sábado, 28 de janeiro de 2012

Em Drave, 2007


Da chegada a Drave recorda sobretudo o eco dos balidos ressoando como gritos das centenas de cabras, que pareciam ter tomado de assalto a aldeia, que se estendia pela colina, procurando desesperadamente comida dentro e fora das casas em ruínas, por todos os recantos, equilibrando-se em cima dos pedregulhos, esticando-se, pulando e torcendo-se dispostas a tudo para alcançarem uma pontinha de erva tenra. Por outro lado a água corria até ao fundo do vale, local de confluência de três ribeiros, formando pequenos lagos. Entretanto, com surpresa, reparou na presença de alguns jovens, em fato de banho, à volta do rio. (Por momentos, chegou a pensar que se encontrava num local frequentado por veraneantes de praias fluviais.) Mas descobriram uma zona do rio onde não se encontrava ninguém com área e profundidade adequada para tomar banho. Várias pedras enormes situadas no leito do rio estrangulavam e impediam a passagem livre da água, que se precipitava formando um cascata. É claro que a Margarida entrou logo na água(...)
Após o banho, resolveram ir explorar a aldeia. Entretanto, de repente e como por encanto, desapareceram todas as cabras.  Drave que actualmente não tem moradores é constituída por dois núcleos habitacionais, com casas de pedra e telhado de xisto que se dispõem pela colina acima. A capela muito simples e pequena sobressai do conjunto porque se encontra caiada de branco. Caminharam através das estreitas e sinuosas ruas observando o que resta das casas. Aqui e ali, quando ainda havia porta, abriam-na e o cheiro quente a madeira permanecia a lembrar os tempos antigos. 

domingo, 22 de janeiro de 2012

Coração Andarilho


O que seria a Espanha para mim aos 10 anos? Um país que inicialmente se resumia a uma terra chamada Galícia, povoada de lendas e seres inquietos, dispostos a partir em busca de novos territórios. Habitantes, no entanto, movidos pelo instinto de volta, alimentados pelo fervor da saudade. Tendo como desculpa a origem celta, indomáveis desbravadores do imaginário.
Galícia recebeu-me ao longo de dois anos. Uma travessia cumprida através do meu crescimento físico, das descobertas incessantes, das mudanças sazonais, da conquista de duas línguas aprendidas simultaneamente, o galego, com paladar montanhês, que se fundiu um dia com o português, e o castelhano, altivo e descampado. Ambas as línguas impregnaram-me a sensibilidade para o viver linguístico de outros povos(...)
A partir de agosto, com as festas de verão, a vida se intensificava. A cada domingo havia que se deslocar para a aldeia cujo calendário celebrava o seu santo, o padroeiro do local. A protetora de Borela era Nossa Senhora de "Dolores"; cuja comemoração atraía amigos e curiosos. A festa começava com o leilão em que as famílias disputavam o privilégio de carregar sobre os ombros o andor com a santa em destaque. Após a missa, a praxe era a reunião no átrio, quando se dançava ao som dos gaiteiros contratados para esta finalidade.
As festas, quase medievais, pertencentes à comunidade, enfeitavam-se com flores, guirlandas, bandeiras, e havia fogos de artifício. Também leilões, feiras, exibições, comidas típicas, sem falar nas gaitas de foles.
Chamada de "a brasileira", eu participava intensamente dos festejos. Lidava com o tesouro das lavouras galegas, com as práticas camponesas, intuindo que aquele povo, condenado ao pungente esforço de arrancar da terra milho, batata, nabiças, também sabia rir, contar histórias, fruir o tempo, conquistar a América. E ainda amava as vacas, os porcos louros, gigantes como Teseu. Alguns destes suínos atingindo a marca de trezentos quilos de carne e gordura. Tal circunstância não lhes prejudicando a elegância, quando seguiam em direção ao rio. Pois, ao contrário do que se acreditava, tinham índole limpa, amavam a água. Banhavam-se longamente à beira do rio, fazendo companhia às lavadeiras(...)
Era comum sentar-me no final da tarde, ao lado dos velhos à beira da morte, cobrando-lhes histórias que podiam ser de um bisavô, vizinho, bandoleiro, do repertório da guerra civil.
E, enquanto eles davam início a uma narrativa sem tempo certo para encerrar-se, fui aprendendo que só saberia narrá-las no futuro, e com relativa fidelidade, se me convertesse na escritora que, a pretexto de falar de mim, estivesse, de verdade falando da coletividade, que é a única narrativa que merece subsistir.

