pelas portas e portões, reforçados por trancas e barrotes. Vieram a seguir as munições, que lhe custaram noites de vigília a preparar, porque se tinham esgotado, léguas em volta, os cartuchos, a pólvora e as buchas. Para os primeiros, remediava-se com o material da caça, mas teve de improvisar as buchas.
Rematados assim com buchas caseiras, dera a cada um dez cartuchos, e reservara trinta para si próprio. O bastante para uma primeira arremetida. As restantes munições ficariam escondidas, a salvo de um saque que era preciso também considerar possível.
Posto isto, diversificou os lugares onde guardava as moedas, enterrando boa parte dentro de panelas, nos canteiros, com precaução.
Seguiu-se a reserva dos mantimentos, na adega e no sótão.
Depois de tudo pronto, despediram-se da Vila, meteram-se na carruagem e fingiram ir-se embora: Encheram o carro de malas e caixotes vazios e lá se acomodaram com puderam, ao cair da tarde, o Picoto chicoteando os cavalos, os cães seguindo em baixo, trotando entre as rodas, como nos carros de ciganos. Mas logo deixaram os cães, os cavalos e o carro noutra propriedade e voltaram a pé, no meio da noite, e passaram vários dias com as janelas fechadas, à luz de velas.
E assim tinham escapado de todo o perigo, disse Duarte Augusto, assim ele salvara toda a família como Moisés no deserto, como um capitão de mar  alto o seu navio -
Ai que mentira, riu a Maria Badala, disse Benta. O velho Duarte Augusto conta tudo a seu modo, mas não foi nada assim:
Nessa altura o velho era novo e fechou-nos em casa com medo dos franceses, nós e uma cabra, que ficava na adega, para dar leite às meninas.
Era tudo um desespero, só se cozinhava quando havia vento, para não se ver o fumo subir da chaminé, e água também não havia, era preciso ir buscá-la à fonte, e só de noite, pouca de cada vez e às escondidas (...)

Teolinda Gersão (texto com supressões)
Fotos do Monumento aos Heróis da Guerra Peninsular, Porto


Defesa da não-violência


Existe agora um novo cuidado: a paz.

Os soberanos que hoje se aconselham com seus ministros decidem, apenas por

sua vontade, se o grande massacre começará este ano, ou no próximo ano. Sabem

muito bem que todos os discursos deste mundo não impedirão, quando assim

decidirem, de mandar milhões de homens para o matadouro. Escutam com prazer

semelhantes dissertações pacíficas, encorajam-nas e delas participam.

Longe de serem nocivas, estas são, pelo contrário, úteis aos governos, porque

desviam a atenção dos povos e os afastam da questão principal, essencial: Deve-se 

ou não submeter-se à obrigatoriedade do serviço militar?

"A Paz será dentro em pouco organizada, graças às alianças, aos congressos,

aos livros e aos opúsculos. Neste ínterim, enverguem seus uniformes e fiquem 

prontos a, por nós, cometer e a sofrer violências", dizem os governos; e os doutos 

organizadores de congressos e os autores de memórias pela paz aprovam.

Assim agem e assim pensam os cientistas desta primeira categoria. Sua atitude

é que mais proveito traz aos governos e portanto a que mais os encoraja.

O ponto de vista de uma segunda categoria é mais trágico. É o dos homens aos

quais parece que o amor pela paz e a necessidade da guerra são uma terrível

contradição, mas destino do homem. São, em sua maioria, homens de talento, de

natureza impressionável, que vêem e compreendem todo o horror, a imbecilidade

e toda a barbárie da guerra; mas, por uma estranha aberração, não vêem e não

procuram nenhuma saída para esta desoladora situação da humanidade, como se

deliberadamente quisessem revolver a chaga.


