domingo, 24 de junho de 2012

Sobre o prazer da poesia


Pergunta - Como definir a poesia, senhor Breton?
Resposta - A poesia é um modo de a linguagem ser infeliz. Se conheces um homem feliz conheces todos, alguém infeliz é que é único, exige investigação. Daí também a necessidade de investigares os versos do mundo, um a um, se quiseres conhecer algo, se pretenderes escrever uma Biografia ou mesmo a História Mundial de um verso.
E eis que falando vem de mim o que nunca tive. Este, um projecto que descoberto neste instante prometo fazer: a História Mundial de um Verso. Como surgiu um determinado verso, quem o trouxe, por onde andou, quem o leu, em que momentos foi dito: na voz de um homem eufórico, na voz de um homem que traiu, na voz de alguém que sofre, ou na voz de alguém que é alegre porque nasceu? Por onde andou, esse verso?
É evidente que haverá a História Nacional de um Verso e a História Mundial de um Verso, mas existirão ainda versos perfeitos que não terão história, para além de uma casa, ou mesmo para além da cabeça de um homem. Quantos versos não ficaram no pensamento que alguém deitou de imediato sobre o Mundo esquecido, como a água de um jarro para o copo? Eis o que pensa o senhor Breton, eu próprio.
A poesia começa em casa, abre a porta e atravessa a paisagem, digo ainda, o verso procura as ovelhas para do pescoço manso lhes roubar o sangue e procura o lobo para do pescoço feroz lhes roubar também sangue.  E a poesia avança de homem parado para homem parado, através da voz. Assim avança sobre a paisagem. Porque os homens são bípedes por cima da paisagem, e se assim o são devem-no aos versos, mais do que à coluna vertebral ou às pernas. O humano não é bípede porque se apoia em duas pernas, o humano é bípede porque se apoia na poesia (é o único animal que o faz). Tornou-se bípede para recitar os mitos e para que a sua voz saísse clara e alta atingindo os amigos e os mais afastados: os inimigos. Que o meu verso chegue a quem me odeia e assim ele perceba que nunca serei derrotado: porque falei. É isto que eu digo e afirmo - eu, o senhor Breton.
O homem afastou-se da estatura dos crocodilos para chamar alguém, para repetir o nome da mulher que ama. Tornou-se bípede. E o verso é isto: é uma linguagem que chama uma pessoa; uma linguagem que parece feita individualmente - como um objecto feito à mão - e oferecida também a alguém que, sozinho, a recebe. Todos os versos são privados, e a causa principal do aparecimento da poesia é a separação dos corpos, e a tristeza que no mesmo instante surgiu no mundo. É tudo o que tenho a dizer.

domingo, 17 de junho de 2012

De Aveiro à Costa


De Aveiro à Costa: o riscado é a escolha do céu.
Quando vou a Aveiro, entro sempre pelo sentido das praias.  Ainda na estrada, já o olhar se anima com os quadrados de água onde brilha o sal que sobe em colinas brancas. É uma cidade de luz que vem marulhar nos nossos olhos. Em breve, na outra margem da ria, pequenas casas deixam entrever os antigos palheiros da Beira-Mar, onde ainda há portas ao trinco e as pessoas se conhecem por alcunhas. O cantado das gentes sem chave vem da ondulação da água, do braço de mar que entra pela cidade com os moliceiros amarelo-quente, aproando figuras coloridas.
Na primeira rotunda, entre as marinhas de sal e as cores da ria citadina, um dos itinerários leva direito às praias. Ao passarem pela ponte sobre o azul-verde das águas com pequenas ilhas de terra ao capricho das marés, abram a janela, as narinas, os olhos do corpo. As dunas de areia fina em movimentos orgânicos sinuam a vegetação. Nem o vento resiste a acariciá-las, nem elas ficam impassíveis. Às vezes brilham nos arbustos camarinhas diáfanas como contas de colar, como o leite que amamenta. Ao trincá-las, sentimos como são selvagens, de um acre gostoso, imprevisível.
Depois da ponte, viro à esquerda e rumo à Costa Nova. Se o riscado foi, durante muito, tecido do diabo, prometo-vos agora uma alma toda nova. Quem conhece, sonha comprar ou alugar uma casa com vista. A Costa vem nos mapas, está na net, nos livros de turismo. Mas nada se compara à visão das casas em riscado branco que por nós desfilam.