Nélida Piñon
http://www.youtube.com/watch?v=BoE7JoFNdTo&feature=related

domingo, 15 de janeiro de 2012

Vitória


-Vitória!...Vitória!...
Na minha frente resplendia o espectáculo magnífico do Porco, transformado pela indústria do homem em pequenas obras-primas para o gosto e para os olhos, com cambiantes de cor que iam do  loiro das alheiras de Bragança às cacholeiras de Elvas, negras como a tinta dos chocos, passando pelas morcelas, em gancho, da Guarda. Sobre um chão de presuntos de Chaves, a que o colorau emprestava o tom ferrugento da areia, erguia-se um palanque de farinheiras em festa, à sombra das quais se repimpavam os paios de lombo, de coletes desabotoados, enquanto lá de cima, das prateleiras de vidro, pendiam linguiças como cabelos gordos duma bruxa ruiva e, aqui e ali, tal salpicadelas dum pincel de artista comilão, se reuniam em piquenique os salpicões de Portalegre, as placas de toucinho fumado com veios de pedra polida, as mortadelas, os painhos avinhados, os chouriços de sangue, os torresmos de Montijo, os rojões de Mirandela...
Era a apoteose ao Porco em toda a pujança duma  indigestão fabulosa numa barriga transparente!
Confesso que me apeteceu, pelo menos, arrotar de aplauso.
Em vez disso, porém - caminhos complicados os do homem! -, aquela paisagem grosseira inventou-me uma melodia delicada e espiritual de violino longo. E tive saudades.
Sim. Tive saudades absurdas da paz autêntica que nunca gozei, eu que pertenço a uma geração que já gramou - repito: que positivamente já gramou! - duas guerras universais com as respectivas consequências do ódio estrangulador de todas as pombas.
Senti saudades, não do passado, mas dum futuro qualquer, tão distante, tão lá no fundo, tão sonho, tecido apenas de pequenas coisas doces, num mundo menos pesado de cadáveres, desdenhosos de outro heroísmo que não fosse o de vivermos a teima dos dias persistentes e, sobretudo, alheio à horrível morte colectiva a substituir a boa, a individual, a sagrada morte de cada um.
-Vitória!...Vitória!...
...Assim cogitei toda a tarde, no oitavo dia do mês de Maio de mil novecentos e quarenta e cinco, data em que findou a segunda grande guerra mundial no meio de vivas e de bandeiras de triunfo, e em que tentei, em vão, resignar-me ao mundo dos ouros e às montras de enchidos de porco - sem estrelas reflectidas nos vidros.

José Gomes Ferreira
http://www.youtube.com/watch?v=uB14U2zNRjs

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Borda d'Água


Em janeiro, conta os dias que faltam
para o fim do inverno. Em fevereiro,
goza o carnaval. Em março, não te
esqueças da quaresma. Em abril, solta

o sol da primavera. Em maio,  as noites
são mais quentes. Em junho, atravessa
o solstício. Em julho, apanha os frutos
do verão. Em agosto, ouve as cigarras.

Em setembro não te importes com o
vento. Em outubro apanha as folhas do
chão. Em novembro não saias à noite.

E em dezembro, quando o ano acabar,
lembra-te que não fizeste nada disto,
e se fizeste terás de tudo recomeçar.

Nuno Júdice
http://www.youtube.com/watch?v=2q593KsUFC4&feature=related