domingo, 30 de junho de 2019

Cheio de Luz


O velho teve de admitir que estava cego. Podia caminhar, orientado pelos murmúrios, pelas más respirações. Porém, não conseguia alimentar‑se nem com restos de pão nem com raízes. Embatia na gente acocorada. «Levai‑me até um ninho de lacraus», pediu então. Queria morrer depressa. Mas procurar um ninho de lacraus provocava uma espécie de avesso no caminho, um desvio, um desgaste inoportuno. Ninguém lhe deu ouvidos. Repararam que ele tinha os olhos brancos e temiam que os amaldiçoasse. Então andaram um pouco mais depressa, de maneira a que as palavras não os atingissem. O velho ainda atirou pedras imaginárias. «Levai‑me ao menos para a sombra», disse. Mas não havia sombras. E Tariq começou a recuar sobre os seus passos, acercando‑se do velho, mas sem perder de vista os caminhantes. «Eu torno‑te meu pai. Trato de ti.» Falava baixo e cheio de secura. Levou o velho pela mão, não por bondade, mas para ter alguém ligado a si. E chamou‑lhe Nuru, Cheio de Luz. E Nuru transformou‑se num bom guia.

Hélia Correia
Pintura de Graça Morais
https://www.youtube.com/watch?v=RWRBefVX5ec

domingo, 23 de junho de 2019

Lisboa


Regresso


O rio dissolve a imagem crepuscular da cidade.
Uma luz lívida - como poalha de neve - veste o casario. A noite, com vagar, esconde Lisboa. A velocidade das tarefas quotidianas parou.
A cidade parece iluminar-se a partir do seu interior mais secreto, onde lateja um coração muito antigo.
Lisboa transforma-se, assim, no lugar privilegiado para a invenção da escrita. Nesse lugar me movimento e me encontro, e nele me perco em travessias, seduções, esquecimentos.
Não há tempo. O tempo do mundo parou às portas da noite de Lisboa.

Vivo em Lisboa como se vivesse no fim do mundo, ou num lugar que reunisse vestígios de toda a Europa. A cada esquina encontro reminiscências doutras cidades, doutros encontros, doutras viagens.
Aqui, ainda é possível inventar uma história e vivê-la. Ou ficar assim, parado, a olhar o rio e fingir que o Tempo e a Europa não existem - e Lisboa, se calhar, também não.

Al Berto
Aguarela A. Magalhães
https://www.youtube.com/watch?v=Z_S-5CPtHT0

quarta-feira, 12 de junho de 2019

A Mãe


Há uma cena num filme de Manoel Oliveira, o Vale de Abraão, em que um desconhecido, num restaurante, lhe oferece um prato de figos. Foi assim que meu pai abordou a jovem Laura, que estava vestida de preto, não por luto mas por promessa. Casaram e não tiveram muitos meninos. Fui só eu e o meu irmão José Artur. Meu pai julgou que a jovem Laura do hotel de Entre-os-Rios era viúva. Como Byron, não gostava de meninas em flor, provavelmente porque são cheias de surpresas, nem sempre boas surpresas. 
Minha mãe teve lições de piano com Óscar da Silva, que era um grande intérprete e um mau professor. Para se resgatar dum emprego sem imaginação, constava que seduzia as alunas, o que lhe acabou com a confiança das famílias. Assim, minha mãe ficou sem mestre e suspendeu as escalas e os solfejos. Bordava muito bem e lia pouco. Sempre vi nas mãos dela (que as tinha bonitas) A Imitação de Cristo. Não era particularmente religiosa, mas gostava dos ritos de Maio, das novenas em casa com flores e velas acesas. Amava o meu irmão com uma expectativa que as mães têm ainda hoje pelos filhos varões.
Amava-me mas sem demonstrações, a educação passava pela disciplina das emoções. Eu pensava que minha mãe não era uma pessoa justa: faltava-lhe a independência que faz a alma imortal. Achou sempre, e meu pai também, que o meu talento era devido a meu irmão e que eu o usurpara, como Jacob a Isaú.

Agustina Bessa-Luís 
(pintura de Paula Rego)

domingo, 2 de junho de 2019

Chico Buarque


Ultimamente estão acontecendo algumas coisas boas na TV. Uma delas é a atenção que se está dando a astros e estrelas, de grande fama, ou de pelo menos alguns anos de Cinderela, e que estão no seu canto completamente esquecidos. E também se verifica uma volta completa, decisiva à brasilidade, ao que é o nosso caso. E isso me faz citar os festivais e um moço, que esse não está perdido no passado nosso, enganoso e morto e enterrado. É o moço Chico Buarque, para sempre moço, e a sua inolvidável Banda, que tanta gente cantou e trauteou, nas ruas, distraidamente, enquanto pensava e enquanto passava.

Poesia do cotidiano a sua, nada de muitos vôos, nem de amor desesperado. Apenas a banda, a menina na janela, a excitada curiosidade de cidade pequena, em principal, da molecada. Entre esses moleques o nosso Chico. A letra é de poeta de hoje, cheia de profundo desencanto, muito moderno, de quem nada crê, a não ser que tudo passa. Afirma que um gosto, depois que acaba, deixa o desgosto maior, mas afinal não altera em nada a miserável da vida (é o Chico Buarque quem acha isto, eu não). Assim à moda do velho pessimista Machado que dizia: um relâmpago deixa a escuridão mais escura.

No entanto o moço Chico tem um pessimismo sorridente, vê-se que teve na infância a vivência dessas bandinhas deliciosas, que sacodem de quando em quando, nas madrugadas das festas do padroeiro, as cidadezinhas, normalmente muito paradas e muito quietas. E porque é poeta, e porque adolesceu nessas mágoas de amor, e porque tem dessas experiências interiores e interioranas, consegue fazer vibrar o provinciano que dorme em cada um de nós.

Ora direis! Ouvir a banda!...

E eu vos direi: ouvir, ver e cantar!

Pois foi essa a premiada, num festival da época, rico de tantas músicas trabalhadas, inspiradas, feitas por gente do metiê.

Parece que foi daí para diante que ficou provada a importância de ser autêntico. Os ritmos que nos tocam são ainda os que vêm em seguimento a uma tradição que lembra Noel Rosa, e que parece extinta, mas felizmente continua.

De todas as receitas que nos dão esperança de salvação, é a arte a mais segura. A filosofia que foi o cavalo de batalha dos antigos, muito nos ajudou a alguns, a sermos as criaturas que hoje somos. Mas a arte é mais democrática. Ela nos alcança, sem distinção de inteligência, de gosto, de conhecimentos, de modo de vida, de posição social, de idade, de vivência, de termos ou não freqüentado escolas, de sermos tristes ou alegres, de estarmos vivos ou quase mortos. Há de tudo para todos. Esse o valor novo da televisão. A fartura, a benesse, a escolha fácil, ao alcance de qualquer um, o acesso total, que a filosofia somente dá às gotas, e aos conformes. A ação televisiva nos faculta tudo isto, difundindo duas das artes, a um tempo, a Poesia e a Música, por intermédio dos compositores e dos letristas.

Destes, Chico Buarque não poderá ser relembrado, porque jamais foi esquecido. Ele continua, como os bardos e os vates, sendo o nosso aedo, cantando brasilidade.