domingo, 31 de dezembro de 2017

Cantarolar pela rua

                                 

                                    Cantarolar pela rua   Assobiar
                                    de mãos nos bolsos como quem tem dez anos ou cinquenta
                                    Ter aberto um jornal que não se lê                       
                                    Interromper sem razão uma conversa
                                    Voltar ou não voltar e afinal voltar               
                                    Contagiar desta alegria toda até então submersa
                                    os que não sabem nada disto ou disto riem
                                    e só de ver sorrir assim também sorriem
                                    confusamente sem saber porquê

                                    isto é estar vivo é bom e não se explica
                                    nem inventa


                                    Mário Dionísio
                                    http://www.centromariodionisio.org/a_pintura_mariodionisio.php

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Os animais carnívoros


Dava pelo nome muito estrangeiro de Amor, era preciso chamá-lo sem voz - difundia uma colorida multiplicação de mãos, e aparecia depois todo nu escutando-se a si mesmo, e fazia de estátua durante um parque inteiro, de repente voltava-se e acontecera um crime, os jornais diziam, ele vinha em estado completo de fotografia embriagada, descobria-se sangue, a vítima caminhava com uma pêra na mão, a boca estava impressa na doçura intransponível da pêra, e depois já se não sabia o que fazer, ele era belo muito, daquela espécie de beleza repentina e urgente, inspirava a mais terrível acção do louvor, mas vinha comer às nossas mãos, e bastava que tivéssemos muito silêncio para isso, e então os dias cruzavam-se uns pelos outros e no meio habitava uma montanha intensa, e mais tarde às noites trocavam-se e no meio o que existia agora era uma plantação de espelhos, o Amor aparecia e desaparecia em todos eles, e tínhamos de ficar imóveis e sem compreender, porque ele era uma criança assassina e andava pela terra com as suas camisas brancas abertas, as suas camisas negras e vermelhas todas desabotoadas.

Herberto Helder
(pintura de Mário Cesariny de Vasconcelos)
https://www.youtube.com/watch?v=1slAcb1Wikk

sábado, 2 de dezembro de 2017

The Sixties



Na ressaca da visita à exposição “A Revista Aspen, 1965-1971”, na Culturgest:

Minimal, pós-minimal, conceptual, pós-conceptual, psicadelismo and so on. Que sei eu? Quase nada. O que aprendi? Muito pouco. “O que faz falta é agitar a malta o que faz falta…” (José Afonso, 1972)

E em Portugal como foram os anos 60?

Entram guizos chocas e capotes
e mantilhas pretas
entram espadas chifres e derrotes
e alguns poetas
entram bravos cravos e dichotes
porque tudo o mais
são tretas.


Fernando Tordo / Ary dos Santos, 1973

Stop! Essa canção não é da década de 60. Tão bonita que apetece cantar mas como diz o poema de Miguel Torga:

“Apetece cantar, mas ninguém canta.
Apetece chorar, mas ninguém chora.
Um fantasma levanta
A mão do medo sobre a nossa hora.”


Na verdade, a censura imposta pelo regime político pretendia manter-nos isolados, parados no tempo e, por isso, tentava impedir a divulgação de quase tudo o que se passava no estrangeiro, para nos proteger de más influências que pudessem gerar contestação.
Até aos anos 60, as artes e as letras em Portugal tinham a língua e a cultura francesas como referência. A partir dessa data assiste-se a uma mudança de paradigma. A cultura anglo-saxónica insinua-se e começa a ser muito apreciada e imitada pelos jovens. 
No campo da música, em Portugal, veja-se o caso do conjunto musical “Os Sheiks” que, além de interpretarem êxitos da música anglo-saxónica, cantavam a chamada música yé-yé. Estamos nos primórdios do rock português. O Quarteto 1111, formado por José Cid, era um projecto bastante arrojado e ficou célebre principalmente pela canção que começava: 

“ Depois de Álcácer-Quibir
El rei D. Sebastião
(oh, oh, oh…)

Perdeu-se num labirinto
Com seu cavalo real
(oh, oh, oh...)


