segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Quadras a S. Gonçalo


S. Gonçalo de Amarante,

Casamenteiro das velhas,

Por que não casais as novas?

Que mal vos fizeram elas?!

 

São Gonçalo, bom prior...

De Amarante padroeiro,

Tem-no por Santo maior

A Beira-Mar de Aveiro!

 

Confrade, veste o Gabão...

São Gonçalo é teu patrono!

Ai de quem, na Beira Mar...

Não queira ser seu mordomo!

 

São Gonçalo bem que ensina:

Os novos não sejam tansos!

Hão-de aprender e sentir

A velha dança dos mancos!

 

Vinha povo, em mercanteI...

Ou ranchos, em moliceiro,

Com cavacas... no farnel...

Ao São Gonçalo... de Aveiro!

 

Lançar cavacas no adro...

Ia a "bondade" de Aveiro!

Vinha, ao Santo, o pescador

Matar a fome em Janeiro!

 

Cavaca, bom pão de inverno,

Quanta fome faz matar?!

A terra, em lama, um inferno...

E anda mau tempo no mar!

 

Guarda o pão que vem do alto...

Por ser duro e saboroso

Poderá matar as faltas

Num inverno rigoroso!

 

Da varanda da capela

Saltam cavacas à praça.

Quero eu apanhar dela

Duro pão doce de graça!

 

Em redor da capelinha

Corre o povo em desalinho...

Quem agarra mais cavacas?!

Valha-nos São Gonçalinho!

https://www.youtube.com/watch?v=lePoynUgEWk

domingo, 14 de janeiro de 2024

São Gonçalo Cagaréu


Aguarda-se em fila a vez para subir ao cimo da capela e lançar as cavacas

Guardo do Largo de São Gonçalinho, a forma tão carinhosa como as gentes da nossa Beira-Mar tratam São Gonçalo, recordações imorredoiras, daquelas que resistem a todos os acidentes de percurso. Morei lá na força da minha vida, com a minha mãe e os meus irmãos, no n.º 1 da Travessa de São Gonçalinho, um primeiro andar que dava, e felizmente ainda dá, para o largo que eu dominava por duas janelas de guilhotina. Lá estudava, noite adentro, lá pintava a roubar ao descanso, de lá partia para o meu trabalho de dia inteiro, e lá ainda descobria horas para dar explicações. 
Todos os moradores do Largo pareciam uma família, sempre com um espírito de entreajuda verdadeiramente excepcional. Era o espírito cagaréu a falar em pleno. Todos os vizinhos, nos dias da festa, colocavam guarda-chuvas abertos do lado de fora das janelas de primeiro andar, logo pela manhã. As minhas janelas eram as que estavam mais a jeito e os meus guarda-chuvas, ao fim do dia, estavam ajoujados de cavacas. À noite, sempre que o sino tocava, lá ia eu ver à janela o espectáculo das pessoas de todas as idades a correr atrás das cavacas que do alto da capela eram atiradas para o terreiro.
A família do lado do meu pai Manuel era toda da Beira Mar. A da minha mãe, da freguesia da Glória. Sou, pois, filho de uma simbiose difícil já que, quando o meu pai, homem da Ria e do Mar, começou a namorar a minha mãe, menina da freguesia “de lá de cima”, como se dizia então, sentiu alguma animosidade pela parte dos mancebos ceboleiros. Nesses tempos que já lá vão, dizem-me que chegava a haver cenas de pancadaria sempre que namoros semelhantes se esboçavam. Esta ambiência única que então se respirava na nossa Beira Mar marcou-me de forma profunda para todo o sempre. 
As pessoas da nossa terra e os seus hábitos mudaram muito. Confesso que tenho saudades do tempo em que se corria toda a Beira Mar sem ver uma única porta fechada à chave, tudo no trinco e fé em Deus, sem um único agente da autoridade a fiscalizar as ruas, porque tal era desnecessário e até insultuoso para os cagaréus.
O tempo passa mas essa fé em São Gonçalo só tem aumentado. Bem escreveu o saudoso poeta aveirense Amadeu de Sousa:

                                                Dos santos todos de Aveiro,

                                                 Desta terra, deste céu,

                                                 S. Gonçalinho é sem dúvida

                                                 O santo mais cagaréu.

