domingo, 31 de julho de 2011

Trás-os-Montes


   Vou falar-lhes dum Reino Maravilhoso. Embora muitas pessoas digam que não, sempre houve e haverá reinos maravilhosos neste mundo. O que é preciso, para os ver, é que os olhos não percam a virgindade original diante da realidade e o coração, depois, não hesite. Ora, o que pretendo mostrar, meu e de todos os que queiram merecê-lo, não só existe como é dos mais belos que se possam imaginar. Começa logo porque fica no cimo de Portugal, como os ninhos ficam no cimo das árvores para que a distância os torne mais impossíveis e apetecidos. E quem namora ninhos cá de baixo, se realmente é rapaz e não tem medo das alturas, depois de trepar e atingir a crista do sonho, contempla a própria bem-aventurança.
   Vê-se primeiro um mar de pedras. Vagas e vagas sideradas, hirtas e hostis, contidas na sua força desmedida pela mão inexorável dum Deus criador e dominador. Tudo parado e mudo. Apenas se move e faz ouvir o coração no peito, inquieto, a anunciar o começo duma grande hora. De repente rasga a espessura do silêncio uma voz de franqueza desembainhada:
   - Para cá do Marão, mandam os que cá estão!...
   Sente-se um calafrio. Vista alarga-se de ânsia e de assombro. Que penedo falou? Que terror respeitoso se apodera de nós?
   Mas de nada vale interrogar o grande oceano megalítico porque o nume invisível ordena:
   - Entre!
   A gente entra, e já está no Reino Maravilhoso.

   Miguel Torga
http://www.youtube.com/watch?v=twYDZj6KDYM

sexta-feira, 15 de julho de 2011

O desperdício


É preciso não esquecer que a literatura, como a vida, é feita com uma grande margem de desperdício e isso não é mau. Imaginem o que seria se o mundo fosse feito de génios, obcecados com as suas obras-primas com que iriam brindar a sociedade! Que vida chata a gente teria! Eu, de escritores antigos, só me lembro de ter tido verdadeiro prazer a ler o Fernão Mendes Pinto. Toda a complexidade da condição humana, aquele deslumbramento pelo diferente, que normalmente nos aterroriza, tem na sua escrita qualquer coisa de exemplar que me leva, não sei se abusivamente, a atribuir ao português ou pelo menos ao português pobre, esta facilidade de se fascinar com o outro. Mesmo nas colónias não tivemos colonizadores. Tivemos imigrantes. Gostaria de reflectir um dia sobre esse fenómeno bem português de sairmos daqui por causa da pobreza. Tal qual os imigrantes que conheci. Creio mesmo que o próprio racismo é cultural mas isso fica para depois. É isso: temos que contar com o desperdício e creio que uma parte da beleza da vida é feita por essas manifestações de "desperdício" que nos trazem muitas horas boas. De resto, o "desperdício" é essencial à manutenção do sistema. Já tenho contado a história das formigas: não sei se sabem que, num formigueiro. oito de cada dez formigas não fazem nada, só atrapalham. No entanto, são elas que asseguram a sobrevivência do sistema. Se todas tivessem uma função, a gente pisava um formigueiro e o sistema entrava imediatamente em ruptura(...)
As sociedades que estamos a construir, com esta necessidade essencial de termos uma função dentro delas, enfiam-nos numa comunidade chata e invisível e é isso que dá lugar às grandes exclusões sociais. Quem está integrado no sistema se, por azares da vida sai dele, dificilmente terá possibilidades de reintegração. Temos que prever o ócio, que é uma forma de desperdício, se queremos sobreviver como espécie. Quando vou a África, ao lado daquelas guerras todas em que os meteram aqueles organizaram assim o mundo, fico encantado com aquela capacidade de preguiça ostensiva. Dá-me uma sensação de bem-estar que não encontro por essa Europa fora onde as pessoas já trazem na cara a ansiedade e a angústia de quem não pode parar.

António Alçada Baptista
http://www.youtube.com/watch?v=Gm9T5EQOxDE&feature=relmfu

sábado, 2 de julho de 2011

O encontro


Por vezes, sem qualquer esforço, sou uma atmosfera ou identifico-me com um arvoredo, com a sua cor sombria, cor de veludo e silêncio, cor de estar ou ser, intemporal e densa. Eis onde vivo por momentos. Onde sou uma respiração do silêncio. Ou então uma encosta. Umas quantas janelas onde já ninguém vem assomar-se. Uma faixa oblíqua de cor ensimesmada no abandono de uma tristeza que é um gesto da imobilidade. Alongado, profundo, externo gosto de ser e nada mais. Estar ou ser no encontro tornou-se a exactidão pura de uma densidade tranquila e suficiente, internamente imensa. Contemplação intensa e calma, como liberta do desejo, e todavia a forma e o fundo do desejo como substância única, salva numa completa tranquilidade. Neste muro  inabitável, por abandonado e solitário, está a mais viva e a mais sossegada habitabilidade do mundo. Sinto a vibração aérea do imperecível e todavia efémero. Sou agora, abandonando-me, o próprio encontro com o que não responde e que responde no silêncio do inanimado. Horizontal, vertical, estou reunido como uma pedra e não me afundo, não soçobro entre a sombra e a água.

António Ramos Rosa
http://www.youtube.com/watch?v=t4kiQzKGhk0