sábado, 25 de fevereiro de 2012

Diário


Coimbra, 15 de Agosto de 1993 - Romaria da Senhora da Azinheira em S. Martinho. O que eu dava para ser hoje um dos romeiros! Mas tive de me contentar com a recordação da imagem da Santa a oscilar perigosamente no andor de três andares, de meu Pai, seu mordomo jurado, aflito a dar de beber aos homens dos varais, alagados de suor, e a pedir-lhes pelas benditas almas que não abanassem tanto o palanque, da procissão, como um rio caudaloso e moroso, a subir a serra, toda ela a faiscar à torreira da mica das pedreiras descarnadas, nos metais polidos da música, nas lantejoulas dos saiais e pedras falsas dos resplendores, e de mim, vestido de S. José, a marcar o sítio onde caíam as canas dos foguetes que iam estoirando no céu.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

E por vezes


E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos. E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto dos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos

David Mourão-Ferreira
http://www.youtube.com/watch?v=ZqEryZkJtNo

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Quadras aos noivos


Vinde com Deus, senhores noivos,
Façam favor de aquedar
Em primeiro de tudo
Os parabéns vos quero dar.

Apare, senhora noiva,
Apare no seu manto
São cravos e rosas
Vindas do Espírito Santo.

Apare, senhor noivo,
Apare no seu chapéu
São cravos e rosas
Caídas do céu.

Estas flores que eu deito
São brancas e rajadas
É para que estes senhores digam
Que elas são bem botadas.

Eu deito flores aos noivos
Com cinco sentidos
Também trago os meus
pelo mundo repartidos.

Desejosa estava eu
De chegar este dia
Para dar os parabéns aos noivos
E a toda a companhia.

Se à noiva dei um abraço
Ao noivo dou um aperto de mão
Agora também lhe quero dizer
Qual a sua obrigação.

Vim pôr flores aos noivos
E a toda a companhia
Deus queira que de hoje a um ano
Tenham a mesma alegria.


Da tradição oral, lugar de Mataduços, Aveiro
http://www.youtube.com/watch?v=Aq1N5C08rYA

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Montedemo


Era à boca dos vales pomareiros que se alteava o monte. Um bico enorme, arquitectura de rochedos e cavernas, com vertentes perigosas como pântanos, assim tão recobertas daquela pasta negra e borbulhante, feita de folhas, bichos, fungos mortos: o caldo azedo e fértil da decomposição.
Ali pegava toda a espécie vegetal, semente que viesse pelo ar, ou no pêlo da raposa, ou no dorso da cobra, tronquinho disparado por criança, tudo deitava ao chão raiz para se manter e ao céu frutos e flores, sua forma de amar. Urzes e madressilvas, medronheiros, carvalhinha, eucalipto, rosas bravas, laranjeiras e silvas, figueiras do diabo e outras tantas misturas de flora da montanha e flora do deserto entrançadas, em luta contra a pedra, devorando aquele húmus e em húmus se tornando. Num frenesim de seiva e de sentidos, fome tal que em cada primavera se percebia o monte inchar e encolher, como ofegante, como homem desvairado de desejo. E se ouviam gemidos, um ranger e um muito sofreado soluçar, dir-se-ia que às plantas lhes custava receber tanta vida em tão esguias entranhas.
O povo lhe chamara Montedemo e ainda hoje se conta que lá iam, cobertos pela noite e embuçados, os pares de noivos prestes a casar. Contra as leis da igreja, contra os ditames da prudência iam. E encostavam à terra a boca e a barriga, pedindo para os corpos prazer e harmonia e para o sangue filhos sãos e machos.
Ao segundo domingo de Fevereiro, quando andam pelo ar as grandes liberdades, os vapores e as zangas, sinais de carnaval; cada qual dando ouvidos ao mais fundo de si, ao que de lá de dentro lhe pediram para ser,  palhaço ou bailarina ou gordo endinheirado(...),  ora aí vão com cestas as mulheres, com garrafões os homens, com pressa a juventude.
Pela berma da estrada, matando uma saudade tenaz e inconfessa de chapinhar na lama; ou sobre o lombo de pequenas camionetas; recostados alguns no forro de peluche dos automóveis ganhos a penar no estrangeiro. Correm como se o monte os atraísse, como se houvesse entre ele e a carne humana o mesmo obstinado e velho amor com que os ímanes apelam aos metais. Por isso vão, corados do enleio ou da frescura daqueles ares de inverno, onde esvoaçam já veludos fecundados, mimosas e giestas de amarelos pagãos.
E instalam-se, cercando Montedemo. Com fogueiras o cercam, com aromas, com fumos de alecrim, salva, resina. Engrossando o novelo do calor com azuladas folhas de eucalipto, estralejantes agulhas de pinheiro. Todo o dia se come e se bebe, e se dança, que sempre vem a banda sem que ninguém lhe pague, mais um que toca harmónica, e um outro acordeão. E se volta a comer e a beber e a dançar até que cai a hora em que se pode olhar de frente para o sol, a tarde fica espessa e fria como um túmulo, os braseiros hesitam e adormecem. Esteve assim Montedemo rodeado de corpos que festejam nem eles sabem o quê: o respirar.

Hélia Correia
http://www.youtube.com/watch?v=ooi7eomsTuc&feature=related