São Gonçalo é bem um santo que os aveirenses foram construindo à sua medida, transformando-o em pessoa de família com quem todos se sentem à vontade e a dialogar.
Há quem diga, pela devassa da História, que o Santo nunca terá existido… E até há quem se pergunte se “São Gonçalo não terá sido uma invenção posta ao serviço de uma qualquer ideia ou propósito”. …É com estas palavras que o padre Amaro Gonçalves se questiona sobre o assunto.. Mas facto é que existe um testamento de uma tal Maria Johannis, datado de 18 de Maio de 1279, legando os seus bens à Igreja de São Gonçalo de Amarante. Supõe-se que o santo terá morrido a 10 de Janeiro de 1259, portanto vinte anos antes desse legado à Igreja de seu nome. Segundo o Flos Sanctorum de 1513, Gundisalvus, ou Gonçalo, “nasceu em Tagilde, estudou rudimentos com um devoto sacerdote e frequentou depois a escola arqui-episcopal de Braga. Ordenado sacerdote foi nomeado pároco de São Paio de Vizela. Depois foi a Roma e Jerusalém; no seu regresso, vendo-se desapossado do seu benefício, prosseguiu um caminho de busca interior já anteriormente encetado; depois foi a experiência da vida eremítica, a pregação popular…, e logo caiu na ambiência mendicante da época, após o que se faria dominicano”.
No dia 10 de Janeiro, entre os anos de 1682 e 1687, o nosso grande jesuíta Padre António Vieira, na cidade brasileira de Bahía, proferiu um brilhante sermão, belíssimo panegírico seiscentista, de recorte barroco, ao nosso São Gonçalo. O brilhante orador, sempre agarrado à sua fluência expositiva, refere alguns dos milagres do Santo. O do pão que faz converter em carvão e voltar à alvura primitiva. O do amansar de uns touros bravos, como se tivessem ensino de muitos anos. O dos cardumes de peixe que saltavam aos pés do santo consoante sua ordem. O da água e do vinho que brotavam de fontes que ele fez surgir nas pedras da ponte amarantina em construção, para apagar a sede dos trabalhadores e lhes dar alegria na sua lide. E de tantos, tantos outros que mantêm incólume., ainda hoje, a sua fama de santo milagreiro.
Desses milagres eu já tinha notícia, por leituras, quando vivi na Travessa de São Gonçalinho.
Mas do seu espírito vingativo, foi lá que, à boca pequena, fui sabendo de algumas histórias de castigos dados pelo Santo a quem se atrevesse a desfeiteá-lo.
Como a queda do Cajica quando estava empoleirado num escadote a pintar a capela e que, chegado ao pé da imagem, lhe pôs uma “purisca” nos lábios, invectivando-o:”Tu não fumas estipor?”.
Ou a cena do Mestre Zé que se viu aflito a sair a Barra de Aveiro com a sua embarcação, só por se ter recusado a dar esmola ao Santo.
Ou ainda o roubo do relógio do Luís Pierres, em pleno arraial, por igual recusa de esmola. E muitas mais. 
Mas nunca consegui, nos anos sessenta, ao contrário do que hoje acontece, ter uma descrição cuidada da célebre “dança dos mancos” que se fazia, que se fez sempre, no maior dos segredos, pela noite dentro, na capela de portas trancadas. Pessoas que eu sabia serem mordomos da festa e, portanto, zeladores da capela, nela pernoitando para, afirmavam, tomar conta das pratas que eram emprestadas para decorar os altares, indagados sobre a “dança”, não tugiam nem mugiam. Uma vez pus o problema ao senhor Prior que me disse que “isso” tinha sido proibido pelo senhor Bispo, para garantir o decoro na capela. Mas que o espírito brejeiro das gentes da Beira Mar nunca deixou morrer a “dança dos mancos”, com proibição ou sem proibição, isso para mim, hoje, não me deixa dúvidas.
Nunca assisti a uma dessas danças dentro da capela. Mas já assisti a réplicas executadas por ex-mordomos e, efectivamente, vê-los a dançar com as suas macaquices e ouvi-los cantar as suas versalhadas marotas é de morrer a rir.
Aliás, esta associação de São Gonçalo a estas danças não é só verificável em Aveiro. Com a mesma natureza brejeira, as danças e bailes de São Gonçalo aparecem sempre por toda a parte onde há festejos em sua honra.
O que é certo é que da fama de folião e casamenteiro o Santo se não livra nos dois lados do Atlântico.
Num lado e noutro, São Gonçalo é especialista em casar solteironas:

                                               São Gonçalo d’Amarante,

                                                Casamenteiro das velhas;

                                                Por que não casas as novas,

                                                Que mal te fizeram elas?

