quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Corredor

Era ao sair da infância, eu não sabia

seguir o risco ao meio entre uma porta

e outra vida, repetir os passos à luz 

apagada, aprender a domar a constância

de sofrer e a falta de opção de crescer;


se é desconjunta a formosura apascentada

na cabeça, recusa clemência a curta estatura.

Vem por acréscimo a conquista da casa

quando se domina o vernáculo do lugar


o ar do tempo: manual para se estar a cagar,

luta de classes, pornografia q.b.

e outras prospecções e sortilégios

que só a mim afectam e confrangem.

Corpo indiscorrível, labirinto de alçapões.


Margarida Vale de Gato

Auto-retrato de Aurélia de Sousa (18866-1922)

https://www.youtube.com/watch?v=ZH4rvP4WgZY

sábado, 4 de setembro de 2021

Thomar

Quando o viajante acorda, vai abrir a janela do quarto. Quer sentir a frescura das árvores do Mouchão, os altos choupos, as faias de folhas verde-brancas. Quem transformou o areal que isto era no século passado devia ganhar também uma medalha. O viajante, como se observa, dispõe-se a condecorar toda a gente que o mereça.
O convento está lá no alto, há que ir vê-lo. Mas o viajante reserva a primeira atenção do dia para o minucioso exame desta roda de rega, tão ao alcance que já distraidamente a olha quem por aqui passa, talvez julgando-a, se é visitante de ocasião, forma só decorativa ou brinquedo de crianças, por cautela posto fora de uso. Como trabalho de carpintaria é das mais perfeitas máquinas que tem visto. Chamam-lhe roda de mouros, o que é costume na nossa terra quando de outra maneira se não sabem explicar as coisas, mas é de concepção romana segundo afirmam os entendidos. O que o viajante não sabe é quando foi construída, mas tem relutância em acreditar que esta roda seja roda desde o século IV ou V (...)

José Saramago
















Cá está o pórtico de João Castilho, uma das mais magníficas realizações plásticas que em Portugal foram cometidas. Em rigor, uma escultura, esta porta ou uma simples imagem, não pode ser explicada por palavras. Não basta sequer olhar, uma vez que os olhos também têm de aprender a ler as formas. Nada é traduzível noutra coisa. Um soneto de Camões não pode ser passado à pedra. Diante deste pórtico não há mais do que ver, identificar os diversos elementos no campo dos conhecimentos de que se dispõe, indagar para suprir o que falta, mas isto será trabalho de cada viajante, não de um que veja por todos e a todos explique.

José Saramago



Tomar Umbilicus Telluris, Centro do Mundo?
Se eu conseguia imaginar um castelo templário, assim era Tomar. 
Sobe-se por uma escada fortificada que bordeja os bastiões exteriores, de seteiras em forma de cruz, e respira-se uma atmosfera cruzada desde o primeiro instante. Os Cavaleiros de Cristo tinham prosperado durante séculos naquele lugar: a tradição pretende que tanto o infante D. Henrique como Cristóvão Colombo eram dos deles, e com efeito haviam-se dedicado à conquista dos mares - fazendo a riqueza de Portugal. A longa e feliz existência de que aí tinham gozado fez com que o castelo tenha sido reconstituído e ampliado em diferentes séculos, pelo que à sua parte medieval se acrescentaram alas renascentistas e barrocas. Comovi-me ao entrar na igreja dos Templários, com a sua rotunda octogonal que reproduz a do Santo Sepulcro.
Depois o nosso guia levou-nos a ver a janela manuelina, a janela por excelência, uma passagem, uma colagem de achados marinhos e submarinos, algas, conchas, âncoras, amarras e correntes, em celebração dos fastos dos Cavaleiros. Mas dos dois lados da janela, a encerrar como que dentro de uma muralha as duas torres que a enquadravam, viam-se esculpidas as insígnias da Jarreteira. O que estava a fazer o símbolo de uma ordem inglesa naquele  naquele mosteiro fortificado português? O guia não o soube dizer, mas pouco depois, de outro lado, creio que de noroeste, mostrou-nos as insígnias do Tosão de Ouro. Eu não podia deixar de pensar no subtil jogo de alianças que ligava a Jarreteira ao Tosão de Ouro, este aos Argonautas, os Argonautas ao Graal, e o Graal aos Templários.
Parti de Tomar e de Portugal com a mente em chamas. Estava a levar finalmente a sério a mensagem que Ardenti nos exibira. Os Templários, constituídos em ordem secreta, elaboram um plano que deve durar seiscentos anos e concluir-se no nosso século. Os Templários eram pessoas sérias. Portanto se falavam de um castelo, falavam de um lugar verdadeiro. O plano partia de Tomar.

Umberto Eco











   O ENCOBERTO

Que símbolo fecundo

Vem na aurora ansiosa?

Na Cruz Morta do Mundo

A Vida, que é a Rosa.

Que símbolo divino

Traz o dia já visto?

Na Cruz, que é o Destino,

A Rosa, que é o Cristo.

Que símbolo final

Mostra o sol já desperto?

Na Cruz morta e fatal

A Rosa do Encoberto.


Fernando Pessoa "A Mensagem"