domingo, 28 de fevereiro de 2021

Ainda estamos aqui


O meu pai segura um doce de ovos moles entre o polegar e o indicador, segura o objecto mais delicado do mundo. Tem a forma de um búzio. Segura-o exatamente pelo vértice, é uma forma branca e elegante. Olha esse pequeno búzio como se o analisasse, não o perde de vista, segue-o ao aproximá-lo da boca e até mordê-lo com a ponta dos dentes: dentadinha. Neste momento, o meu pai é homem, mas também é menino; é forte, mas também é frágil. Não se apercebe da ternura que o envolve.

A minha mãe guarda o doce que lhe calhou, é uma pequena concha. Procura um lenço no interior da mala, a minha mãe tem sempre um lenço lavado e passado a ferro. Mais tarde, irá oferecer-me este doce de ovos moles, talvez depois de jantar, talvez um pouco esmagado pelas horas dentro da mala, talvez com alguma penugem do lenço. A minha mãe está a guardar o doce para mim. Ouço frases breves na voz da minha irmã, dá-me instruções acerca de como morder o doce devagar, como saboreá-lo. Ao mesmo tempo, sem palavras, ensina-me também a fechar os olhos para sentir o sabor a avançar pelo interior da boca, a ser um lugar, como um terreno de açúcar que se expande pelo negro que possuímos por dentro, que o ilumina de certo modo, que lhe dá forma e superfície. Eu tenho o direito de ficar com o doce maior. Quero ser adolescente, mas não prescindo dos meus privilégios de criança. Tem a forma de um peixe com escamas ténues, como uma sardinha com cara de pessoa. Seguro-lhe pelo rabo e, antes ou depois de trincá-lo, fixo este momento.

Estamos sentados na carrinha estacionada. Diante da ria, um pouco afastados do centro de Aveiro. No lugar do condutor, com o volante diante da barriga, o meu pai; a seu lado, a minha mãe; no banco de trás, a minha irmã e eu. Neste momento, a nossa carrinha é a nossa casa.

Escrevo estas palavras escolhidas, estes substantivos, estes adjetivos, declino estes verbos no presente e, ao fazê-lo, é como se estivesse lá, ainda ao lado da minha irmã, na presença do meu pai e da minha mãe. Como são fortes as palavras, carregam todo o peso da memória. Sustentam-na sem aparentar qualquer esforço.

Há poucas semanas, estive em Aveiro. Eu era um homem de quarenta e três anos. Eu era um homem sozinho, de quarenta e três anos. Tive algum tempo para passear, não muito. Inclinado sobre as grades de uma ponte, assisti à passagem de barcos cheios de turistas ao longo da ria. Se existissem barcos desses quando estivemos lá, teríamos andado. 

Agora, essa seria uma lembrança boa.
Em silêncio, contemplando a lonjura através do para-brisas, o meu pai dá mais uma dentadinha no doce de ovos moles. Esse búzio tem um interior de amarelo vivo, como se fosse feito de ouro húmido. Este é o poder dos verbos conjugados no presente. A minha irmã também desfruta do seu doce de ovos moles. A minha mãe, sem saber, desfruta da segurança deste instante. Em silêncio, no interior de mim, aqui e lá, digo-lhes: aproveitem este momento, pai, mãe, mana. Estamos juntos neste tempo que nos inunda e nos preenche. O tempo é a vida.

 

José Luís Peixoto
Pintura de Zé Penicheiro

sábado, 20 de fevereiro de 2021

Às afirmações dogmáticas...

Às afirmações dogmáticas, à imposição dos conceitos, o construtor opõe a simplicidade primeira de uma energia que nunca é figurada mas cintila e estremece nas formas subtis da construção. Nas paredes que ergue o longínquo reflecte-se e palpita como uma pálpebra marinha. A proximidade de um rio e de uma pequena ilha no meio dele acompanha-o como uma presença cúmplice e preciosa. O visitante que nunca virá, mesmo quando a casa estiver construída, é a presença da ausência que pulsa e a abertura viva do invisível.

António Ramos Rosa
Pintura de Pedro Calapez
https://www.youtube.com/watch?v=tgCQAe_MNg8

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Não o sabias?

Deixa o pão aberto sobre a mesa. Vê de novo

as searas, os campos descobertos, os sulcos,

a poeira também. Presta atenção. Mais uma vez

procura aquilo de que te alimentas, o seu gosto

ou a prece que devagar pronuncias. É só no interior

dele mesmo que se conserva a temperatura

com que o fizeram, o ar ainda aquecido. Desconhecemos

como chegou o fermento, o modo como outrora

tinha germinado. Não te importes...Leva-o à tua boca,

depois fecha os olhos para assim encontrares

uma outra imagem, as feições desconhecidas

que nele existem. Vê a sua cor, estas sombras,

o contorno cada vez mais simples em que se pode 

tocar. Não o sabias? O pão tem um rosto.


Fernando Guimarães
Pintura de Josefa de Óbidos