Num lado e noutro, São Gonçalo aparece-nos associado a uma saudável folia…
Eu disse que os tempos mudaram muito a minha Beira Mar, desde que eu a comecei a conhecer. Sem dúvida que sim. Então, a economia do Bairro assentava na pesca do mar e do rio; no amanho das marinhas de sal; na apanha do moliço que continuava a converter as areias estéreis em úberes terras de pão; em alguma construção naval; no tráfego dos mercantéis que transportavam materiais de construção e alimentos para todas as motas da Ria onde as populações se ancoravam em pequenos povoados. E para todas estas actividades o povo cagaréu solicitava a protecção do nosso Santo. São Gonçalinho até foi nome de arrastão do bacalhau, levando a fé que nele depositavam os armadores e os pescadores da nossa praça até aos mares da Terra Nova, da Gronelândia, da Noruega...
Hoje, as pessoas da Beira Mar já não assentam as suas vidas nesse tipo de actividades, por sua natureza tão aleatórias. Mas a verdade é que o Bairro continua a ter características únicas que lhe conferem uma identidade inconfundível. E tudo continuando à volta do Santo Cagaréu. 
É certo que já não posso ir à casa dos meus avós paternos comer da bacia a caldeirada que o meu avô Ti Luís Manco cozinhava em banho-maria na panela de três pés, no borralho da lareira da cozinha de terra batida, coberta de junco.
É certo tudo isso…
 Mas também é verdade que os festejos de São Gonçalinho se continuam a fazer todos os anos. Que as cavacas atiradas da Capela são objecto de reportagens fotográficas e televisivas. Que a Confraria de São Gonçalo, arregimentada pelo Confrade-Mor Carlos Souto, continua a manter acesa a chama de um saudável aveirismo que Eduardo Cerqueira pregou e que Amadeu de Sousa cantou nos seu versos, defendendo as nossas tradições, sempre assentes na nossa tradicional tolerância e no mais escrupuloso respeito pela liberdade.

Cheira-me, depois disto tudo, que o maior milagre que o nosso São Gonçalinho de Aveiro nos fez foi o de ter eliminado as pontes que, tempos idos, separavam os ceboleiros dos cagaréus, permitindo que, com as nossas diferenças, saibamos fazer maior o amor que todos sentimos por esta terra que nos viu nascer ou quisemos fazer nossa.

 Gaspar Albino (texto com supressões), 25 de Novembro de 2006

https://www.youtube.com/watch?v=hbrU28gX2oQ


 

domingo, 7 de janeiro de 2024

Desabafos de dois artistas

Pintura de Menez       





Pintura de Júlio Pomar




      CARTA DE POMAR  (01/11/1079)

Querida Menez

Disse-me a Paula que estavas a pintar muito e fiquei tão contente! 
Penso em ti muitas vezes e se não escrevi já, não foi por preguiça, foi por não saber: há coisas que a gente não sabe como dizer. 
Depois, tenho andado ou nem tanto com a borda debaixo de água (em recordações do meu avozinho marinheiro!). Não faças caso, de vez quando dá-me isso, como a toda a gente. E como a toda a gente, passa. Tenho estado a pintar muito devagar. Desde que vim só terminei um quadro, vê lá! e não gosto dele. Passo que tempo a pintar um bocadinho e depois destruo tudo.
Estou na fase de fazer num quadro muitos quadros uns em cima dos outros. O que não seria desastre se não houvesse assim compromisso de exposição a curto prazo. Se calhar é por isso mesmo, detesto datas e compromissos.
 