Leon Tolstoi  (trad. de Celina Portocarrero)

Pinturas alusivas à invasão da Rússia por Napoleão:
“Batalha de Borodino”, 7 de setembro de 1812, por Louis Lejeune (1822); “O fogo de Moscou”, de Albrecht Adam; “Marechal Ney na retaguarda na batalha de Kaunas”, por Auguste Raffet (1812); “Retirada francesa”, de Illarion Pryanishnikov .



Poema da Terra Adubada


Por detrás das árvores não se escondem faunos, não.

Por detrás das árvores escondem-se os soldados

com granadas de mão.

 

As árvores são belas com os troncos dourados.

São boas e largas para esconder soldados.

 

Não é o vento que rumoreja nas folhas,

não é o vento, não.

São os corpos dos soldados rastejando no chão.

 

O brilho súbito não é do limbo das folhas verdes reluzentes.

É das lâminas das facas que os soldados apertam entre os dentes.

 

As rubras flores vermelhas não são papoilas, não.

É o sangue dos soldados que está vertido no chão.

 

Não são vespas, nem besoiros, nem pássaros a assobiar.

São os silvos das balas cortando a espessura do ar.

 

Depois os lavradores

rasgarão a terra com a lâmina aguda dos arados,

e a terra dará vinho e pão e flores

adubada com os corpos dos soldados.


António Gedeão

https://www.youtube.com/watch?v=m0GTEyE2r5k

Pintura de josé Luís Bardasano


A guerra

 Sermão nos Anos da Rainha D. Maria Francisca de Sabóia, 1668

Assunto grande chamei ao deste dia (deixada por agora a segunda parte

dele), não só porque neste dia, com tão devidas demonstrações de alegria,

festejamos os felizes anos da Rainha sereníssima (que Deus nos guarde por

muitos), senão porque neste dia se cerra venturosamente aquele grande ano, tão

grande que nem Portugal o teve igual, nem o Mundo o viu maior. Os anos e os dias

do Mundo fá-los o curso do Sol; os anos e os dias dos reinos, fazem-nos as ações

dos príncipes. O Sol pode fazer dias longos; dias grandes só os fazem e podem

fazer as ações(...)

As desconsolações gerais que padecia Portugal o ano passado e ainda na

entrada do presente, se atentamente as considerarmos, todas se reduzem a três: a

guerra, o casamento, o governo. Na guerra estava o povo aflito, no casamento

estava a sucessão desesperada, no governo estava a soberania abatida. E em

todas juntas? — O Reino perigoso e vacilante (...)

Começando pela desconsolação da guerra, e guerra de tantos anos, tão

universal, tão interior, tão contínua: oh que temerosa desconsolação! É a guerra

aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais

come e consome, tanto menos se farta. É a guerra aquela tempestade terrestre, que

leva os campos, as casas, as vilas, os castelos, as cidades, e talvez em um

momento sorve os reinos e monarquias inteiras. É a guerra aquela calamidade

composta de todas as calamidades, em que não há mal algum que, ou se não

padeça, ou se não tema, nem bem que seja próprio e seguro. O pai não tem seguro

o filho, o rico não tem segura a fazenda, o pobre não tem seguro o seu suor, o nobre

não tem segura a honra, o eclesiástico não tem segura a imunidade, o religioso não

tem segura a sua cela; e até Deus nos tempos e nos sacrários não está seguro. Esta

era a primeira e mais viva desconsolacão que padecia Portugal no princípio deste

mesmo ano. Mas que bem no-la consolou Deus com a felicidade da paz, de que nos

fez mercê!