De referir que o Festival de Vilar de Mouros, em 1971, o nosso Woodstock, contou com a participação de grandes nomes da música internacional, como Elton John, além de bandas e cantores nacionais, o que atraiu um grande número de jovens estrangeiros, muitos deles “hippies”. O facto de Vilar de Mouros se situar num local de difícil acesso, longe dos grandes centros urbanos, no meio da natureza, uma espécie de paraíso, acabou por contribuir para o ambiente especial que se criou, o encantamento de que falam todos os portugueses que estiveram presentes, porque nem em sonhos acreditavam que tal pudesse acontecer no nosso país! 

Eles não sabem que o sonho
É uma constante da vida
Tão concreta e definida
Como outra coisa qualquer 

 Manuel Freire / António Gedeão, 1969                                                                               (continua)

HN, 30/11/2017
(em homenagem ao Fernando a quem, por motivos óbvios, pertencia o cartaz acima reproduzido)
https://www.youtube.com/watch?v=y1tydtIldYU

domingo, 26 de novembro de 2017

Nápoles






Fui tomada por uma exaustão que, por mais que tentasse repousar, não queria passar. Pela primeira vez fiz gazeta. Faltei à escola, creio, quinze dias, e nem a António disse que já não conseguia estudar, que queria desistir. Saía à hora habitual, passeava toda a manhã a pé pela cidade. Aprendi muito sobre Nápoles, nesse período. Remexia os livros usados das bancas do mercado de Port'Alba, assimilava títulos sem querer, nomes de autores, prosseguia em direcção a Toledo e ao mar. Ou subia ao Vomero pela Via Salvator Rosa, chegava a San Martino, descia pelo Petraio. Ou então explorava a Doganella, ia até ao cemitério, cirandava pelas alamedas silenciosas, lia os nomes dos mortos. Por vezes, jovens vadios, velhos patetas, até senhores distintos de meia-idade, iam-me no encalço, fazendo-me propostas obscenas. Apressava o passo de olhos baixos, fugia sentindo o perigo, mas não desistia. Pelo contrário, quanto mais fazia gazeta à escola mais aquelas manhãs de vadiagem alargavam o rasgão na rede de obrigações escolares que me aprisionava desde os seis anos de idade. Na devida hora regressava a casa e ninguém suspeitava de que eu, e logo eu, não tina ido à escola.

Elena Ferrante
https://www.youtube.com/watch?v=X24wnVcBMLg


domingo, 19 de novembro de 2017

A flor



Acerca do Vesúvio poderíamos dizer alguma coisa. Ficou
no seu cume uma nuvem e o vento nem sequer a afasta. Talvez seja
uma recordação que veio ter connosco. Caminhemos
nessa direcção, porque é devagar que os nossos passos se dirigem
para o tempo. A vegetação procura o interior das cinzas.
O mar fica próximo; existe também um rio. Ao longe principiaram a cultivar
os campos. Outrora, ao descer da lava, julgo que todos estavam
adormecidos. Há quem diga que foi o sono que a trouxe,
aquecida por tantos corpos ali deitados, vasos da sua própria
nudez agora sujeita a um calor desconhecido. Que sonhos
podem existir aqui? Ficaram perdidos, dispersos pelos caminhos
sem saída de quem desperta. As mãos tocam
as chamas nelas ocultas, as fendas que se abrem mais ao encontrarmos
estas sementes iluminadas. Sempre foi igual a sombra
que as colunas deixam umas nas outras. Passamos entre elas. Talvez
uma flor calcinada conserve ainda o seu perfume.

Fernando Guimarães
https://www.youtube.com/watch?v=v9E9fv6zr18

sábado, 4 de novembro de 2017

Tentando compreender Gordon Matta-Clark


Como é triste…
Este bairro agoniza
Ruas quase desertas
Casas abandonadas
Lixo, muito lixo
Ruas esburacadas e negras.
Pobres habitantes
Empurrados
Para a periferia!
Outros virão
Instalar-se aqui
Nos novíssimos prédios
Em construção.
(Isto valoriza a zona.
E é bom para o turismo!)

