sábado, 26 de março de 2011

Teoria da viagem


A viagem começa numa biblioteca. Ou numa livraria. Misteriosamente, ali prossegue, na claridade de razões antes recalcadas no corpo. Assim, antes do nomadismo deparamo-nos com o sedentarismo das estantes e das salas de leitura, ou mesmo dos lares onde se acumulam as obras, os atlas, os romances, os poemas, e todos os livros que, de uma forma ou de outra, contribuem para a formulação, realização, concretização da eleição de um destino. Todos os recantos de uma boa biblioteca conduzem ao mesmo sítio: o desejo de vislumbrar um animal extravagante ou colher uma planta exótica, a ambição de entrever uma borboleta rara, o anseio de descobrir um veio geológico numa mina, a vontade de caminhar sob um céu outrora assombrado por um poeta, tudo nos conduz a um ponto do globo cujo sinal cegamente guardamos.
O papel instrui as emoções, activa as sensações e aumenta a possibilidade de percepções preparadas. O corpo inicia-se em experiências vindouras face às informações generalizadas. Toda a documentação alimenta a iconografia mental de cada um de nós. A riqueza de uma viagem necessita, antes de mais, da densidade de uma preparação - da mesma forma que nos expomos a experiências espirituais convidando a alma à abertura, ao acolhimento de uma verdade submersa (...) Chegar a um lugar sobre o qual nada sabemos condena à indigência existencial. Na viagem, apenas se descobre aquilo que trazemos connosco. O vazio do viajante produz a vacuidade da viagem; a sua riqueza produz a sua excelência.

Michel Onfray
http://www.youtube.com/watch?v=4TlvMFdyUXI

sexta-feira, 18 de março de 2011

Provincianas


Olá! Bons dias! Em Março
Que mocetona e que jovem
A terra! Que amor esparso
Corre os trigos, que se movem
Às vagas dum verde garço!

Como amanhece! Que meigas
As horas antes de almoço!
Fartam-se as vacas nas veigas
E um pasto orvalhado e moço
Produz as novas manteigas.

Toda a paisagem se doura;
Tímida ainda, que fresca!
Bela mulher, sim senhora,
Nesta manhã pitoresca,
Primaveral, criadora!

Bom sol! As sebes de encosto
Dão madressilvas cheirosas
Que entontecem como um mosto.
Floridas, às espinhosas
Subiu-lhes o sangue ao rosto.

Cresce o relevo dos montes,
Como seios ofegantes;
Murmuram como umas fontes
Os rios que dias antes
Bramiam galgando pontes.

Pois bem. O Inverno deixou-nos.
É certo. E os grãos e as sementes
Que ficam doutros outonos
Acordam hoje frementes
Depois de uns poucos de sonos.

Cesário Verde
http://www.youtube.com/watch?v=4qQFxirB5Rc

domingo, 13 de março de 2011

Aveiro Ilustre


1884.
                                                                                              Meu caro Luís

Os nossos queridos amigos já lhe terão contado que uma verdadeira montanha de provas, uma serra de prosa a desbastar, se interpõe, à última hora, entre mim e o seu palheiro. Tive pesar em não tomar parte nessa bela peregrinação de amizade. Mas não desisto de ir palmilhar as areias da Costa e os pinhais da Gafanha. E, querendo Deus, talvez domingo apareça, se a V. ainda lhe restar paciência para alojar amigos. O sentimento de hospitalidade gasta-se: procure V. conservar uma parcela até que eu chegue. Hoje, tenciono ir para a Granja, estar com o Manuel um ou dois dias. Escreva V. para lá uma palavra (ao cuidado do Conde de Resende), dizendo se se sente em disposição de ver, logo depois da partida de dois amigos, chegar outro amigo, com outra mala, outro apetite, outra literatura, outra admiração convencional pela beleza do mar, outros defeitos e outros abraços...
                                                                                                       Muito amigo,
                                                                                                         QUEIROZ.


 http://www.youtube.com/watch?v=rj8yjZQDbhY

sexta-feira, 4 de março de 2011

Tuyutuya


"Acha que suportaria viver para sempre?" Tuyin não hesitou: "Claro que sim", garantiu. "Está bem, mas, antes de qualquer coisa, vamos fazer um teste", disse Tizanu. "O sono é uma espécie de morte provisória, um ensaio da morte. Se for capaz de dispensá-lo durante sete dias consecutivos, proporei aos deuses que transfiram minha imortalidade para você." Tuyin concordou mas, antes que se completassem quatro dias de vigília, adormeceu. Desapontado, tomou o caminho de volta para a sua cidade.
Vinha triste e chegou a Tuyutuya ao rair do dia. Mas ao deparar-se com a cidade orvalhada, sob a claridade do amanhecer, sua tristeza acabou. Ficou ali contemplando-a: Tuyutuya parecia sorrir-lhe, acolhedora. Um galo cantou glorioso: outro, mais distante, respondeu. Enternecido, Tuyin viu as primeiras pessoas saírem das casa, com seus instrumentos de trabalho, e rumarem para o campo. Demorou-se um pouco mais olhando de longe os muros patinados, as paredes das casas, os telhados, as janelas ainda fechadas. As coisas todas pareciam tocadas de eternidade. Aquela era a sua cidade, tudo o que ali vivera se impregnara na caliça das paredes, na madeira das portas, na pedra das calçadas. "A existência é para sempre em cada momento", pensou, invadido por uma renovada alegria.
Assim, atravessou a ponte levadiça e penetrou em Tuyutuya, reconciliado com o seu destino de homem.

Ferreira Gullar
http://www.youtube.com/watch?v=5menXv-eZbY&feature=related