domingo, 26 de abril de 2020

Lição

               

              Oiço todos os dias,
               De manhãzinha,
               Um bonito poema
               Cantado por um melro
               Madrugador.
               Um poema de amor
               Singelo e desprendido,
               Que me deixa no ouvido
               Envergonhado
               A lição virginal
               Do natural,
               Que é sempre o mesmo, e sempre variado.

               Miguel Torga
                   Desenho no ipad de David Hockney

terça-feira, 21 de abril de 2020

Ophiussa


“Conta a lenda que em tempos remotos, nada desta cidade de Lisboa existia e toda a costa recebia um nome estranho e simbólico: Ofiúsa, ou seja, a Terra das Serpentes. A sua rainha era meia mulher meia serpente, um ser aparentemente gentil e afável, com um enorme poder de sedução que utilizava para atrair todos os que aportavam ao seu reino. Tinha por hábito subir ao alto de um monte e gritar ao vento, para depois ouvir sua própria voz no eco: “Este é o meu reino! Só eu governo aqui, mais ninguém! Nenhum ser humano se atreverá a pôr aqui os pés: ai de quem ousar, pois, as minhas serpentes, não o deixarão respirar um minuto sequer!” 
Por muito tempo quase ninguém se atreveu realmente a entrar nesse reino. Acreditava-se que a sua costa era amaldiçoada tanto pelos deuses como pelos homens. Os poucos que se arriscavam eram seduzidos pela rainha e nunca mais retornavam. Porém, um dia, vindo de muito longe, um herói chamado Ulisses, aportou na terra das serpentes. Ulisses e os seus companheiros ficaram encantados pela beleza de Ofiúsa junto ao rio, e decidiram ancorar e passar uns dias em terra para descansarem. Quando viu Ulisses, a rainha serpente apaixonou-se perdidamente por ele e pediu-lhe que casasse com ela e vivesse para sempre no reino, em troca de poupar a sua vida e a dos seus homens. Ulisses receando a sua fúria fingiu aceitar, até descansar com os seus homens e abastecer as suas naus com mantimentos frescos, para poder prosseguir viagem. Deslumbrado com as belezas naturais que viu, subiu a um monte, e assim como fazia a rainha das Serpentes, gritou ao vento: “Aqui edificarei a cidade mais bela do Universo, e dar-lhe-ei o meu próprio nome. Será Ulisseia, capital do Mundo!” 
Assim que pode, Ulisses fugiu da rainha e zarpou para mar alto. Ao ver-se só, enraivecida por ter sido enganada, a rainha lançou-se da colina onde vivia em direcção ao mar. A sua longa cauda não lhe permitia mover-se com grande velocidade, mas não a impediu de serpentear até ao rio, deixando atrás de si como prova do enorme esforço, as sete colinas que ainda hoje existem em Lisboa. Chegada ao rio ainda continuou algum tempo nadando até ao mar, mas acabou por desistir, sem forças para continuar perseguindo Ulisses, que entretanto já se encontrava longe. Assim surgiu a primeira lenda referente a Lisboa e às suas sete colinas, que continuam ainda hoje a dirigir-se para o rio Tejo, quem sabe se em busca de um amor eterno.” 


Sofia Quintas
Pintura de Lima de Freitas
https://www.youtube.com/watch?v=UuKn1HkTjBg

sábado, 18 de abril de 2020

Jangada de Pedra


O primeiro-ministro falou aos portugueses, e disse, Portugueses, durante os últimos dias, com súbita intensificação nas últimas vinte e quatro horas, tem vindo o nosso país a ser alvo de pressões, que sem exagero poderei classificar de inadmissíveis, provenientes de quase todos os países europeus onde, como é sabido, se têm verificado sérias alterações da ordem pública, que se viram subitamente agravadas, sem qualquer responsabilidade nossa, pela descida à rua de grandes massas de manifestantes que, de maneira entusiástica, quiseram exprimir a sua solidariedade com os países e povos da península, o que veio evidenciar uma grave contradição em que se debatem os governos da Europa, a que já não pertencemos, diante dos profundos movimentos sociais  e culturais desses países, que vêem na aventura histórica em que nos achamos lançados a promessa de um futuro mais feliz e, para tudo dizer em poucas palavras, a esperança de um rejuvenescimento da humanidade. Ora, esses governos, em vez de nos apoiarem, decidiram tornar-nos em bodes expiatórios das suas dificuldades internas, intimando-nos absurdamente a deter a deriva da península, ainda que, com mais propriedade e respeito pelos factos, lhe devessem ter chamado navegação. Esta atitude é tanto mais lamentável quanto é sabido que em cada hora que passa nos afastamos setecentos e cinquenta metros do que são agora as costas ocidentais da Europa, sendo que os governos europeus, que no passado nunca verdadeiramente mostraram querer-nos consigo, vêm agora intimar-nos a fazer o que no fundo não desejam e, ainda por cima, sabem não nos ser possível.