Instintivamente
Apanho um pedaço de papel
Miro-o, remiro-o
Amarroto-o com as duas mãos
Aliso-o vagarosamente
Com a tesoura faço uns cortes
Um picotado
E volto a amarrotá-lo
Levo um pedacinho à boca
E mastigo-o
Devagar
A saborear
E eureka, entendi!
Ok, Gordon Matta-Clark,
Tens toda a razão,
Os tempos mudaram,
A arte já não cabe
No aconchego dos museus.
Ficaram célebres
As tuas intervenções
Nas casas abandonadas
Mostrando novas formas de olhar
E agitando as consciências…
Ok, Gordon Matta-Clark,
Mais uma vez concordo contigo.
A arte é frugal
Total
Para ser comida
E vivida
Mortal
Como todos nós.

domingo, 29 de outubro de 2017

As lágrimas do poeta

             

               Um poeta barroco disse:
               as palavras são
               as lágrimas dos olhos

               Mas o que é um poema
               senão
               um telescópio do desejo
               fixado pela língua?

               O voo sinuoso das aves
               as altas ondas do mar
               a calmaria do vento:
               Tudo
               tudo cabe dentro das palavras
               e o poeta que vê
               chora lágrimas de tinta.

               Ana Harthely
              (pintura de Josefa de Óbidos)
              https://www.youtube.com/watch?v=xoAuadoMZsE

domingo, 15 de outubro de 2017

O lixo



Sempre a voz do limpo fora a cara da arte.
Podiam deixar-se cair os olhos no contorno
ou mergulhá-los na sombra,
tinha-se sempre a limpidez do nu.

O nu era o canto     a face     o gesto
o limpo telegrama abstracto
a mensagem
porque o LIXO     sabêmo-lo
por repugnante     era expurgado.

Suprimido dos objectos          dos corpos
                  dos ambientes       dos espíritos
quando se exprimia tirava-se o abjecto.

Só o limpo era o requinte.

Por isso        a arte
fazia passar tudo pelo quarto de banho.
A higiene começou assim
nos altos domínios da palavra e do desenho.
O lixo não se usava
escondido       tinha um viver secreto.
Foi preciso chegarmos à era da limpeza do cérebro
da medicina e da psico-análise
para descobrir poesia       e utilidade
no LIXO.

Salette Tavares
http://www.sabado.pt/video/artes/detalhe/o-artista-que-transforma-lixo-em-arte

domingo, 8 de outubro de 2017

Joan Miró

                                 

                                    O pássaro atravessa 
                                    silencioso a noite
                                    e pousa nas asas da luz
                                    para ouvir imóvel
                                    o cântico das cores
                                    de Joan Miró.

                                    Cansada da larga
                                    travessia noturna
                                    a estrela se deita
                                    no dorso do pássaro
                                    e vem beber a luz
                                    que escorre macia
                                    da mão de Miró.

                                    Um pássaro na cabeça,
                                    a fronte esfogueada
                                    de sal mediterrâneo,
                                    a mulher morena
                                    abre as mãos consteladas
                                    e oferece ao vento
                                    as espigas do canto
                                    que nunca se cala
                                    no sonho catalão
                                    de Joan Miró. 

                                    Thiago de Mello
                                     (pintura de Joan Miró)
                                     https://www.youtube.com/watch?v=8n01HXjp4sU

domingo, 1 de outubro de 2017

as meninas, 1

           

                       as minhas filhas nadam, a mais nova
                  leva nos braços bóias pequeninas.
                  a outra dá um salto e põe à prova
                  o corpo esguio, as longas pernas finas:

                  entre risadas como serpentinas,
                  vai como a formosinha numa trova,
                  salta a pés juntos, dedos nas narinas, 
                  e emerge ao sol que o seu cabelo escova.

                  a água tem a pele azul-turquesa
                  e brilhos e salpicos, e mergulham
                  feitas pura alegria incandescente.

                  e ficam, de ternura e de surpresa,
                  nas toalhas de cor em que se embrulham, 
                  ninfinhas sobre a relva, de repente.

                  Vasco Graça Moura
                  https://www.youtube.com/watch?v=xa39gh2ilP4

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Receita para fazer o azul


Se quiseres fazer azul,
pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,
que possas levar ao lume do horizonte;
depois mexe o azul com um resto de vermelho
da madrugada, até que ele se desfaça;
despeja tudo num bacio bem limpo,
para que nada reste das impurezas da tarde.
Por fim, peneira um resto de ouro da areia
do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.
Se quiseres, para que as cores se não desprendam
com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.
Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez
ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre
na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor
até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.
Ambas as cores te parecerão semelhantes, sem que
possas distinguir entre uma e outra.
Assim o fiz - eu, Abraão ben Judá Ibn Haim,
iluminador de Loulé - e deixei a receita a quem quiser,
algum dia, imitar o céu.

