domingo, 24 de novembro de 2013

Avó Ménha


Os anos da Avó Ménha eram uma festa. Lá se encontravam, para além dos bolos e das sandes e das gasosas, uns cheiros estranhíssimos e apelativos. Ela morava na parte lateral de uma enorme oficina; mas não era nesta que residia a origem dos cheiros. Era entre ela, a casa e a neta. Esta trilogia cheirante haveria de representar para toda a família um eterno mistério olfactivo.
A maior curiosidade da trilogia era o contraste evidente que entre elas havia. Ainda olfactivamente falando. Ao passo que a casa transpirava tempo e mofo, a Anika - neta da Avó Ménha, emanava uma intensa juventude, representada e muito bem representada no reino do olfacto pela sua catinga penetrante, perigosa, pontiaguda mesmo. O último elemento tríptico, sem dúvida o principal, era a rija Avó Ménha que numa mistura mais que mística reunia nela e na sua aura todo um mundo de cheiros deste e do outro mundo. Os seus cheiros deste mundo eram de certa maneira decifráveis e nessa mistura, mesmo para um nariz infantil ou amador, era possível reconhecer o cheiro de muitos temperos acumulados, cheiros de caminhadas longas a pé, cheiro do tempo, de solidão e da dor dos que lhe tinham morrido. Os seus cheiros do outro mundo eram mais reservados, sendo-nos somente permitida uma pequena associaçãozinha: com a morte. No seu andar vagaroso, na sua boca bafienta, nos seus olhos de pele cansada, nos seus movimentos custosos e até nos calos salientes das suas mãos, a Avó Ménha transbordava cheiros do outro mundo.

domingo, 17 de novembro de 2013

Sol invernal


Sentado ao sol, num dia frio de inverno, o homem
espera que as nuvens cheguem. Com elas virão as notícias
do norte, o som de antigos vapores ao entrarem
na barra, o pregão dos ardinas a venderem os primeiros
jornais do dia, os gritos das criadas, no pátio,
enxotando as galinhas e os rapazes que as vinham
espreitar, a voz abafada das raparigas em lágrimas,
nas grades do confessionário, e os sinos que chamavam
à missa e traziam, atrás deles, o ladrar de cães vadios
em matilha no meio dos campos. Mas o sol que
aquece o dia de inverno parece afastar as nuvens;
os vapores afastaram-se no cais de uma ode
marítima; os jornais foram queimados por vagabundos
que precisavam de se aquecer; as criadas envelheceram,
e nos seus olhos secos pela idade morreu
o desejo dos rapazes; e a rapariga que saiu
do confessionário, secando as lágrimas, ainda
desfia as contas de um rosário há muito
perdido. E o homem, sentado ao sol,
num dia frio de inverno, pergunta em que campo
se perderam as matilhas de cães vadios, e tenta
ouvir, para lá dos prédios da cidade, os latidos
que se confundem com o toque dos sinos
que enche de nuvens o seu espírito.

Nuno Júdice
http://www.youtube.com/watch?v=Dxjpn39PXXY

domingo, 10 de novembro de 2013

Avó e Neto


Tinham ido à praia, porque estava uma manhã bonita. A avó vestia uma saia clara e levava o neto pela mão. Ia muito contente, e o seu coração cantava.
O neto levava um balde, porque se propunha apanhar conchas e búzios, como já fizera de outras vezes em que tinha ido à praia com a avó.
Ir à praia com a avó era uma das melhores coisas que lhe podiam acontecer nos dias livres. Por isso também ele ia contente, e o balde dançava-lhe na mão.
A praia estava como devia estar, com sol e ondas baixas. Quase não havia vento, e a água do mar não estava fria. Por isso o neto teve muito tempo de procurar conchas e búzios e de tomar banho no mar. A avó sentou-se num rochedo, e ficou a olhar para o neto, por detrás dos óculos. Nunca se cansava de olhá-lo porque o achava perfeito. Se pudesse mudar alguma coisa nele, não mudaria nada.
Estava uma manhã tão boa que também a avó tirou a blusa e a saia e ficou em fato-de-banho. Depois tirou os óculos, que deixou em cima de um rochedo, e entrou no mar, atrás do neto, que nadava à sua frente, muito melhor e mais depressa do que ela.
- Não te afastes, dizia a avó, um pouco ofegante. Volta para trás!
A avó tinha medo de muitas coisas: dos paus que podiam furar os olhos, das agulhas e alfinetes que se podiam engolir se se metessem na boca, das janelas abertas, de onde se podia cair, do mar onde as pessoas se podiam afogar. A avó via todas esses perigos e avisava. Ele ouvia, mas não ligava muito. Só o suficiente.
Não tinha medo de nada, mas, apesar disso, gostava de sentir o olhar da avó. De vez em quando voltava a cabeça, para ver se ela lá estava sentada, a olhar para ele. Depois esquecia-se dela e voltava a ser o rei do mundo.
Por isso se sentiam tão bem um com o outro.

Teolinda Gersão
http://www.youtube.com/watch?v=Z94aL-hrrYQ

domingo, 3 de novembro de 2013

Dois meninos

                           
                             Meu menino canta, canta
                             Uma canção que só ele entende
                             E o faz sorrir.

                             Meu menino tem nos olhos os mistérios
                             Dum mundo que ele vê e que eu não vejo
                             Mas de que tenho saudades infinitas.

                             As cinco pedrinhas são mundos na mão.
                             Formigas que passam,
                             Se brinca no chão,
                             São seres irreais...

                             Meu menino d'olhos verdes como as águas
                             Não sabe falar,
                             Mas sabe fazer arabescos de sons
                             Que têm poesia.

                             Meu menino ama os cães,
                             Os gatos, as aves e os galos,
                             (São Francisco de Assis
                             Em menino pequeno)
                             E fica horas sem fim,
                             Enlevado, o olhá-los.

                             E ao vê-lo brincar, no chão sentadinho,
                             Eu tenho saudades, saudades, saudades
                             Dum outro menino...

                             Francisco Bugalho
                             http://www.youtube.com/watch?v=sWa8O3V8SgU