domingo, 24 de setembro de 2023

Quando voltei...



Quando voltei encontrei os meus passos
Ainda frescos sobre a húmida areia.
A fugitiva hora, reevoquei-a,
- Tão rediviva! nos meus olhos baços...

Olhos turvos de lágrimas contidas.
- Mesquinhos passos, porque doidejastes
Assim transviados, e depois tornastes
ao ponto das primeiras despedidas?

Onde fostes sem tino, ao vento vário,
Em redor, como as aves num aviário,
Até que a asita fofa lhes faleça...

Toda essa extensa pista - para quê?
Se há-de vir apagar-vos a maré,
Como as do novo rasto que começa...

Camilo Pessanha

Foz do Arelho ou Primeiro Poema do Pescador

Este é apenas um pequeno lugar do mundo
um pequeno lugar onde à noite cintilam luzes
são os barcos que deitam as redes junto à costa
ou talvez os pescadores de robalos com suas lanternas
suas pontas de cigarro e suas  amostras fluorescentes
talvez o Farol de Peniche com seu código de sinais 
ou a estrela cadente que deixa um rastro
e nada mais.

Um pequeno lugar onde Camilo Pessanha voltava sempre
talvez pelo sol e as espadas frias
talvez pela orquestra e os vendavais
ou apenas os restos sobre a praia
"pedrinhas conchas pedacinhos d'osso"
e nada mais.

Um pequeno lugar onde se pode ouvir música
o vento o mar as conjunções astrais
um pequeno lugar do mundo onde à noite se sabe
que tudo é como as luzes que cintilam
um breve instante
e nada mais.
                                                        Manuel Alegre
                                                        Foz do Arelho, 8.8.96


sábado, 23 de setembro de 2023

Recordações da Foz do Arelho



Nas manhãs seguintes nem te vi na praia. Mas, dias depois (três, segundo tu dizes), como fosse noite de haver cinema nas Caldas, fomos e viemos juntos - da Foz até às Caldas, das Caldas até à Foz - na mesma trôpega camioneta da carreira. Juntos? Juntos é uma força de expressão. Eu, como habitualmente, com a malta do meu grupo, em grande vozearia nas traseiras do calhambeque; tu, como habitualmente, com duas das tuas tias a estibordo, a terceira a bombordo - todas quatro muito compostas, para não dizer muito hirtas, nos dois primeiros bancos da viatura. 
No caminho da ida, ainda com a luz do dia, os teus cabelos escuros, vistos de longe e de trás, faiscavam, por vezes, com os mesmos lampejos acobreados daquelas uvas pretas que pendiam, já maduras, de uma ou outra vinha ao longo da estrada.
Era com a Eva Gadner, garantes tu, o filme que nessa noite se exibia; e que nunca te sentiste, como nessa noite, tão deprimida diante de um filme. Tinhas ido para o balcão, eu para as últimas filas da plateia; não nos vimos sequer durante os intervalos. À saída passaste muito indiferente por mim  - "Olá, boa noite"- , mas já eu tinha decidido, ao contrário do que estava combinado, não acompanhar os do meu grupo ao casino. O mais provável, vendo bem, era não arranjarmos boleia para o regresso; e de repente não me entusiasmava mesmo nada a perspectiva de ter de fazer, com os meus companheiros, e a exemplo do que amiúde acontecia, dez quilómetros a pé aí pelas três da manhã. 
Minutos depois, ao desembocar na praça quadrangular onde pela manhã se vendia fruta, lá estavam vocês as quatro, formando um único bloco entre meia dúzia de vultos dispersos, a aguardarem a chegada da camioneta junto do edifício dos Bombeiros.
A camioneta chegava sempre, como desde sempre o sabíamos, por volta da meia-noite e quarenta; mas apenas à uma e dez - era a última carreira - é que pontualmente arrancava. Entretanto, ao longo de meia hora, ambas as portas escancaradas, aquela carcaça acolhia, na sua semiobscuridade, quem já a esperava e quem depois aos poucos ia chegando. Nem uma lâmpada se acendia no interior. Bocejos; ranger de molas; conversas a meia voz. Em noites mais húmidas, o bafo das respirações e embaciar os vidros das janelas. 
Desta vez a noite não estava húmida. E havia já quase meia hora que vocês as quatro tinham entrado. na camioneta. Eu, ao contrário do que era costume, permanecia cá fora, no passeio, como se estivesse afinal à espera de alguém...

David Mourão-Ferreira (texto com supressões)


sábado, 9 de setembro de 2023

O vento, aqui...


O vento, aqui, traz o cheiro da praia até à casa.
As estrelas pousam nos telhados devagar; às vezes caem
e assustam os cães que ladram e nos acordam de noite
em vez dos sonhos. Os dias têm mais horas, não sei porquê.

De manhã o pão vem morno e guarda o sabor da lenha que o cozeu.
Comemos em silêncio sobre uma toalha de quadrados azuis.
A louça é limpa, a água mata todas as sedes, o peixe respira
até chegar ao lume. E os dias têm mais horas, não sei porquê.

Trouxeram-me de longe para ver se te esquecia,
se me encantava com as crianças dos vizinhos que se enrolam
às nossas pernas como gatos mansos e não param de nos fazer
perguntas; se era capaz de consolar-me com o cheiro do barro
e do leite fresco que paira nas cozinhas; se aprendia
com o mar, que ao fim da tarde vem roubar algas
aos penhascos, para que estes se esqueçam dela para sempre.
Em vão, porém. Há tantas horas dentro destes dias...

Maria do Rosário Pedreira
Pintura de Frida Kahlo