domingo, 5 de fevereiro de 2012

Montedemo


Era à boca dos vales pomareiros que se alteava o monte. Um bico enorme, arquitectura de rochedos e cavernas, com vertentes perigosas como pântanos, assim tão recobertas daquela pasta negra e borbulhante, feita de folhas, bichos, fungos mortos: o caldo azedo e fértil da decomposição.
Ali pegava toda a espécie vegetal, semente que viesse pelo ar, ou no pêlo da raposa, ou no dorso da cobra, tronquinho disparado por criança, tudo deitava ao chão raiz para se manter e ao céu frutos e flores, sua forma de amar. Urzes e madressilvas, medronheiros, carvalhinha, eucalipto, rosas bravas, laranjeiras e silvas, figueiras do diabo e outras tantas misturas de flora da montanha e flora do deserto entrançadas, em luta contra a pedra, devorando aquele húmus e em húmus se tornando. Num frenesim de seiva e de sentidos, fome tal que em cada primavera se percebia o monte inchar e encolher, como ofegante, como homem desvairado de desejo. E se ouviam gemidos, um ranger e um muito sofreado soluçar, dir-se-ia que às plantas lhes custava receber tanta vida em tão esguias entranhas.
O povo lhe chamara Montedemo e ainda hoje se conta que lá iam, cobertos pela noite e embuçados, os pares de noivos prestes a casar. Contra as leis da igreja, contra os ditames da prudência iam. E encostavam à terra a boca e a barriga, pedindo para os corpos prazer e harmonia e para o sangue filhos sãos e machos.
Ao segundo domingo de Fevereiro, quando andam pelo ar as grandes liberdades, os vapores e as zangas, sinais de carnaval; cada qual dando ouvidos ao mais fundo de si, ao que de lá de dentro lhe pediram para ser,  palhaço ou bailarina ou gordo endinheirado(...),  ora aí vão com cestas as mulheres, com garrafões os homens, com pressa a juventude.
Pela berma da estrada, matando uma saudade tenaz e inconfessa de chapinhar na lama; ou sobre o lombo de pequenas camionetas; recostados alguns no forro de peluche dos automóveis ganhos a penar no estrangeiro. Correm como se o monte os atraísse, como se houvesse entre ele e a carne humana o mesmo obstinado e velho amor com que os ímanes apelam aos metais. Por isso vão, corados do enleio ou da frescura daqueles ares de inverno, onde esvoaçam já veludos fecundados, mimosas e giestas de amarelos pagãos.
E instalam-se, cercando Montedemo. Com fogueiras o cercam, com aromas, com fumos de alecrim, salva, resina. Engrossando o novelo do calor com azuladas folhas de eucalipto, estralejantes agulhas de pinheiro. Todo o dia se come e se bebe, e se dança, que sempre vem a banda sem que ninguém lhe pague, mais um que toca harmónica, e um outro acordeão. E se volta a comer e a beber e a dançar até que cai a hora em que se pode olhar de frente para o sol, a tarde fica espessa e fria como um túmulo, os braseiros hesitam e adormecem. Esteve assim Montedemo rodeado de corpos que festejam nem eles sabem o quê: o respirar.

Hélia Correia
http://www.youtube.com/watch?v=ooi7eomsTuc&feature=related

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