sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Uma viagem à Índia


Não falaremos então de um povo
que é demasiado e muito.
Falaremos nesta epopeia apenas de um homem: Bloom.
Bloom abriu os seus dois olhos contraditórios
(um que queria ver o novo, o outro dormir)
dirigindo o olhar para o calmo compartimento
onde acabara de entrar.
Bloom, o nosso herói. Eis o que faz primeiro: observa.

Eis agora Bloom na primeira etapa da sua viagem à Índia,
em Londres, só e sem dinheiro
e sem ninguém conhecer. Procura amigos
ou outra coisa?
E seria Bloom a ter um olhar estranho
ou estranhos eram os homens que dele
se aproximavam?
Eis que não existe resolução.
Quem começa o momento: quem olha ou aquilo
que é olhado? Pode o início do mundo localizar-se
em quem é empurrado?

Gonçalo M. Tavares
http://www.youtube.com/watch?v=T0JuEY_MHGI&feature=related

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Senhor


Senhor se da tua pura justiça
Nascem os monstros que em minha roda eu vejo
É porque alguém te venceu ou desviou
Em não sei que penumbra os teus caminhos

Foram talvez os anjos revoltados.
Muito tempo antes de eu ter vindo
Já se tinha a tua obra dividido

E em vão eu busco a tua face antiga
És sempre um deus que nunca tem um rosto

Por muito que eu te chame e te persiga.


Sophia de Mello Breyner Andresen
http://www.youtube.com/watch?v=h8TpRnMU09M

sábado, 18 de dezembro de 2010

Viajar? Para viajar basta existir


Viajar? Para viajar basta existir. Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo, ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como, afinal, as paisagens são.
Se imagino, vejo. Que mais faço eu se viajo. Só a fraqueza extrema da imaginação justifica que se tenha de deslocar para sentir.
"Qualquer estrada, esta mesma estrada de Entepfluhl, te levará até ao fim do mundo." Mas o fim do mundo, desde que o mundo se consumou dando-lhe a volta, é o mesmo Entepfuhl de onde se partiu. Na realidade, o fim do mundo, como o princípio, é o nosso conceito do mundo. É em nós que as paisagens têm paisagem. Por isso, se as imagino, as crio; se as crio, são; se são, vejo-as como às outras. Para quê viajar? Em Madrid, em Berlim, na Pérsia, na China, nos Pólos ambos, onde estaria eu senão em mim mesmo, e no tipo e género das minhas sensações?
A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos.

Fernando Pessoa
http://www.youtube.com/watch?v=uTnm0vlsbp8

sábado, 11 de dezembro de 2010

O Deus Da Incerta Ignorância


De que serve saber um pouco mais ou um pouco menos 
se a nascente do ser não é o pensamento?
Amadurecer é despojar-se de ofuscantes lâmpadas e plumas
e encontrar a nudez e o pulmão da sombra
numa respiração leve e longínqua
que nos faz vislumbrar o paraíso do silêncio
O sábio é aquele que sabe que tudo está a mais
quando não se encontrou o centro tranquilo
em que a paixão é a sossegada estrela
que reúne nos seus raios os contrários impulsos
Quando se vê o delicado desenho de água ténue
que envolve a sombra das coisas cintilante e trémula
a mente se recolhe na sua côncava câmara
e em vez de ramificar-se em ramos vãos
condensa-se num ovo de silêncio e apaixonadamente vê

António Ramos Rosa
http://www.youtube.com/watch?v=8_CUq3_MKZU&feature=related

sábado, 4 de dezembro de 2010

Está tudo ligado - O poder da música


O primeiro violino e o primeiro contrabaixo da Filarmónica de Berlim (um israelista e um egípcio) e o timbalista principal da Filarmónica de Israel são membros da Orquestra do Divã e, de vez em quando, sentam-se na mesma secção com estudantes que só tocam os seus instrumentos há dois ou três anos. É uma excelente oportunidade para os estudantes e um acto de generosidade e dedicação da parte dos profissionais à causa da orquestra. Afinal de contas, o projecto não existe simplesmente para que a orquestra faça concertos; os profissionais que continuam a voltar à orquestra não o fazem apenas por razões musicais mas por causa da forma humanista de abordar o conflito, forma que subscrevem.
É claro que a Orquestra não pode trazer a paz. Pode, todavia, criar as condições de compreensão sem as quais é impossível falar sequer de paz.Tem a possibilidade de despertar a curiosidade de cada indivíduo para escutar o que o outro tem a dizer e de inspirar a coragem necessária para ouvir aquilo que preferia não ouvir. Muita gente se tem referido ao projecto como um maravilhoso exemplo de tolerância, termo de que não gosto, porque tolerar alguma coisa ou alguém tem implícito um aspecto negativo; é-se tolerante apesar de certos defeitos. O significado da palavra tolerância é deturpado quando entendido apenas como um aspecto de generosidade altruísta. Tem implícito um elemento de presunção - eu melhor que tu. Goethe exprimiu isto de forma sucinta quando disse: " Simplesmente tolerar é insultar; o verdadeiro liberalismo significa aceitação". A verdadeira aceitação, acrescentaria eu, significa reconhecer a diferença e a dignidade do outro.

Daniel Barenboim
http://www.youtube.com/watch?v=WyOJ-A5iv5I