sábado, 11 de abril de 2020

Viagens



Não ames viagens que reduzam a estranheza
não te desloques a lugares
dos quais já existam relatos
a tradição não diz muito afinal
e os livros só remotamente indiciam o espanto
em que se entra de olhos fechados

a terra é desde sempre incógnita e perplexa
e se regressares a ela escutarás
o que não ouviste
da primeira vez

José Tolentino Mendonça
Pintura de Noronha da Costa
https://www.youtube.com/watch?v=Jsbn_Dcidlg

segunda-feira, 6 de abril de 2020

A decadência do riso


Foi o grande mestre Rabelais que disse:

- ...Riez! Riez!
Car le rire est le propre de l´homme!

"Ride! Ride! Porque o riso é próprio do homem!" Mas como poderia pensar de outro modo o tão forte e tão profundamente humano abade de Meudon? A Meia Idade findara ou parecia findar: - e com ela findava esse irradicável desalento, tão bem simbolizado pelo velho Albert Durer, na sua gravura da "Melancolia". Um formoso moço de asas potentes, em meio de um vasto laboratório onde se acumulam todos os instrumentos das ciências e das artes, deixa pender entre as mãos a cabeça coroada de louro, e fica inerte, considerando a inutilidade de tudo, enquanto um imenso morcego, por trás, se desdobra e tapa o disco do Sol. Nos dias de Rabelais - já esse formoso moço erguera a face, se revelara em toda a sua beleza e força como o génio da Renascença, e apanhando os instrumentos esparsos pelo laboratório, começava, brilhante de esperança e vida, a reconstrução de um mundo.
Mas hoje, se, para grande vantagem da paróquia de Meudon e do universo, Rabelais ressurgisse, e de novo caminhasse entre nós com o seu "Gargântua", que diria o nobre mestre? Nós, com efeito, filhos deste século sério, perdemos o dom divino do riso.
Eu ainda me recordo de ter ouvido, na minha infância e na minha terra, a gargalhada - a antiga gargalhada, genuína, livre, franca, ressonante, cristalina!... Vinha da alma, abalava todas as vidraças de uma casa, e só pelo seu toque puro, como o do ouro puro, provava a força, a saúde, a paz, a simplicidade, a liberdade!
Não há que duvidar! Voltaram os tempos de Albert Durer! Outra vez o famoso moço de asa potentes sente, sob esta produção excessiva que o não tornou nem melhor, nem mais feliz, um imenso desalento, e, considerando a inutilidade de tudo, de novo deixa pender sobre as mãos a testa coroada de louro.


Eça de Queiroz (texto com supressões)
Gravura de Albert Durer
https://www.youtube.com/watch?v=z11pYvaLctY&t=23s

sexta-feira, 3 de abril de 2020

José

                             

                                E  agora, José?
                                A festa acabou,
                                a luz apagou,
                                o povo sumiu,
                                a noite esfriou,
                                e agora, José?
                                e agora, você?
                                você que é sem nome,
                                que zomba dos outros,
                                você que faz versos,
                                que ama, protesta?
                                e agora, José?

                                Está sem mulher,
                                está sem discurso,
                                está sem carinho,
                                já não pode beber,
                                já não pode fumar,
                                cuspir já não pode,
                                a noite esfriou,
                                o dia não veio,
                                o bonde não veio,
                                o riso não veio,
                                não veio a utopia
                                e tudo acabou
                                e tudo fugiu
                                e tudo mofou,
                                e agora, José?

                                Carlos Drummond de Andrade
                                Arte de Manuel Casimiro
                                https://www.youtube.com/watch?v=Sx1j7bfvnis