domingo, 25 de fevereiro de 2024

Armazém



Quando mudei de casa
Descobri imensas coisas para as quais não tinha
espaço. O que se faz numa situação destas? Aluguei
um armazém. Enchi-o. Passaram-se anos.
De quando em vez, visitava-o, observava as minhas coisas,
mas nada acontecia, nem uma só
pontada no coração sentia.
À medida que fui envelhecendo, as coisas que realmente gostava
foram diminuindo, mas crescendo
em importância. Então, um dia abri o cadeado
e chamei o homem do ferro-velho. Ele
levou tudo o que lá estava.
Senti-me como um pequeno burrito, quando
o libertam do seu fardo. Coisas!
Queima-as! Queima-as! Faz uma maravilhosa
fogueira! Mais espaço fica no teu coração para o amor,
para as árvores! Para os pássaros, que nada
possuem – a razão de poderem voar.

Mary Oliver (versão de Pedro Belo Claro)
Pintura de Miró

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Fado do Alentejo



Alentejo, ai solidão
Solidão, ai Alentejo
Oceano de ondas de oiro
Tinha um tesoiro perdido
Nos teus ermos escondido
Vim achar o meu tesoiro

Alentejo, ai solidão
Solidão, ai Alentejo
Convento de céu aberto
Nos teus claustros me fiz monge
Perdeu-se-me a terra ao longe
Chegou-se-me o céu mais perto

Alentejo, ai solidão
Solidão, ai Alentejo
Padre-nosso de infelizes
Vim coberto de cadeias
Mas estas com que me enleias
Deram-me asas e raízes

José Régio
Pinturas de Henrique Pousão

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

A Serra de Ossa e o seu Convento










A menos de meia encosta da montanha eleva-se o convento de S. Paulo, virando para o Redondo em meio de uma densa mancha de verdura - vasto olivedo, laranjal farto, sobreiral, eucaliptal, ubérrimas terras de trigo. Era este convento o solar da Congregação dos Monges de Jesus Cristo da Pobre Vida. Só nos princípios do séc. XV foi esta Congregação aprovada por Gregório XII, mas desde remotos tempos devia existir, para que os seus cronistas, piedosamente exagerando, fizessem remontar ao monge Fernão de Anes, ex-cavaleiro de D. Afonso Henriques, a primeira organização do cenóbio, e a tempos muito anteriores (poucos anos depois da morte de Cristo!) a retirada para as grutas da serra dos primeiros convertidos de S. Manços. Diz ainda a tradição que foram aqui martirizados pelos mouros, a 11 de Março de 715, S. Francisco, S. Ascêncio, S. Teodofredo e S. Fiónio.
O actual convento, que fica num dos sítios mais aprazíveis da serra, foi fundado no tempo de D. João I e reconstruído nos finais do séc.XVIII. D. Sebastião, antes da expedição de África, aqui veio fazer as suas devoções. Em 1699 visitou o mosteiro a Rainha de Inglaterra D. Catarina de Bragança. E foi para aqui também que vieram desterrados, no tempo do Marquês de Pombal, os meninos de Palhavã.
Quase inteiramente salvo da ruína, o convento é hoje uma magnífica vivenda burguesa*. Amplas escadarias de mármore de Estremoz, amplos corredores por onde se desdobra, em azulejos seiscentistas,  o filme da lenda judaica ou cristã. 

*Actualmente funciona como hotel/museu gerido por uma Fundação criada pelos proprietários, família Leote, com o objectivo de dar a conhecer este património e de continuar a investir na sua restauração. 

Hernani Cidade (1887-1975)

https://www.youtube.com/watch?v=v9VCvWshqYo


domingo, 4 de fevereiro de 2024

Aveiro e a epopeia da Ria

À esquerda, o Rossio, antes da intervenção


O Rossio, depois das obras realizadas (inauguração em Janeiro de 2024), ficou dotado de um parque de estacionamento subterrâneo.  Em primeiro plano vêem-se as ruínas da capela de S. João.


A capela de S.João demolida em 1910

A Ria, e Aveiro, seu centro urbano, são a parte mais nova da terra humanizada de Portugal. Região adolescente, sem as rugas fundas do passado, dela pode afirmar-se que não teve pré-história. O mais antigo documento que se lhe refere é o testamento da condessa Mumadona que, em 959, legava ao Mosteiro de Guimarães as terras e salinas de alavario, assim como as de alcarobim. Que nesta data existissem salinas em Alquerubim, hoje a muitos quilómetros do mar, revela, só por si, que o Vouga era de barra aberta, longe de alavario, e que, por consequência, ainda se não haviam debuxado os cordões litorais que mais tarde formaram a Ria e cortaram as terras de aluvião com a anastomose dos canais.
Tem-se comparado Aveiro e Veneza. Comparação pretensiosa e vã. Nada ali corresponde à sumptuosa cidade do Adriático (...)
Mas a verdade é que Aveiro tem a sua beleza original, o seu carácter próprio e um sentido profundo de criação humana, única e heróica.
E ainda que, sob o ponto de vista de arte, Aveiro seja a capital do barroco, o que define e distingue a cidade e o seu distrito é, acima de tudo, a Ria e a sua paisagem, ora desordenada, ora simetricamente humanizada.


O espectáculo que oferecem as labutas marítimas e campestres do dia a dia na água ou nas margens da laguna, empolga como um dos mais poderosos e fecundos esforços de criação de tipos culturais realizados pelo povo português. Às águas afluem ou delas refluem para a cidade, sístole e diástole do imenso coração da Ria, os varinos de burel sombrio, os barqueiros, pescadores e marnotos, de camisas e manaias brancas, ou, de mistura com os mercantéis, as salineiras e peixeiras da praça e rua, com os chambres e lenços de variegadas cores. Na ria as pesadas barcas saleiras, carregadas de sal, os esguichos de transporte em longa meia-lua, as caçadeiras leves ou as finas bateiras dos mercantéis que trazem o pescado, os barcos moliceiros de proa recurva e de painéis policromados ou os navios bacalhoeiros que vão à Terra Nova e à Gronelândia, afirmam, um a um, seu género de vida, sua técnica e seu tipo humano diferente.

Salinas de Aveiro

Ao lado e pelas margens, os barqueiros-lavradores transportando sempre, de canal em canal, o moliço fertilizante, e cujos barcos, em Agosto, parecem navegar por terra, entre os pendões de milho, transformaram durante séculos, com teimoso esforço, os imensos e estéreis areais em campinas verdejantes e ergueram das gafanhas, que outrora serviram de vazadouro de leprosos, dezenas de povoações ridentes. Essa epopeia, a meio dos ventos carregados de humidade atlântica e da areia das dunas, ombreia, pelas condições rudes do trabalho, com a dos homens que construíram os socalcos do Douro e as calhadas da Beira Alta.

Jaime Cortesão (1884-1960)