sábado, 30 de abril de 2011

Os Lusíadas


Eis aqui, quase cume da cabeça
De Europa toda, o Reino Lusitano,
Onde a terra se acaba e o mar começa
E onde Febo repousa no Oceano.
Este quis o céu justo que floreça
Nas armas contra o torpe Mauritano,
Deitando-o de si fora; e lá na ardente
África estar quieto o não consente.

Esta é a ditosa pátria minha amada,
À qual se o Céu me dá, que eu sem perigo
Torne, com esta empresa já acabada,
Acabe-se esta luz aqui comigo.
Esta foi Lusitânia, derivada
De Luso ou Lisa, que de Baco antigo
Filhos foram, parece, ou companheiros,
E nela antam os íncolas primeiros.

Luís de Camões
http://www.youtube.com/watch?v=UUa8UQZioT4&feature=related

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Alexandra Alpha


Cinco da manhã, viu no relógio.
Reconheceu a voz da Maria. A Maria , pois, a Mana. Era  a Mana a segredar-lhe que fosse já ouvir o rádio, ao rádio já, imediatamente, a tropa estava na rua, era a Revolução. A Revolução caraças. Ela não sabia pormenores, estava a falar duma cabina, tinha que desligar e desligou(...)
Estávamos desconfiados, pois a cidade apresentava-se numa aridez de morte. Apareceu-nos sob um céu de cinza branca, secreta e despovoada, e, ao alvorecer, essa cinza, essa poalha, começou a ganhar reflexos metálicos. Vimos as luzes dos candeeiros públicos reduzidas a uma palidez gelada e autocarros sem ninguém(...)
Porém, à medida que o dia se foi aproximando a névoa derramou-se por dentro, contudo retendo a luz. E começaram a despontar perfis humanos a cada esquina, imóveis, esboços apenas, mas logo nos apercebemos de que eram vultos armados, militares de G-3 engatilhada, postados em rigor de conspiração; e descobrimos também, nalgumas clareiras ou abertas que depois se revelariam ser cruzamentos, recantos e terrenos vagos, descobrimos, não era pesadelo, vultos de enormes mostrengos adormecidos. Adormecidos, não: em sonolência aparente. Isso, em sonolência calculada, fingida, pois todos eles segredavam mensagens, alô Charlie, alô Óscar, alô Charlie Oito, e todos vibravam numa maquinação contida.
Agora já os reconhecíamos na sua exacta configuração: eram carros blindados, máquinas de guerra metódicas e impiedosas.
Indiferentes, os monstros sussurrantes distendiam lentas e poderosas antenas de aço à procura de orientação. Estavam alí para fazer frente ao dia, e já se arrastavam, já avançavam, de canhão levantado, a sondar e a abrir caminho. Deslocavam-se num debitar de mensagens misteriosas, alô Charlie, alô Óscar, alô Maior de Lima Cinco, e esses apelos eram a bússola, o traçado que os guiava através da madrugada. Assim estávamos, em assombro e inquietação, quando num rasgão súbito o céu se iluminou por inteiro e foi dia.
A cidade apareceu ocupada e radiosa. Deparámos com colunas militares inundadas de sol; e povo logo a seguir, muito povo que não nos cabia nos olhos, levas de gente saída do branco das trevas, de cinquenta anos de morte e humilhação, correndo sem saber exactamente para onde mas decerto para a
LIBERDADE!
Liberdade, Liberdade, gritava-se em todas as bocas, aquilo crescia, espalhava-se num clamor de alegria cega, imparável, quase doloroso, finalmente a Liberdade!

José Cardoso Pires
http://www.youtube.com/watch?v=hfKU5pA-CRI

sábado, 16 de abril de 2011

O Mar de Madrid


Atravessou a cidade sentado no pequeno autocarro que esperava os escritores no terminal do aeroporto de Barajas e reviu Madrid. Ah, Madrid do seu coração! Ainda que sob as luzes embaciadas e frias do início da noite, reviu-as com alegria, com o prazer de um novo encontro há muito aprazado entre dois bons e velhos amigos e só agora concretizado. Porque há cidades assim, pensou com amor e com gratidão o poeta: acolhem-nos como se tivessem sido desde sempre o nosso berço, a casa grande de um mundo em miniatura que dizem existir dentro de cada um de nós. O céu gelado de Fevereiro isolava as coisas nos seus lugares: as estátuas ao centro das praças, as varandas corridas na única contínua fachada dos prédios esculpidos de ambos os lados de cada rua, o zelo e o orgulho, a limpeza e a monumentalidade de cada edifício, numa harmonia de cores, formas e estilos, ao longo das avenidas cheias de trânsito de uma cidade que começava, segundo se dizia, no fim de todos os caminhos(...)
Os escritores pararam ao fundo da Gran Via e desceram à porta de um hotelzinho recentemente restaurado(...)Veio um ruivo fardado, saudou-os com uma alegria espontânea, quase eufórica, própria de quem tomasse os clientes por familiares daquele santo ofício, e carregou as malas lá para dentro. Apressado, aturdido pelo perigo da borrasca. Com efeito o céu turvara-se ainda mais. Não tardaria a chover. A chuva enviava na sua frente um ventinho brando e lambido, cuja humidade anunciava de antemão a sua chegada iminente a Madrid(...)
Levado pelo júbilo desse seu reencontro com Madrid, subiu ao sexto andar do hotel. Já no quarto, recebeu a mala. Não quis saber de abri-la logo(...)
Um céu carregado por formas bojudas e em movimento, e que mais parecia uma pedreira, amontoava-se então perto da sua janela, à altura da mão do poeta. Bastar-lhe-ia estendê-la para o exterior, e com ela puxaria o firmamento para baixo e para cima, como se fosse uma persiana. A Gran Via trepava por ali fora, toda iluminada pelas suas mil cores, desde a Praza de España até deixar de ver-se ao cimo, na curva do Callao. Movia-se a toda a pressa com as suas multidões que fugiam já das primeiras bátegas.

João de Melo
http://www.youtube.com/watch?v=p9pY_kzNRUU

sábado, 2 de abril de 2011

Singra o navio


Singra o navio. Sob a água clara
Vê-se o fundo do mar, de areia fina...
- Impecável figura peregrina,
A distância sem fim que nos separa!

Seixinhos da mais alva porcelana,
Conchinhas tenuamente cor-de-rosa,
Na fria transparência luminosa
Repousam, fundos, sob a água plana.

E a vista sonda, reconstrui, compara.
Tantos naufrágios, perdições, destroços!
- Ó fúlgida visão, linda mentira!

Róseas unhinhas que a maré partira...
Dentinhos que o vaivém desengastara...
Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos...

Camilo Pessanha
http://www.youtube.com/watch?v=DDZXUPi-6OQ