Nuno Júdice
https://www.youtube.com/watch?v=idG1ozQcFxg

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Pores do Sol


Se eu fosse pintor passava a minha vida a pintar o pôr do sol à beira-mar. Fazia cem telas, todas variadas, com tintas novas e imprevistas. É um espectáculo extraordinário.
Há-os em farfalhos, com largas pinceladas verdes. Há-os trágicos, quando as nuvens tomam todo o horizonte com um ar de ameaça, e outros doirados e verdes, com o crescente fino da lua no alto e do lado oposto a montanha enegrecida e compacta. Tardes violetas, neste ar tão carregado de salitre que torna a boca pegajosa e amarga, e o mar violeta e doirado a molhar a areia e os alicerces dos velhos fortes abandonados...
Um poente desgrenhado, com nuvens negras lá no fundo, e uma luz sinistra. Ventania. Estratos monstruosos correm do norte. Sobre o mar fica um laivo esquecido que bóia nas águas - e não quer morrer...
Esta tarde o sol põe-se sobre uma barra e aparece deformado, entre grandes manchas de nuvens acobreadas. Some-se, e ressurge por fim como um grande balão de fogo num oceano revolto, até que entra numa grande nuvem espessa com interstícios de fogo e explode iluminando o espaço e a água cor de chumbo.

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Montemor-o-Velho





Nossa Senhora da Expectação
O castelo vê-se de longe, abrange toda a coroa da elevação em que foi levantado e, tanto pela sua disposição no terreno como pelo número de torres quadradas e cilíndricas que lhe reforçam os muros, transmite uma poderosa impressão de máquina militar. O viajante não precisa de sonhar castelos em Espanha, tem-nos em Portugal, e este avulta entre a grande cidade deles que já lhe povoa a memória. É possível, no entanto, que o viajante, a quem o cultivo das letras não é estranho, esteja a deixar-se influenciar por factos que com o castelo nada têm, como seja terem nascido nesta boa vila de Montemor o Fernão Mendes Pinto da Peregrinação e o Jorge de Montemor da Diana. Sabe muito bem o lugar que ocupa nesta fila de três, lá para trás, no coice, mas, sendo a imaginação livre, compraz-se com a ideia de que por esta mesma porta de Santa Maria de Alcáçova entraram a baptizar-se, cada um em seu tempo, o pícaro Fernão e o amoroso Jorge e agora entra o viajante, por seu pé, com muito mais sal na boca do que à salvação convém, mas tão curioso como Fernão e tão melindroso como Jorge. Fique este desabafo e vamos às pedras e pinturas. Santa Maria de Alcáçova em três naves, mas são tão amplos os arcos, tão esbeltas as colunas, que mais parece isto um salão enfeitado de falsas sustentações. Mora aqui um retábulo renascentista presumivelmente da oficina de João Ruão, e nele, entre Santa Luzia e Santa Apolónia, uma Virgem da Expectação gótica, de Mestre Pero, que mostra o ventre fecundado, pousando nele a mão esquerda. É uma formosa imagem, que não esquece.
                                                                                                   
José Saramago
https://www.youtube.com/watch?v=8QthBRx6Cd4


                   
                                                                                                    

