segunda-feira, 29 de maio de 2017

No fundo do mar





No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.

Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.

Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.

Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.


Sophia de Mello Breyner Andresen
(ilustração de Fernanda Fragateiro)
https://www.youtube.com/watch?v=stcQlmM941k

domingo, 21 de maio de 2017

O livro



Entrei numa livraria. Pus-me a contar os livros que há para ler e os anos que terei de vida. Não chegam, não duro nem para metade da livraria.
Deve certamente haver outras maneiras de se salvar uma pessoa, senão estou perdido.
No entanto, as pessoas que entravam na livraria estavam todas muito bem vestidas de quem precisa salvar-se.

Comprei um livro de filosofia. Filosofia é a ciência que trata da vida; era justamente do que eu necessitava - pôr ciência na minha vida.
Li o livro de filosofia, não ganhei nada, Mãe! não ganhei nada. 
Disseram-me que era necessário estar já iniciado, ora eu só tenho uma iniciação, é esta de ter sido posto neste mundo à imagem e semelhança de Deus. Não basta?

Imaginava eu que havia tratados da vida das pessoas, como há tratados da vida das plantas, com tudo tão bem explicado, assim parecido com o tratamento que há para os animais domésticos, não é? Como os cavalos tão bem feitos que há!
Imaginava eu que havia um livro para as pessoas, como há hóstias para cuidar da febre. Um livro com tanta certeza como uma hóstia. Um livro pequenino, com duas páginas, como uma hóstia. Um livro que dissesse tudo, claro e depressa, como um cartaz, com a morada e o dia.

Eu queria que os outros dissessem de mim: Olha um homem! Como se diz: Olha um cão! quando passa um cão; como se diz: Olha uma árvore! quando há uma árvore. Assim, inteiro; sem adjectivos, só de uma peça: Um homem!

Almada Negreiros (texto e pintura)
https://www.youtube.com/watch?v=puPdW38FH_4

sábado, 13 de maio de 2017

Creio nos anjos...

                   

                    Creio nos anjos que andam pelo mundo,
                    Creio na Deusa com olhos de diamantes,
                    Creio em amores lunares com piano ao fundo,
                    Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,

                    Creio num engenho que falta mais fecundo
                    De harmonizar as partes dissonantes,
                    Creio que tudo é eterno num segundo,
                    Creio num céu futuro que houve dantes,

                    Creio nos deuses de um astral mais puro,
                    Na flor humilde que se encosta ao muro,
                    Creio na carne que enfeitiça o além,

                    Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
                    Na ocupação do mundo pelas rosas,
                    Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen.

                    Natália Correia
                    (caricatura de Vasco)
                   https://www.youtube.com/watch?v=8xhHxr2t4Ts

domingo, 7 de maio de 2017

Terras do Demo - Junho


Inácio Relvas Maturranga de Mioma gozava a tarde de Junho à sombra da latada que cobria de frescura o pátio antigo e o tanque, em que se vinham lançar águas de mina, deixando ao despedir do boeiro um soluço sem fim. Uma galinha dava aula aos pintainhos, mesmo debaixo de seus pés, e suspendeu a leitura de Comédia Ulyssipo a observar-lhes a manobra, trajados ainda do pêlo do demo, nas rémiges um pó de arco-íris, gárrulos e inocentes como os diabinhos dos velhos autos. A chieira que erguiam, ao prear mosca ou cibato perdido, quebrava o silêncio do lugar, fechado ao mundo, e aberto em toda a frente dele, ao horizonte infinito. Pinhais taciturnos, baldios de fieito e de sargaço eram levados na envolta efusiva do verde; e céu azul, terra em festa, os animaizinhos do Senhor cantavam. Cantavam. Cantavam todos nos seus jardins de serradela, ou à boca dos agulheiros, o grilo, o ralo, a cigarra vadia; na mata que, às horas do poente, estendia sua sombra pelos mortos, a rola e a poupa arrulhavam; e ali nas cerejas do quintal, que já tinham bichos, o passaredo moinante parecia uma aula de meninos mal criados. A Primavera despedia discretamente, sem avisar, vinha aí o Verão, um senhor Verão de chapéu de palha e cara pintada das amoras e das uvas. Aves e insectos celebravam a vinda estrondosa do grande rabaceiro, que lhes trazia fêmea, um silo, e farândolas de mosquitinhos loucos para encher o papo.