quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Quinta da Paz






Vejo o Passado reviver,

Porque em meu coração

Tudo é ressurreição,

Amanhecer...

E vejo aquelas almas esperando,

Doidas de luz, seu próprio nascimento...

Nas nuvens já descubro as fontes marulhando

E a brisa, para mim, é já tumulto e vento.


Saio do velho lar escuro de abandono.

Cá fora, o céu azul dá nova graça

Às árvores despidas pelo Outono,

Ao passarinho, flor etérea que  esvoaça...


E vejo a antiga fonte: os dois golfinhos

E o nicho donde outrora

Um santo contemplava os passarinhos

Voando, à flor da aurora.

E, nas frestas antigas da parede,

A harmoniosa e límpida frescura

Que nos desperta a sede,

Pousava em alegrias de verdura...


Vejo a nossa ramada, ao longo do quintal:

Claustro de folhas mortas, a cair...

Leva-as, no seu regaço, o zéfiro outonal;

Nadam nos charcos de água...

Vestem de oiro mortal a dura frágua;

Outras, no Azul, vão ser estrelas a sorrir...


Teixeira de Pascoaes

https://www.youtube.com/watch?v=sKkk7vjSdeg&feature=youtu.be



Teixeira de Pascoaes






Quanto eu viver viverá em mim a visão do Tâmega a atravessar o encantado rincão de Amarante em terras de Portugal. Guardarei para sempre - Deus queira que para depois de morto - a memória daqueles dias arrancados ao tempo em companhia de Teixeira de Pascoaes, e no íntimo ambiente da sua casa natal e solarenga, e daquela subida com ele e com o seu valoroso pai Teixeira de Vasconcellos ao cimo do Marão, que estende, como rendida cauda, uma falda doce para as ridentes terras do Minho e se debruça, sobre escarpadas garras, para os campos de Trás-os-Montes.
Debrucei-me àquela santa janela - minha santa janela - onde o poeta medita e diz adeus ao sol, e fala ao vento e saúda a aurora, e lê no infinito; debrucei-me com ele àquela janela, a beber com os olhos a água do Tâmega, que vai
                        Compondo versos de neblina
                        Às árvores, ao monte e à dura frágua...
                        Elegias d´orvalho à luz divina
                        E endechas  de remanso e cantos de água...
E com ele, com o poeta dulcíssimo, com Teixeira de Pascoaes, detive-me na sua Amarante, a ver a entrada da noite, o olho de luz do Tâmega, sob o arco da ponte, e vi-o sob o céu nocturno:
                         Ó Tâmega obscuro, água dormente...
                         Ó rio, à noite, a arder todo estrelado!
                         Água meditativa ao luar nascente,
                         Água coberta de asas ao sol nado!
Sim, também o vi ao nascer o sol, coberto de asa de neblina. E este rio é todo ele poeta, rio também de águas refrescantes e musicais.

Miguel de Unamuno

domingo, 9 de agosto de 2020

Passos na neve

 

Num caminho coberto de neve, atrasa os próprios passos. Vai prestando atenção a todas as coisas vivas que não fazem barulho, tem tempo para isso. Entre uma pegada e outra não pensa em nada, observa apenas a trilha recortada que um corpo, neste caso o seu corpo, vai deixando num mundo ímpar. Sabe que há gente que já morreu e com certeza andou por ali. Sabe que há lobos por perto e que a ventania faz das suas naquele branco sempre que pode. Nada o espanta. Tudo o excede. Caminha até parar de caminhar. E sem pensar nas coisas, é cúmplice das coisas.


Matilde Campilho

https://www.youtube.com/watch?v=Iq0x_gM8tZg&list=RDIq0x_gM8tZg&start_radio=1&t=53