domingo, 27 de novembro de 2016

Discurso


DEDICATÓRIA
À República de Genebra

MAGNÍFICOS, MUITO HONRADOS E SOBERANOS SENHORES,

Tendo tido a felicidade de nascer entre vós, como poderia eu meditar sobre a igualdade que a natureza pôs entre os homens e sobre a desigualdade que eles instituíram, sem pensar na profunda sabedoria com a qual uma e outra, felizmente combinadas nesse Estado, concorrem, da maneira mais próxima da lei natural e mais favorável à sociedade, para  a manutenção da ordem pública e para a felicidade dos particulares?...
Quanto me é doce poder colocar entre os nossos melhores cidadãos esses zelosos depositários dos dogmas sagrados autorizados pelas leis, esses veneráveis pastores das almas, cuja viva e doce eloquência leva tanto mais aos corações as máximas dos Evangelhos quanto começam sempre por praticá-las eles próprios! Toda a gente sabe com que sucesso a grande arte do púlpito é cultivada em Genebra. Mas, muito acostumados a ouvir falar de uma maneira e a fazer de outra, poucos sabem até que ponto o espírito do cristianismo, a santidade dos costumes, a severidade para consigo mesmo e a doçura para com os outros reinam no corpo dos nossos ministros.

Jean-Jacques Rousseau
https://www.youtube.com/watch?v=9-btdB6IxhU

sábado, 19 de novembro de 2016

Genebra





Genebra em Dezembro

Campos de neve e píncaros distantes
Sinos que morrem
Asas brancas em frios céus distantes
Águas que correm.

Canais como caminhos prisioneiros
Em busca de saída
Para os mares, os grandes, traiçoeiros
Mares da vida.

Cisnes em bando interrogando as águas
Do Ródano, cativas
Ruas sem perspectivas e sem mágoas
Fachadas pensativas.

Chuva fina tangendo namorados
Sem amanhã
Transitando transidos e apressados
Pont du Mont Blanc.

Relógios pontuais batendo horas                
Aqui, ali, adiante
Vida sem tempo pela vida afora
Tédio constante.

Tédio bom, tédio conselheiro, tédio
Da vida que não é
E para a qual há sempre bom remédio
Do bar do "Rabelais".

Vinicius de Moraes

https://www.youtube.com/watch?v=W50lMWdWEfo

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Aurora Boreal


Tenho quarenta janelas
nas paredes do meu quarto.
Sem vidros nem bambinelas
posso ver através delas
o mundo em que me reparto.
Por uma entra a luz do Sol,
por outra a luz do luar,
por outra a luz das estrelas
que andam no céu a rolar.
Por esta entra a Via Láctea
como um vapor de algodão,
por aquela a luz dos homens,
pela outra a escuridão.
Pela maior entra o espanto,
pela menor a certeza,
pela da frente a beleza
que inunda de canto a canto.
Pela quadrada entra a esperança
de quatro lados iguais,
quatro arestas, quatro vértices,
quatro pontos cardeais.
Pela redonda entra o sonho,
que as vigias são redondas,
e o sonho afaga e embala
à semelhança das ondas.
Por além entra a tristeza,
por aquela entra a saudade,
e o desejo, e a humildade,
e o silêncio, e a surpresa,
e o amor dos homens, e o tédio,
e o medo, e a melancolia,
e essa fome sem remédio
a que se chama poesia,
todos os risos e choros,
todas as fomes e sedes,
tudo alonga a sua sombra
nas minhas quatro paredes.

Oh janelas do meu quarto,
quem vos pudesse rasgar!
Com tanta janela aberta
Falta-me a luz e o ar.


António Gedeão
(Foto de Té Militão, Nov. 2016)
https://www.youtube.com/watch?v=O4vN3w5Y3c8

sábado, 5 de novembro de 2016

Cortina

                       
                         Que a Morte, quando vier,
                         não venha matar um morto.
                         Quero morrer em pujança.
                         Quero que todos lamentem
                         a ceifa de uma esperança

                                       - não sendo eu já bem de mim
                                       nem do meu sonho também,
                                       mas sendo um sonho já deles;
                                       já tão deles que hão-de crer
                                       que o levantaram; tão seu
                                       que, ao secar, lhes vai doer
                                       e vai deixar
                                       pedaços vivos nas mãos
                                       (cristais quebrados rasgando-as),
                                       saudades vivas no olhar.

                      Quero morrer com os dedos
                      a quatro dedos do Céu,
                      pra que depois pensem que eu
                      só por morrer não cheguei;
                      só não cheguei por traição
                                       (pra que não saibam que a Morte
                                       foi a minha salvação).


                     Sebastião da Gama
                     (pintura de José Escada)
                     http://www.rtp.pt/tarquivo/index.php?article=1760&tm=23&visual=4