Que de tempos costuma gastar o Mundo, não digo no ajustamento de qualquer ponto

de uma paz mas só em registar registar e compor os cerimoniais dela! Tratados

políticos, mas quantos degraus se hão de subir e descer, quantas guardas se hão de

romper e conquistar, antes de chegar às portas da paz, para que se fechem as de

Jano? E depois de aceitas, com tanto exame de cláusulas, as plenipotências; depois

de assentadas, com tantos ciúmes de autoridade, as juntas; depois de aberto o

passo às que chamam conferências, e se haviam de chamar diferenças; que tempos

e que eternidades são necessárias para compor os intricados e porfiados combates

que ali se levantam de novo? Cada proposta é um pleito, cada dúvida uma dilação,

cada conveniência uma discórdia, cada razão uma dificuldade, cada interesse um

impossível, cada praça uma conquista, cada capítulo e cada cláusula dele uma

batalha, e mil batalhas. Em cada palmo de terra encalha a paz, em cada gota de mar

se afoga, em cada átomo de ar se suspende e pára. Os avisos e as postas a correr e

cruzar os reinos, e a paz muitos anos sem dar um passo (...)

P. António Vieira

Pintura de Cândido Portinari

https://www.youtube.com/watch?v=_LUJVOJMRr0


segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Espanha, Cáceres 1935/36

Convinha perguntar como viveu Manuel Mena aqueles meses de angústia crescente. O que fez, o que pensou, o que sentiu enquanto a sua terra e o país se partiam em duas metades, possuídas por um mesmo ódio.
Manuel Mena não passou em Ibahernando o ano anterior à guerra. Passou-o em Cáceres, onde frequentou o último ano do secundário. Vivia no Arco de Espanha, junto à praça Mayor, em casa de um sargento da Guarda Civil que fizera amizade com a família quando dirigia a esquadra de Ibahernando. Manuel Mena quase não deixara verdadeiros amigos na povoação, porque os seus novos interesses de adolescente o afastaram dos relacionamentos da infância. Mas visitava frequentemente a vila para ver a mãe e os irmãos e não há dúvida de que estava ao corrente da situação explosiva por que passava Ibahernando que era mutatis mutandis, a situação explosiva por que passava o país; também não há dúvida de que estava ao corrente dos receios da família e da curta passagem pela prisão do seu irmão Juan. Dedicou aquele ano lectivo de 1935/36 exclusivamente aos estudos ou, apesar do gosto e do seu interesse por eles e da consciência de que não podia descurá-los, a politização geral do país levou-o também a politizar-se? Não há dúvida de que durante a guerra, ou durante a maior parte dela, Manuel Mena foi um falangista convicto - um falangista muito mais falangista que franquista, supondo que realmente fosse franquista -, mas sê-lo-ia também antes da guerra? Ou tornou-se falangista ao começar da guerra, como a maior parte dos falangistas?
É impossível responder a essas questões. No início de 1936 a Falange em Espanha era um partido muito minoritário. O partido como tal não existia em Ibahernando e os seus candidatos nacionais nunca obtiverem aí um único voto. Mas nada disto significa que em Cáceres Manuel Mena não fosse atraído pelo idealismo romântico e antiliberal, pelo radicalismo juvenil, pela vitalidade irracionalista, pelo entusiasmo da liderança carismática e pela forte influência dqquela ideologia tão na moda em toda a Europa. Pelo contrário. A Falange era um partido que com a sua vocação antissistema, o seu prestígio jovial de novidade absoluta, a sua recusa em aceitar a distinção tradicional entre direita e esquerda, a sua proposta de uma síntese que superasse ambas, o seu perfeito caos ideológico, a sua demagogia cativante, parecia feito de propósito para atrair um estudante acabado de sair da sua povoação (...)

Javier Cercas
https://www.youtube.com/watch?v=Y9YHAq_UPo4

Jose Garcia Narezo



Juli Gonzalez





sábado, 14 de outubro de 2023

Cáceres

A cidade monumental de Cáceres fica situada na Estremadura espanhola apenas a cerca de 90 Km da fronteira portuguesa. Em 1986 foi reconhecida pela UNESCO como uma cidade Património Mundial.
Ruas, praças, palácios, igrejas e muralhas, em excelente estado de conservação, dão-nos a conhecer as extraordinárias manifestações artísticas que as três culturas: cristã, muçulmana e judaica deixaram nesta cidade.