Rosa Alice Branco
http://www.youtube.com/watch?v=c1oxr3PUXr0 

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Pátrias


São várias as minhas pátrias:

Depois de Castelo Branco, até à serra da Estrela. A pátria de uma das minhas infâncias. De metade de todos os meus nomes. Os da terra. Que proliferavam. Uma coisa era sempre nova. Um nome acrescentava a outro uma espécie de alegria. Dizê-los. Ligavam-se pelo olhar perguntador e formavam extensas frases. As mais extensas da vida. Gosto da memória da infância. De a escrever. Porque as palavras ainda não tinham encontrado a denúncia. Nem a traição. Avô, como se chama esta árvore? E esta pedra? E este bicho? E a palavra única surgia, da indiferença de todas as árvores, de todas as pedras, de todos os bichos. Um pássaro, de todos os pássaros. Entre a Gardunha e a Estrela, a pátria tinha o tamanho de uma casa, via-se onde começava e acabava, apanhávamos rãs nos seus ribeiros e cágados nos seus poços. Armávamos aos pássaros, sob as oliveiras. E ouvia-se a morte no som dos costilos a fecharem-se. Meus avós estavam parados na eternidade da velhice. E o tempo era uma repetição fulgurante. A casa tinha todas as portas que podíamos inventar, e cada uma delas abria para um sítio só nosso: a imensidão do esconderijo. Um som esperava-nos: o latir de um cão, o vento nas oliveiras, ou a primeira chuva no restolho seco. Às vezes o arrulhar de um pombo. Um zumbido. Um cheiro. Como uma outra porta. 

Ao norte. Tão ao norte. Fica a última pátria. Sinuosa. a água amplia os nossos olhos nos seus meandros. A mesma cor, que se repete, outra. Escarpa a escarpa. Fiorde a fiorde. A diluir a fronteira. Até se tornar um crepúsculo impreciso. 
- vamos a Kirkenes
- porquê?
- para voltar

Mas a grande pátria é a viagem. Essa terra cheia do meu espanto. Sempre andei de um sítio para o outro, tenho a inquietação nos genes. 
E sei que continuarei a fazê-lo. Até as palavras e letras se tornarem informes e eu já não as conseguir ler. Até a viagem me abandonar. Mesmo doente, ando de país em país, de cidade em cidade. Arrasto comigo o cansaço. Caio. Levanto-me. Engano-me. Procuro o desvio secreto.  Isto é. Isto é. Talvez a névoa. Que se confunda com o fechar de olhos.

Rui Nunes
http://www.youtube.com/watch?v=2AZL0FcQDV0&feature=related

sábado, 2 de junho de 2012

A canção da cerejeira


Disse Deus na Primavera: "- Ponham a mesa às lagartas!" E a cerejeira cobriu-se imediatamente de folhas, milhões de folhas, fresquinhas e verdejantes.
A lagarta, que estava dormindo dentro de casa, acordou, espreguiçou-se, abriu a boca, esfregou os olhos e pôs-se a comer  tranquilamente as folhinhas tenras, dizendo:
- Não se pode a gente despegar delas. Quem é que me arranjou este banquete?
Então Deus disse de novo: " - Ponham a mesa às abelhas!" E a cerejeira cobriu-se imediatamente de flores, milhões de flores delicadas e brancas.
E a abelha matinal, aos primeiros raios da aurora, pousou sobre elas, dizendo:
- Vamos tomar o nosso café; e que chávenas tão lindas em que o deitaram!
Provou, exclamando:
- Que deliciosa bebida! Não pouparam o açúcar!
No Verão disse Deus: "- Ponham a mesa aos passarinhos!" E a cerejeira cobriu-se de mil frutos apetitosos e vermelhos.
- Ah! Ah! - exclamaram os passarinhos - foi em boa hora; temos apetite, e ganharemos forças para cantar uma nova canção.
 No Outono disse Deus: " - Levantai a mesa; já estão satisfeitos." E o vento frio das montanhas começou a soprar; e fez estremecer a árvore.
As folhas tornaram-se amarelas e avermelhadas, caíram uma a uma, e o vento que as lançara ao chão erguia-as novamente, fazendo-as remoinhar.
Chegou Dezembro e disse Deus: " - Cobri o resto!" E os turbilhões dos ventos trouxeram a neve, sob cuja mortalha tudo dorme e descansa.

Guerra Junqueiro
http://www.youtube.com/watch?v=IX4-BrsPX64