sábado, 12 de agosto de 2017

Como se estivesse em Agosto


Estou todo no mês de agosto
Estou escarranchado no lombo nutrido de agosto
sentado à mesa de um café envolto no manto de múltiplas vozes
olhando pela janela uma toalha de mar e a terra ao fundo
debaixo do céu azul e branco do sol e do vento
café e vozes céu terra e mar tudo coisas talvez de agosto
objectos que o deus deste mês se porventura dada a fartura
                                houver também um deus para os meses
utiliza para que assim toda a gente possa falar univocamente de agosto
e agosto não seja o nome frio dos números
mas seja um tempo e a orla da água que banha os pés desse tempo
e as coisas que existem na mão aberta desse tempo
Agosto não é o oitavo mês do ano
as férias há muito previstas e marcadas o sítio
de certos rostos por um instante resplandecentes mas cedo
                                                  bebidos pelo esquecimento
talvez para o ano vindos na vaga de um novo mês de agosto
Agosto são muitos jornais vagarosamente lidos
de páginas uma a uma passadas como os trinta e um dias deste mês
agosto é o espaço do pensamento da boca boquiaberta
do sol outra vez usado como o único relógio de pulso
Agosto é eu estar aqui a trazer as mangas arregaçadas
é envelhecer ao sol na dispersão distraída de determinados gestos
é saber que estou de momento separado de secretárias com
                                            muitos problemas em suspenso
que me sento numa pedra e oiço uma música e reconheço
               a minha forma mais frequente de me sentir vivo
embora depois complique o que sinto e diga talvez que me sinto feliz
Agosto são talvez estas palavras todas onde me perco onde
                                                  procuro pôr os meus passos
onde afinal penso que permaneço um pouco mais do que
                                                  no frágil edifício dos dias
Estou um pouco nestas palavras na própria
palavra agosto que ponho sobre o papel
e que embora aponte para agosto não é esse mês de agosto
Estou em agosto estou um pouco em agosto

Ruy Belo
https://www.youtube.com/watch?v=5ddn4urVSZ8

domingo, 30 de julho de 2017

Mar


O verão já vai alto e eu ainda não dei um mergulho.
O estio é época de dura faina para quem vive do palco e o meu síndroma-de-sereia-seca está taco a taco com um valente défice de vitamina D.
Preciso de água como as plantas, só que salgada. Quando passo perto do mar o vejo a entrar pela janela do carro, sinto uma espécie de sede, que não é de beber, mas de mergulhar. Todos os anos se repete a privação e todos os anos prometo a mim mesma um (utópico) verão na areia, só para ver se é possível fartar-me dele, e não fazer mais nada que não ler, dormir e flutuar.
Flutuar é aliás um dos prazeres da vida mais menosprezados e uma das artes mais intuitivas (porém delicadas) que podemos praticar. Para mim sempre foi fácil. É só estender o corpo na água como uma cama infinita, e senti-lo derreter para depois levitar, numa espécie de lençol fluído que nos embala docemente. Deve ser o mais perto de estar numa placenta, mas com todo um céu para contemplar. E em vez de ouvirmos um coração de mãe, ouvimos a conversa dos búzios, ou o nosso próprio murmurar, que a água nos devolve com uma canção de ninar engarrafada.
Sempre vivi perto do mar. Cresci a 500 metros do Atlântico, onde também cresceu António Nobre. Da janela virada para o porto de Leixões, gostava de ver a ponte móvel e a entrada dos navios, com o seu uivo, sempre grave. De ver o rebuliço dos guindastes, descarregando troncos, carros, cereais. De ver as gaivotas invadir o recreio da escola em dia de tempestade. De voltar da praia sem sandálias. De mexer no sargaço regurgitado pelas ondas. De ver o brilho madrepérola dos grãos de areia incrustados na pele, como pedras preciosas em marfim. E de sentir o cheiro do mar permanentemente. Como uma confirmação de proximidade. Sobretudo no inverno, quando está tão bravo que cospe tudo o que não quer e a nortada nos fere os tímpanos com suas agulhas.
Acho que uma boa parte da minha identidade portuguesa está depositada nessa dependência. Nessa certeza de que viver sem mar é como morar numa casa sem janelas.

Capicua
(pintura de Alfredo Roque Gameiro)
https://www.youtube.com/watch?v=FOCucJw7iT8&t=592s

domingo, 23 de julho de 2017

Marcha fúnebre de Siegfried - Wagner

Na tarde que de névoas se escurece
escuto a marcha que ao herói transporta
fúnebre e doce, tão violenta e fluida,
à sua pira em que arderá cadáver
a cinzas reduzido. Erguem-se os metais
nos ares entreabertos, terra se contrai
onde tambores reboam, e as madeiras
e cordas acompanham o cortejo
descendo para o rio que perpassa
igual sempre a si mesmo de outras águas
como os heróis que morrem tão humanos.
E é o que nos diz este mostrar por música:
os semi-deuses morrem como nós,
como nós sofrem mágoas de derrota,
e como nós desejam, amam, gozam
ou raivam da tristeza de não ter.
Mas nós não possuímos quanto a eles cabe,
neste fervor de imaginá-los, quem
nos cante o fim de tudo o que foi grande,
o que foi puro, o que de consentido
foi gesto dedicado sem usura
ao simples existir além de nós
na terra que nas trevas se nos fecha.
Não temos isto mais do que em só música,
mas os deuses também não, que aos heróis mortos
nunca sobrevivem.