Y así van las horas,
paso a paso,
al pie de las torres,
dónde se alzan, centinelas de modorra,
las cigüeñas
de Cáceres.
 
Su cielo de fuego,
recorren palomas,
aviones, cernícalos,
y la gente,
paso a paso
come, bebe, duerme,
se propaga.

Miguel Unamuno
















domingo, 24 de setembro de 2023

Quando voltei...



Quando voltei encontrei os meus passos
Ainda frescos sobre a húmida areia.
A fugitiva hora, reevoquei-a,
- Tão rediviva! nos meus olhos baços...

Olhos turvos de lágrimas contidas.
- Mesquinhos passos, porque doidejastes
Assim transviados, e depois tornastes
ao ponto das primeiras despedidas?

Onde fostes sem tino, ao vento vário,
Em redor, como as aves num aviário,
Até que a asita fofa lhes faleça...

Toda essa extensa pista - para quê?
Se há-de vir apagar-vos a maré,
Como as do novo rasto que começa...

Camilo Pessanha

Foz do Arelho ou Primeiro Poema do Pescador

Este é apenas um pequeno lugar do mundo
um pequeno lugar onde à noite cintilam luzes
são os barcos que deitam as redes junto à costa
ou talvez os pescadores de robalos com suas lanternas
suas pontas de cigarro e suas  amostras fluorescentes
talvez o Farol de Peniche com seu código de sinais 
ou a estrela cadente que deixa um rastro
e nada mais.

Um pequeno lugar onde Camilo Pessanha voltava sempre
talvez pelo sol e as espadas frias
talvez pela orquestra e os vendavais
ou apenas os restos sobre a praia
"pedrinhas conchas pedacinhos d'osso"
e nada mais.

Um pequeno lugar onde se pode ouvir música
o vento o mar as conjunções astrais
um pequeno lugar do mundo onde à noite se sabe
que tudo é como as luzes que cintilam
um breve instante
e nada mais.
                                                        Manuel Alegre
                                                        Foz do Arelho, 8.8.96


sábado, 23 de setembro de 2023

Recordações da Foz do Arelho



Nas manhãs seguintes nem te vi na praia. Mas, dias depois (três, segundo tu dizes), como fosse noite de haver cinema nas Caldas, fomos e viemos juntos - da Foz até às Caldas, das Caldas até à Foz - na mesma trôpega camioneta da carreira. Juntos? Juntos é uma força de expressão. Eu, como habitualmente, com a malta do meu grupo, em grande vozearia nas traseiras do calhambeque; tu, como habitualmente, com duas das tuas tias a estibordo, a terceira a bombordo - todas quatro muito compostas, para não dizer muito hirtas, nos dois primeiros bancos da viatura. 
No caminho da ida, ainda com a luz do dia, os teus cabelos escuros, vistos de longe e de trás, faiscavam, por vezes, com os mesmos lampejos acobreados daquelas uvas pretas que pendiam, já maduras, de uma ou outra vinha ao longo da estrada.
Era com a Eva Gadner, garantes tu, o filme que nessa noite se exibia; e que nunca te sentiste, como nessa noite, tão deprimida diante de um filme. Tinhas ido para o balcão, eu para as últimas filas da plateia; não nos vimos sequer durante os intervalos. À saída passaste muito indiferente por mim  - "Olá, boa noite"- , mas já eu tinha decidido, ao contrário do que estava combinado, não acompanhar os do meu grupo ao casino. O mais provável, vendo bem, era não arranjarmos boleia para o regresso; e de repente não me entusiasmava mesmo nada a perspectiva de ter de fazer, com os meus companheiros, e a exemplo do que amiúde acontecia, dez quilómetros a pé aí pelas três da manhã. 
Minutos depois, ao desembocar na praça quadrangular onde pela manhã se vendia fruta, lá estavam vocês as quatro, formando um único bloco entre meia dúzia de vultos dispersos, a aguardarem a chegada da camioneta junto do edifício dos Bombeiros.
A camioneta chegava sempre, como desde sempre o sabíamos, por volta da meia-noite e quarenta; mas apenas à uma e dez - era a última carreira - é que pontualmente arrancava. Entretanto, ao longo de meia hora, ambas as portas escancaradas, aquela carcaça acolhia, na sua semiobscuridade, quem já a esperava e quem depois aos poucos ia chegando. Nem uma lâmpada se acendia no interior. Bocejos; ranger de molas; conversas a meia voz. Em noites mais húmidas, o bafo das respirações e embaciar os vidros das janelas. 
Desta vez a noite não estava húmida. E havia já quase meia hora que vocês as quatro tinham entrado. na camioneta. Eu, ao contrário do que era costume, permanecia cá fora, no passeio, como se estivesse afinal à espera de alguém...