      CARTA DE POMAR (sem data)

Querida Menez, como eu percebo o teu sos zinho. Sozinhos estamos por condição que não escolhemos (ou talvez tivéssemos escolhido?) e a vontade de mandar um grande SOS por ares e ventos agarra-nos quanta vez pela garganta e ficamos pendurados dela, ele não há quem entenda. Entende-se a gente, mesmo que seja só pela metade (que mania da proporção!) pela via (reduzida?) destas escritas que os aviões ainda demoram mais; espero bem que quando esta carta chegar já tenhas recuperado (...)


      CARTA DE MENEZ (sem data)

Querido Pomar

Estou tão aflita porque não consigo acabar uma tela que seja - vou até certa altura e depois quando é preciso escolher mesmo não sou capaz, estrago tudo e lá fica outra tela inutilizada. Estive aqui dias seguidos (depois daquele domingo em que estive a pintar todo o dia e que pela primeira vez as coisas iam acontecendo bem e que me deu uma verdadeira vontade de pintar) muitas horas e dias agarrada a uma tela grande que teve vários caminhos, todos eles poderiam ir ter aonde eu queria mas todos eles obfusquei por falta dos souffles vitaux et manquer le souffle pour un peintre c'est le signe même d'un peintre médiocre. Estou aterrada, porque se não consigo pintar preferia deixar de existir.
O estado que é preciso para pintar (para mim) feito de coisas contraditórias: saber conter-se e tactear com cuidado e ao mesmo tempo ser espontâneo e pensar sem pensar, arriscar-se, mas dentro dum ritmo que abrange a contenção no mesmo vaivém que acontece com a tela: parte do quadro vem de lá, parte vem de nós ou nós somos o instrumento através do qual ele se vai fazendo - se eu não estou límpida, avec le coeur pur e como que com toda a minha alma levantada como os crentes em frente de Deus, mas se estou como agora... não vale a pena dizer como é mas é como se tivesse um peso tão grande no coração, na alma, nos sentidos, na imaginação que não consegue apanhar os souffles vitaux (...)
As pessoas não fazem ideia da coisa esquisita que é pintar, como é uma coisa íntima (a mais íntima de todas), como está ligada à nossa vida, mas não da maneira que eles pensam - é muito mais tortuosa essa ligação, mais clara e obscura ao mesmo tempo. Não se pintam as emoções, os sentimentos mas essas emoções e sentimentos servem de detonador ou de "energicador" para a partida como é preciso vento para as nuvens correrem depressa no céu - "exprimir-se a si próprio", "realizar-se" obscenas expressões e quanto erradas, o que mais é verdade é a tentativa de se chegar aos"segredos do universo" de os revelar (...)





terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Ítaca



Quando partires de regresso a Ítaca,

deves orar por uma viagem longa,

plena de aventuras e de experiências.

Ciclopes, Lestregónios, e mais monstros,

um Poseidon irado – não os temas,

jamais encontrarás tais coisas no caminho,

se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime

teu corpo toca e o espírito te habita.

Ciclopes, Lestregónios, e outros monstros,

Poseidon em fúria – nunca encontrarás,

se não é na tua alma que os transportes,

ou ela os não erguer perante ti.

 

Deves orar por uma viagem longa.

Que sejam muitas as manhãs de Verão,

quando, com que prazer, com que deleite,

entrares em portos jamais antes vistos!

Em colónias fenícias deverás deter-te

para comprar mercadorias raras:

coral e madrepérola, âmbar e marfim,

e perfumes subtis de toda a espécie:

compra desses perfumes quanto possas.

E vai ver as cidades do Egipto,

para aprenderes com os que sabem muito.

 

Terás sempre Ítaca no teu espírito,

que lá chegar é o teu destino último.

Mas não te apresses nunca na viagem.

É melhor que ela dure muitos anos,

que sejas velho já ao ancorar na ilha,

rico do que foi teu pelo caminho,

e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.


Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.

Sem Ítaca, não terias partido.

Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.

 

Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.

Sábio como és agora, senhor de tanta experiência,

terás compreendido o sentido de Ítaca.


Konstantínos Kaváfis

Tradução de Jorge de Sena

https://www.youtube.com/watch?v=jM9pCdrLj_k