sábado, 15 de abril de 2023

Vinte e cinco de Abril

 

Este é um poema

com saudade da festa...

 

Dias de vermelho

de damasco e de riso

 

Das horas de alegria

e de bandeiras, de cravos

rubros postos no vestido

 

Este é um poema

feito de memória

 

Da pressa incontida

no passo corrido

 

De fala crescida

de prisões abertas, de escrita

liberta descobrindo o sentido

 

Este é um poema recordando

a mudança, da esperança

e do sonho acontecido

 

Com palavras

do corpo e de lembrança

 

Exigindo o futuro

a promessa e o grito

 

Este é um poema

cantando

a liberdade

 

De lágrimas costuradas

suturando o sorriso

 

Ousando dizer da ambiguidade

da estranheza do novo

misturado ao antigo

 

Este é um poema

torneando o avesso

 

Da luz da madrugada

de uma noz de vidro

 

Do voo das gaivotas

junto à pele das águas

fazendo do Tejo o seu precipício

 

Este é um poema

de visitar a História

 

Da revolução

o ganho

e também o perdido

 

Da viagem e do mar

da língua portuguesa

onde na paixão me encontro comigo


Maria Teresa Horta

https://www.50anos25abril.pt/iniciativas/marco

quinta-feira, 6 de abril de 2023

Endoenças

Não há em toda a montanha terra tão desgraçada e tão negra como Saudel. Aquilo nem são casas, nem mora lá gente. São tocas com bichos dentro.
Apesar disso, Cristo Nosso Senhor, aos domingos, digna-se visitar a aldeia na pessoa do padre Unhão, que vem rezar missa ao nascer do sol. O padre apeia-se da égua, assoa-se a um lenço tabaqueiro encardido, tosse, dá duas badaladas no sino, e entra numa igreja tão escura e tão gelada que se lembra sempre duma pneumonia dupla. Diz o intróito com muita solenidade, sobe as escadas de granito, lê, treslê, vira-se, volta-se, benze-se, e, por fim, prega. É sempre uma descompustura de cima abaixo. Que ninguém presta. Que os pais são assim, que as mães são assado, que as filhas são porcas, que os filhos são brutos, que é tudo uma miséria.
Saudel, abismado, ouve. Depois, à saída, põe-se a ruminar. Quem irá dizer lá em cima tão mal do povo? Os homens cavam de manhã à noite, as mulheres parem quantas vezes a Virgem Maria quer, os rapazes e as raparigas vão com o gado... Quem irá meter coisas daquelas nos ouvidos de Deus?
Seja quem for, o certo é que no domingo seguinte, Nosso Senhor, sempre pela boca sem dentes do abade, recomeça a ralhar. Que o fim do mundo está perto e que não haja ilusões. Todos para as profundas dos infernos. Os velhos, as velhas e os novos. Ficam só as ovelhas.
Saudel aí desespera. Chora umas lágrimas negras, barrentas,  e geme como quem uiva. Os rebanhos na serra sem pastor! O que não teriam dito de Saudel no céu!
E o pior é que nem o próprio padre Unhão descortina saída para semelhante calamidade, depois da falência do remédio que tentou. Seguro de que a misericórdia divina tudo pode, resolveu salvar o desterrado lugarejo e a sua endemoninhada gente, através de um acto colectivo de expiação. Endoenças. Estava a Semana Santa à porta. Realizasse o povo endoenças, e remisse os pecados na dor e na oração. 
Saudel, lanzudo como os carneiros, nem sequer percebeu. O que eram endoenças?
E foi preciso o pároco explicar. Eram a Paixão e a Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, representadas ao natural. De Cristo, Nosso Senhor, fazia o Coelho, que nem de encomenda para o papel. 

Miguel Torga
Foto: Auto da Paixão, em Vilar de Perdizes,Montalegre


domingo, 2 de abril de 2023

À sombra de uma mulemba...

Chegando ao seu quarto, Jude descobre que se esqueceu de deixar o laptop a carregar. Entretanto desligaram o gerador. O computador tem apenas dois por cento de bateria. Sai do quarto e senta-se na varanda com um caderno e uma caneta Montblanc, oferta de John. À luz hesitante de uma vela, começa a escrever:
"Quando o construtor de castelos abriu os olhos continuava no mesmo lugar. Não saberia dizer há quanto tempo estava ali. Nem sequer saberia dizer se onde estava existia tempo. Os dias e as noites não se sucediam uns aos outros. Tão-pouco os bichos e as árvores se desenvolviam, ou os corpos envelheciam. O construtor de castelos fechava os olhos o tempo suficiente para que o capim crescesse e engolisse tudo, e quando os voltava a abrir encontrava o mundo igual. A farta e fresca sombra da mulemba, um perfume feliz, um rio correndo ao fundo e o seu lento rumor. 
Por muito que caminhasse, e já caminhara muito, não conseguia abandonar a sombra da mulemba. O rio continuava colado ao horizonte, cintilante e mudo, como uma miragem. Só mudavam os visitantes.
Naquele momento, ao abrir os olhos, encontrou um menino parado diante dele.
- Quem és tu? - perguntou.
- Sou o menino que vendia amendoins - respondeu o menino. - E tu quem és?
(...) Fechou os olhos e logo foi substituído por um marinheiro de pernas cruzadas, costas muito direitas. Usava um brinco na orelha esquerda. Antes que conseguisse perguntar-lhe alguma coisa, o marinheiro estendeu a mão e apontou para o rio. 
- Sabe o que falta ali?
O construtor de castelos encarou-o, surpreso.
- Onde? No rio?
- Sim, no rio.
- O que falta?
- Uma ponte!
- Uma ponte?
- Evidentemente, uma ponte. Como iremos atravessar para a outra margem?
O construtor de castelos não conseguiu disfarçar a irritação. Ergueu a voz.
- Nunca passaremos para a outra margem. não existe uma outra margem. 
O marinheiro riu-se. Não havia maldade no riso dele.
- Claro que existe. Existe o rio, existe esta margem, onde nós estamos, e existe a outra. Todos os rios têm duas margens. Isso significa que temos de atravessá-lo e alcançar o lado de lá.
O construtor de castelos mostrou com um gesto fatigado a farta sombra que os cercava.
- A sombra desta mulemba é a nossa prisão. Não há como sair daqui. 
- A sombra só é uma prisão quando nos impede de ver.
- O senhor acredita no inferno?
- Claro. É um território interior. Não se vai para o inferno, não se vai para o paraíso. Vamos é com eles para toda a parte. Há pessoas que expandem o inferno que trazem dentro de si. Noutras cresce-lhes um paraíso na cabeça. Muitas não chegam a desenvolver nenhum dos dois. Essas são as mais infelizes, porque nunca viveram (...)"

José Eduardo Agualusa