Jorge de Sena
(Poster de Ingrid Rosell)
https://www.youtube.com/watch?v=XPmldLR3bJw

domingo, 16 de julho de 2017

As coisas simples

                   

                          (Sobre pinturas de Nuno de San Payo)

                          Gosto das coisas sólidas. Sem brilho.
                          Coisas de linho ou de pedra
                          desmesuradamente agarradas ao chão.

                          Gosto das coisas brancas
                          lavadas pelo ar fresco da manhã
                          e varridas pela memória recente
                          da espuma, do sal ou da gaivota.

                          Coisas simples e serenas:
                          o pão quente e farto, o café tomado em família,
                          as meninas chilreando sobre a relva
                          ao sol da primavera.

                          Gosto da música suave que,
                          quase sem de si nos dar presença,
                          se desprende levemente
                          de uma flor irrepetível.

                          Gosto dos pequenos gestos,
                          os simples, tranquilos e altivos gestos.

                          Gosto de saber que essa altivez
                          transporta um incêndio discreto,
                          um canto de alaúde, um perfume de alfazema.

                          Gosto das coisas simples, sólidas serenas:
                          um momento de obscura comoção, um resto de luz
                          a estender-se na mesa,
                          a folha de jornal já lido que se desprende e vai
                          na desmedida ambição
                          de se tornar borboleta.

                          José Fanha
                          (pintura de Nuno de San Payo)
                          https://www.youtube.com/watch?v=EMi3aTRLdoU

domingo, 9 de julho de 2017

Ciclo do Cavalo


                                   As formas do teu ser são várias,
                                   mas negam a inércia, arrancam-te
                                   do chão. Tens o poder e a altura precisas
                                   para a vasta geografia dos campos e das casas.

´                                  És vertical no peso, na verdade do nome
                                   do princípio ao fim, firme de seres terra
                                   e o cheiro que tens é de um livre universo:
                                   a terra pode esperar, confia em teu galope.

                                   Porque te quero único, por não ser e
                                   para ser, quantas vezes te falho
                                   sem a paciência
                                   da tua impaciência nobre de cavalo.
                                   Mas o teu galope liberta o meu alento
                                   e o meu desejo corre sobre a planície branca,
                                   a teu lado chispando a rubra fúria
                                   com a garganta ébria
                                   de uma implacável frescura.

                                   António Ramos Rosa
                                   (pintura de Júlio Pomar)
                                   https://www.youtube.com/watch?v=bdBMhX9GZpY

                                 

domingo, 2 de julho de 2017

Os dois irmãos


                       Eu conheço dois meninos
                       que em tudo são diferentes.
                       Se um diz: “Dói-me o nariz!”
                       o outro diz: “Ai, meus dentes!”

                       Se um quer brincar em casa,
                       o outro foge para o monte;
                       e se este a casa regressa,
                       já o outro foi para a fonte.

                       É difícil conviver
                       com tanta contradição.
                       Quando um diz: “Oh, que calor! “,
                       “Que frio!” – diz o irmão.

                       Mas quando a noitinha chega
                       com suas doces passadas,
                       pedem à mãe que lhes conte
                       histórias de Bruxas e Fadas.

                       E quando o sono esvoaça
                       por sobre o dia acabado,
                       dizem “Boa noite, mãe!”
                       e adormecem lado a lado.

                       Maria Alberta Menéres
                       (pintura de Portinari)
                       https://www.youtube.com/watch?v=zhLPzsD_c5o


domingo, 25 de junho de 2017

As mãos

                     

                        Sabias que as mãos envelhecem mais depressa? Elas
                        estiveram sempre perto do tempo, nunca se cansaram
                        de receber a poeira dos campos, a areia numa praia, o ar
                        que vinha da nossa respiração. Ao folhearem um livro
                        colhiam as palavras. Por vezes aproximam-se
                        para encontrar o peso das coisas e as conhecer
                        melhor. Junto das árvores sentem a resina, talvez
                        a luminosidade que existe no seu interior. Se acenam
                        a alguém ficam depois mais unidas. É assim que o seu calor
                        nos pertence. Depois podes esperar que principie um gesto
                        que seja de todos o mais simples. Será o último? Olha-as
                        de novo, para que elas possam também descansar.