David Mourão-Ferreira (texto com supressões)


sábado, 9 de setembro de 2023

O vento, aqui...


O vento, aqui, traz o cheiro da praia até à casa.
As estrelas pousam nos telhados devagar; às vezes caem
e assustam os cães que ladram e nos acordam de noite
em vez dos sonhos. Os dias têm mais horas, não sei porquê.

De manhã o pão vem morno e guarda o sabor da lenha que o cozeu.
Comemos em silêncio sobre uma toalha de quadrados azuis.
A louça é limpa, a água mata todas as sedes, o peixe respira
até chegar ao lume. E os dias têm mais horas, não sei porquê.

Trouxeram-me de longe para ver se te esquecia,
se me encantava com as crianças dos vizinhos que se enrolam
às nossas pernas como gatos mansos e não param de nos fazer
perguntas; se era capaz de consolar-me com o cheiro do barro
e do leite fresco que paira nas cozinhas; se aprendia
com o mar, que ao fim da tarde vem roubar algas
aos penhascos, para que estes se esqueçam dela para sempre.
Em vão, porém. Há tantas horas dentro destes dias...

Maria do Rosário Pedreira
Pintura de Frida Kahlo

domingo, 27 de agosto de 2023

As maçãs

Da alma só sei o que sabe o corpo:
onde a esperança e a graça
aspiram ao ardor
da chama é a morada do homem.
Vê como ardem as maçãs
na frágil luz de inverno.
Uma casa devia ser
assim: brilhar ao crepúsculo
sem usura nem vileza
com as maçãs por companhia.
Assim: limpa, madura.

Eugénio de Andrade

domingo, 20 de agosto de 2023

Coimbra de António Nobre


Moro numa alta, numa velha Torre,
Cheia de sonho e de legenda, até!
Pelos seus muros verde suor escorre,
Porque, há mil anos, que ela está de pé!

Olhai o Sol que entre salgueiros morre,
E a velha Coimbra, enoitecendo, vê!
Aqui, sozinho, moro nesta Torre,
Com o meu cão e o velho e leal Joseph.

Sobe ao terraço: aqui, "fora de portas",
Perto das nuvens, nas regiões serenas,
Moram as minhas esperanças mortas:

Vê-as ao canto... Pobres andorinhas!
Nas asas têm já tão poucas penas,
Que parecem um bando de velhinhas...

Coimbra, 1889


Para as raparigas de Coimbra

Minha capa vos acoite,
Que é pra vos agasalhar:
Se por fora é cor da noite,
Por dentro é cor do luar...

Vou encher a bilha e trago-a
Vazia como a levei!
Mondego, que é da tua água?
Que é dos prantos que chorei?

Ó quem me dera abraçar-te,
Contra o peito assim, assim,
Levar-me a morte e levar-te
Toda abraçadinha a mim.
 
A cabra da velha Torre,
Meu amor, chama por mim;
Quando um estudante morre,
Os sinos chamam, assim.
 
Ó sinos de Santa Clara,
Por quem dobrais, quem morreu?
Ah, foi-se a mais linda cara
Que houve debaixo do Céu!

