domingo, 23 de setembro de 2012

Uma referência


Aos pássaros que gorjeiam prefiro os que grasnam
como os corvos ou os que piam na escuridão
como as vigilantes corujas brancas que infestam os meus bosques.
O canto melodioso amolece os corpos
e anestesia as almas que renunciam à reflexão e ao tormento
e temem o rumor do dia predatório.
Sempre desejei que o meu reino fosse o da dissonância:
do gavião que, pousado na estaca, rumina a sua impiedade,
dos pássaros grasnantes que incomodam os partidários de uma
                     regência musical do mundo 
como se estivéssemos num teatro, ouvindo uma sinfonia.
Ao gorjeio que conduz ao deleite e embala o sono
oponho o grasnido que semeia
a insônia e o desconforto.

Lêdo Ivo
http://www.youtube.com/watch?v=Myd1iezrYw0&feature=related

domingo, 16 de setembro de 2012

A importância de não ser de lado nenhum



Não sei se somos nós o povo dos navegadores. Creio que todos os que cresceram junto a um mar também o são: holandeses, polinésios, viquingues, Cook, Tasman, Sinbad. Também não sei por que somos nós o povo dos poetas. Os húngaros consideram-se um povo de poetas, os chineses também, os persas cultivam a poesia desde os tempos de Zaratrusta, os chilenos e os polacos têm prémios Nobel de poesia, para não falar nos italianos, dos franceses, dos irlandeses.
O bacalhau tão amigo dos nossos pobres, também o era dos genoveses, e dos catalães, quando eles eram pobres e emigravam para a Califórnia e para a Argentina. O veneziano Pietro Querini, no século XV, iniciou o comércio regular de bacalhau das ilhas Lofoten com o norte de Itália, e ainda hoje um dos pratos mais típicos de Veneza é o bacalhau amanteigado.
Não sei por que o nosso vinho é o melhor do mundo. Também o dos neo-zelandeses, o dos sul-coreanos e o dos alemães o é. Basta bebê-lo com a companhia certa e qualquer vinho, de qualquer preço é o melhor do mundo. a nossa gente é simpática e hospitaleira, mas é rude e iletrada. O clima é bom mas húmido, temperado mas instável, o sol aquece mas o mar aleija.
Viajando, tenho reparado que é transversal a tantas pessoas de tantas nacionalidades esta necessidade de se assegurarem da mesma coisa: que pertencem a uma nação especial. E pertencem, porque é a sua. Cesare Pavese escreveu um livro lindíssimo sobre tudo isto, sobre a necessidade de pertencer a algum lugar, uma dolorosa reflexão da importância de ter raízes. Que são como os parentes: não se escolhem, recebem-se.
O clima é instável, o mar gelado, a terra pobre, as cidades desfiguradas, a gente dura mas hospitaleira. O bacalhau cada vez mais caro, o vinho também. Mas é tudo o que tenho e o que espera por mim. Às vezes, sabe bem regressar. Outras, apetecia mesmo era ficar para sempre lá fora - mas nem vale a pena tentar.

domingo, 9 de setembro de 2012

Palomar na praia




Leitura de uma onda
O mar está levemente encrespado e pequenas ondas vêm bater na costa arenosa. O senhor Palomar encontra-se na praia, de pé, e observa uma onda. Não se pode dizer que esteja absorto na contemplação das ondas. Não está absorto, porque sabe muito bem aquilo que faz: pretende observar uma onda e observa-a. Não está contemplando, porque para a contemplação é necessário um temperamento adequado, um estado de espírito adequado e um conjunto de circunstâncias externas adequadas: e apesar do senhor Palomar não ter qualquer questão de princípio contra a contemplação, nenhuma destas três condições se verifica no seu caso. Finalmente, não são as "ondas" que ele pretende observar, mas uma única onda e basta: querendo as sensações vagas, estabelece para cada um dos seus actos um objectivo limitado e bem definido.
A crista da onda que avança levanta-se num ponto determinado, mais do que nos outros, e é ali que começa a franjar-se de branco. Se isso acontece a uma certa distância da costa, a espuma tem tempo de se enrolar sobre si própria e de desaparecer de novo, como que engolida, para no mesmo momento tornar a envolver tudo, mas desta vez despontando de baixo, como um tapete branco que trepa pela praia acima para acolher a onda que está para chegar. Mas, quando se espera que a onda role sobre o tapete, verifica-se que já não há onda, mas somente o tapete, e mesmo este desaparece rapidamente, tornando-se uma cintilação de areia molhada que se retira veloz, como se fosse empurrada pela areia enxuta e opaca que faz avançar o seu limite ondulado.
Tomando como modelo o desenho das ondas, a praia insinua na água algumas línguas de areia mal delineadas, que se prolongam em bancos submersos, daqueles que as marés fazem e desfazem em cada maré. Foi uma destas baixas línguas de areia que o senhor Palomar escolheu como ponto de observação, porque as ondas batem nela obliquamente de um lado e do outro, e ao cavalgarem a superfície semi-submersa encontram-se com as que chegam do outro lado.