                        Fernando Guimarães
                        (arte de Helena Almeida)
                        https://www.youtube.com/watch?v=JnmbN3Yitcs

domingo, 18 de junho de 2017

As florestas são do outro mundo


Sempre pensei em florestas como se elas fossem
seres sobrenaturais, na extensão das reservas de oxigénio
e gargalhadas minúsculas, de luzes e trovões,
no seu peso de mistérios voadores
e de fadas,
nas cupuladas abóbadas vegetais
onde guinchavam os bichos.

Floresta era para mim uma pedagogia orgânica,
sagrada, herdada de magos
e feiticeiras da escrita,
negra ou imersa no verde absoluto,
germânica ou imensamente amazónica
por anacronia.

No campo onde eu cresci o campo foi sempre um campo
meio aberto ao vento e à falta de memória.
As altas estacas pernaltíssimas, esse pinheiro bravo,
desengonçado e tão pobre de copas e pinhões,
deixavam-no esquecido a medrar gerações
atrás de gerações.

Por que não, por fim, essa floresta?
Irei talvez voltar a chorar vegetalmente,
resignar-me-ei à resina do pinho
coalhada nos meus olhos, e entre sombras de sonhos inverosímeis,
acariciarei algum anão matreiro
oculto na floresta mansa dos pinheiros bravios,
e respirarei o cheiro do eucalipto astuto
para me alisar os nervos encrespados
pela inquietação do mar.

Armando Silva Carvalho
(pintura de Pedro Cabrita Reis)
https://www.youtube.com/watch?v=sgNeH9_8l0w

domingo, 11 de junho de 2017

É preciso um país

               

                 Não mais Alcácer Quibir.
                 É preciso voltar a ter uma raiz
                 um chão para lavrar
                 um chão para florir.
                 É preciso um país.

                 Não mais navios a partir
                 para o país da ausência.
                 É preciso voltar ao ponto de partida
                 é preciso ficar e descobrir
                 a pátria onde foi traída
                 não só a independência
                 mas a vida.

                 Manuel Alegre
                 (pintura de Graça de Morais)
                 https://www.youtube.com/watch?v=ubz94c4SyJU

domingo, 4 de junho de 2017

A dama pé de cabra


D. Diogo Lopes era um infatigável monteiro: neves da serra no Inverno, sóis estivais no Verão, noites e madrugadas, disso se ria ele.
Pela manhã cedo de um dia sereno, estava D. Diogo em monte selvoso e agreste, esperando um porco montês, que, batido pelos caçadores, devia sair naquela assomada.
Eis senão quando começa a ouvir cantar ao longe: era um lindo, lindo cantar.
Alevantou os olhos para uma penha que lhe ficava fronteira: sobre ela estava assentada uma formosa dama:era a dama quem cantava.
- Quem sois vós, senhora tão gentil; quem sóis, que logo me cativastes?
- Sou de tão alta linhagem como tu; porque venho do semel de reis, como tu, senhor de Biscaia.
- Se já sabeis quem eu seja, ofereço-vos a minha mão, e com ela as minhas terras e vassalos.
- Pois sabe que para eu ser tua é preciso esqueceres-te de uma cousa que a boa rica-dona te ensinava em pequenino e que, estando para morrer, ainda te recordava.
- De quê, de quê, donzela? - acudiu o cavaleiro com os olhos chamejantes - De nunca dar tréguas à mourisma, nem perdoar aos cães de Mafamede? Sou bom cristão. Guai de ti e de mim, se és dessa raça danada!
- Não é isso, dom cavaleiro - interrompeu a donzela a rir. - O de que eu quero que te esqueças é do sinal-da-cruz: o que eu quero que me prometas é que nunca mais hás-de persignar-te.
- Seja assim: está dito. Vá com seiscentos diabos.
Só quando, à noite, no seu castelo, pôde considerar miudamente as formas nuas da airosa senhora, notou que tinha os pés forcados como os de cabra.

Alexandre Herculano
(pintura de Paula Rego)
https://www.youtube.com/watch?v=BUefckcQwMo


segunda-feira, 29 de maio de 2017

No fundo do mar





No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.

Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.

Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.

Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.


Sophia de Mello Breyner Andresen
(ilustração de Fernanda Fragateiro)
https://www.youtube.com/watch?v=stcQlmM941k

domingo, 21 de maio de 2017

O livro



Entrei numa livraria. Pus-me a contar os livros que há para ler e os anos que terei de vida. Não chegam, não duro nem para metade da livraria.
Deve certamente haver outras maneiras de se salvar uma pessoa, senão estou perdido.
No entanto, as pessoas que entravam na livraria estavam todas muito bem vestidas de quem precisa salvar-se.

Comprei um livro de filosofia. Filosofia é a ciência que trata da vida; era justamente do que eu necessitava - pôr ciência na minha vida.
Li o livro de filosofia, não ganhei nada, Mãe! não ganhei nada. 
Disseram-me que era necessário estar já iniciado, ora eu só tenho uma iniciação, é esta de ter sido posto neste mundo à imagem e semelhança de Deus. Não basta?

Imaginava eu que havia tratados da vida das pessoas, como há tratados da vida das plantas, com tudo tão bem explicado, assim parecido com o tratamento que há para os animais domésticos, não é? Como os cavalos tão bem feitos que há!
Imaginava eu que havia um livro para as pessoas, como há hóstias para cuidar da febre. Um livro com tanta certeza como uma hóstia. Um livro pequenino, com duas páginas, como uma hóstia. Um livro que dissesse tudo, claro e depressa, como um cartaz, com a morada e o dia.

Eu queria que os outros dissessem de mim: Olha um homem! Como se diz: Olha um cão! quando passa um cão; como se diz: Olha uma árvore! quando há uma árvore. Assim, inteiro; sem adjectivos, só de uma peça: Um homem!

Almada Negreiros (texto e pintura)
https://www.youtube.com/watch?v=puPdW38FH_4

sábado, 13 de maio de 2017

Creio nos anjos...

                   

                    Creio nos anjos que andam pelo mundo,
                    Creio na Deusa com olhos de diamantes,
                    Creio em amores lunares com piano ao fundo,
                    Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,

                    Creio num engenho que falta mais fecundo
                    De harmonizar as partes dissonantes,
                    Creio que tudo é eterno num segundo,
                    Creio num céu futuro que houve dantes,

                    Creio nos deuses de um astral mais puro,
                    Na flor humilde que se encosta ao muro,
                    Creio na carne que enfeitiça o além,

                    Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
                    Na ocupação do mundo pelas rosas,
                    Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen.

                    Natália Correia
                    (caricatura de Vasco)
                   https://www.youtube.com/watch?v=8xhHxr2t4Ts

domingo, 7 de maio de 2017

Terras do Demo - Junho


Inácio Relvas Maturranga de Mioma gozava a tarde de Junho à sombra da latada que cobria de frescura o pátio antigo e o tanque, em que se vinham lançar águas de mina, deixando ao despedir do boeiro um soluço sem fim. Uma galinha dava aula aos pintainhos, mesmo debaixo de seus pés, e suspendeu a leitura de Comédia Ulyssipo a observar-lhes a manobra, trajados ainda do pêlo do demo, nas rémiges um pó de arco-íris, gárrulos e inocentes como os diabinhos dos velhos autos. A chieira que erguiam, ao prear mosca ou cibato perdido, quebrava o silêncio do lugar, fechado ao mundo, e aberto em toda a frente dele, ao horizonte infinito. Pinhais taciturnos, baldios de fieito e de sargaço eram levados na envolta efusiva do verde; e céu azul, terra em festa, os animaizinhos do Senhor cantavam. Cantavam. Cantavam todos nos seus jardins de serradela, ou à boca dos agulheiros, o grilo, o ralo, a cigarra vadia; na mata que, às horas do poente, estendia sua sombra pelos mortos, a rola e a poupa arrulhavam; e ali nas cerejas do quintal, que já tinham bichos, o passaredo moinante parecia uma aula de meninos mal criados. A Primavera despedia discretamente, sem avisar, vinha aí o Verão, um senhor Verão de chapéu de palha e cara pintada das amoras e das uvas. Aves e insectos celebravam a vinda estrondosa do grande rabaceiro, que lhes trazia fêmea, um silo, e farândolas de mosquitinhos loucos para encher o papo.