domingo, 4 de fevereiro de 2024

Aveiro e a epopeia da Ria

À esquerda, o Rossio, antes da intervenção


O Rossio, depois das obras realizadas (inauguração em Janeiro de 2024), ficou dotado de um parque de estacionamento subterrâneo.  Em primeiro plano vêem-se as ruínas da capela de S. João.


A capela de S.João demolida em 1910

A Ria, e Aveiro, seu centro urbano, são a parte mais nova da terra humanizada de Portugal. Região adolescente, sem as rugas fundas do passado, dela pode afirmar-se que não teve pré-história. O mais antigo documento que se lhe refere é o testamento da condessa Mumadona que, em 959, legava ao Mosteiro de Guimarães as terras e salinas de alavario, assim como as de alcarobim. Que nesta data existissem salinas em Alquerubim, hoje a muitos quilómetros do mar, revela, só por si, que o Vouga era de barra aberta, longe de alavario, e que, por consequência, ainda se não haviam debuxado os cordões litorais que mais tarde formaram a Ria e cortaram as terras de aluvião com a anastomose dos canais.
Tem-se comparado Aveiro e Veneza. Comparação pretensiosa e vã. Nada ali corresponde à sumptuosa cidade do Adriático (...)
Mas a verdade é que Aveiro tem a sua beleza original, o seu carácter próprio e um sentido profundo de criação humana, única e heróica.
E ainda que, sob o ponto de vista de arte, Aveiro seja a capital do barroco, o que define e distingue a cidade e o seu distrito é, acima de tudo, a Ria e a sua paisagem, ora desordenada, ora simetricamente humanizada.


O espectáculo que oferecem as labutas marítimas e campestres do dia a dia na água ou nas margens da laguna, empolga como um dos mais poderosos e fecundos esforços de criação de tipos culturais realizados pelo povo português. Às águas afluem ou delas refluem para a cidade, sístole e diástole do imenso coração da Ria, os varinos de burel sombrio, os barqueiros, pescadores e marnotos, de camisas e manaias brancas, ou, de mistura com os mercantéis, as salineiras e peixeiras da praça e rua, com os chambres e lenços de variegadas cores. Na ria as pesadas barcas saleiras, carregadas de sal, os esguichos de transporte em longa meia-lua, as caçadeiras leves ou as finas bateiras dos mercantéis que trazem o pescado, os barcos moliceiros de proa recurva e de painéis policromados ou os navios bacalhoeiros que vão à Terra Nova e à Gronelândia, afirmam, um a um, seu género de vida, sua técnica e seu tipo humano diferente.

Salinas de Aveiro

Ao lado e pelas margens, os barqueiros-lavradores transportando sempre, de canal em canal, o moliço fertilizante, e cujos barcos, em Agosto, parecem navegar por terra, entre os pendões de milho, transformaram durante séculos, com teimoso esforço, os imensos e estéreis areais em campinas verdejantes e ergueram das gafanhas, que outrora serviram de vazadouro de leprosos, dezenas de povoações ridentes. Essa epopeia, a meio dos ventos carregados de humidade atlântica e da areia das dunas, ombreia, pelas condições rudes do trabalho, com a dos homens que construíram os socalcos do Douro e as calhadas da Beira Alta.

Jaime Cortesão (1884-1960)


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