Coimbra, 1890

quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Quietude



Que poema de paz agora me apetece!
Sereno,
Transparente,
A sugerir somente
Um rio já cansado de correr,
Um doce entardecer,
Um fim de sementeira.
Versos como cordeiros a pastar,
Sem o meu nome em baixo, a recordar
Os outros que cantei a vida inteira.

Miguel Torga

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Natália Correia visita Torga





Em Coimbra, na casa de Miguel Torga, que visitávamos sempre que acedíamos à cidade, Natália Correia perturba-se. O escritor abeira-se do fim. Deitado num divã, junto à janela do escritório onde nos recebe, sidera-nos com o seu desespero branco: "Ainda bem que vou morrer, não assistirei à agonia de Portugal. Portugal vai desaparecer nesta CEE, a sua cultura, a sua economia, não aguentarão os embates que lhe vão ser impostos. Onde estão os políticos, os intelectuais, que não vêem isso? É catastrófica a sua falta de lucidez!"
Ele não acreditava que " o País sobrevivesse integrado na comunidade Europeia",  repetia, repetia - qual Camões após Alcácer Quibir. "Portugal está a ser destruído por dentro, pelo centrão que o sequestrou através do voto para o roubar, enganar, aviltar", arquejava, olhando para lá dos vidros da saleta onde o corpo se lhe desfazia. 
Preocupado com a tosse de Natália (a doença tomara-a já), levantou-se, foi buscar um estetoscópio e obrigou-a a deixar-se consultar. "Não está nada bem", sussurraria. Sentou-se à secretária e prescreveu-lhe uma receita. A última que passou. "Em vez de a aviar numa farmácia vou guardá-la como recordação, um tesouro", decidiu ela comovida...

"Oh, Pátria minha tão bela e perdida", irrompe no auto-rádio, de regresso a Lisboa, o coro do Nabuco de Verdi. Então ela eleva a voz, abre a janela e canta, e leva-nos a cantar, lágrimas e entoações soltas ao infinito: "Oh, mia Patria si bella e perduta, Patria mia perduta"..."
O carro oscila e, alado, ergue-se da estrada, deixando as luzes do casario de Coimbra para baixo, para baixo, e, por eternidades, voga à altura do Va Pensiero, à altura da paixão de Torga e Natália pelo país que os almou para sempre. 

Fernando Dacosta


Miguel Torga o insubmisso



Coimbra, 20 de Junho de 1975 

Estranha revolução esta, que desilude e humilha quem sempre ardentemente a desejou. A mais imunda vasa humana a vir à tona, as invejas mais sórdidas vingadas, o lugar imerecido e cobiçado tomado de assalto, a retórica balofa a fazer de inteligência. Mas teimo em crer que apesar de tudo valeu a pena assistir ao descalabro...



Chaves, 11 de Setembro de 1975

LAMENTO

Pátria sem rumo, minha voz parada
Diante do futuro!
Em que rosa-dos-ventos há um caminho
Português?
Um brumoso caminho
De inédita aventura, 
Que o poeta, adivinho,
Veja com nitidez
Da gávea da loucura?

Ah, Camões, que  não sou, afortunado!
Também desiludido,
Mas ainda lembrado da epopeia...
Ah, meu povo traído,
Mansa colmeia
A que ninguém colhe o mel!...
Ah, meu pobre corcel
Impaciente,
Alado
E condenado
A choutar nesta praia do Ocidente...

Miguel Torga
Retrato de Isolino Vaz



Coimbra, 1 de Nov. de 1983

Memória
De todos os cilícios, um, apenas
Me foi grato sofrer
Cinquenta anos de desassossego
A ver correr 
Serenas
As águas do Mondego


Escultura que assinala o percurso que Miguel Torga fazia do seu consultório na Portagem até à beira do Mondego para ir apreciar a paisagem.

Obra concebida pelo arquitecto José António Bandeirinha e pelo artista plástico António Olaio.