domingo, 29 de setembro de 2013

António Ramos Rosa


Conversa pós-prandial com o Ramos Rosa num café. Que personagem este grande poeta. Claude Roy disse dele, salvo erro, que lembrava um Quixote surrado. Enganou-se de mundo, anda aqui por se ter distraído. Porque ele nasceu para viver noutro lado onde não haja regras de trânsito, de disciplina, de subsistência. De modo que faz um esforço enorme para se acomodar. Um grande achado para ele foram as práticas do ioga ou coisa que o valha. O mundo em que circula desarranja-lhe os mecanismos interiores. E toda a sua preocupação é consertá-los. Mas ele a compor e a realidade a estragar. Quando julga que venceu, fica radiante. Dias depois volta à oficina com o psíquico esmurrado. Não chegará nunca a tirar carta de condução no mundo. Hoje trazia outra descoberta: mastigar interminavelmente um pedaço de alimento até sentir vómitos. Isso lhe afinaria o sabor para recuperar um paladar originário. E ria. Estava feliz. Nós alimentamo-nos tão estupidamente, com um paladar tão encortiçado. Ele quer restaurar cá o sabor que deve haver talvez do lado de lá. Encantado com a descoberta. E eu com o encantamento dele. Adorável poeta. Extraordinário poeta.

Vergílio Ferreira
http://www.youtube.com/watch?v=xk3KMv7F-N0

sábado, 21 de setembro de 2013

A concha


A minha casa é concha. Como os bichos
Segreguei-a de mim com paciência:
Fachada de marés, a sonho e lixos,
O horto e os muros só areia e ausência.

Minha casa sou e os meus caprichos,
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda, vence-a
O sal que os santos esboroou nos nichos.

E telhados de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!
Lareira aberta ao vento, as salas frias.

A minha casa....Mas é outra história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.

Vitorino Nemésio
http://www.youtube.com/watch?v=VPZF2Mrc4OM

domingo, 15 de setembro de 2013

Nasjonalgalleriet


Acerca da solidão não se enganaram
os jovens Mestres (quão bem entenderam a
condição humana) como está presente
enquanto outros festejam ou se abraçam ou simplesmente
conversam
entre si. Como (ante
a solidão) deve sempre haver alguém
que não queria especialmente que acontecesse.
Nunca esqueceram que a mais terrível solidão
tem uma geografia (o quarto abandonado
onde conversa sozinha ou isolada de tantos
no imo da multidão).
No Grito de Munch por exemplo:
a ponte é oblíqua como o medo. Os dois
amigos até podem não ter escutado o grito
mas tal não é determinante -
o céu em tumulto assistiu à angústia
da boca aberta (as
mãos cerrando os ouvidos ao grito essencial) e
sob o fiorde azul deu-se algo de extraordinário:
o grito chegou a acender-se mas
não se desfez em som.

João Luís Barreto Guimarães
http://www.youtube.com/watch?v=QnoGHHm_gTA

sábado, 7 de setembro de 2013

Castelo da Lousã


Este castelo é um castelinho, e faria muito mal quem o tivesse feito maior. Ocupa, e apenas em parte, o espinhaço de um monte que é, insolitamente, o mais baixo da vizinhança. Quem diz castelo, pensa altura, domínio de quem está de cima, mas aqui tem de pensar outras coisas. Pensará, sem dúvida, que o castelo de Lousã é, paisagisticamente, das mais belas coisas que em Portugal se encontram. A sua própria situação, no centro duma roda de montes que o excedem em porte, torna, por um paradoxo aparente, mais impressiva a sensação da altura. É justamente a proximidade das encostas fronteiras que dá ao viajante uma impressão quase angustiante de equilíbrio precário quando entra no castelo e vai à torre. Já sentira o mesmo quando se aventurou até ao fim do espinhaço e ouviu do fundíssimo vale o estrondo das águas invisíveis do rio que ali passa, apertado entre as paredes da rocha.  O dia está ventoso, toda a ramaria em redor se agita, e o viajante não se sente muito seguro em cima da torre cilíndrica a que conseguiu chegar. Está nisto, nesta romântica situação de desafiador de ventos e tempestades, quando subitamente lhe acode a ideia maravilhosa: neste lugar, neste castelo familiar, no centro deste círculo de montes que ameaçam avançar um dia, é que Hamlet viveu e se atormentou, foi debruçado para o rio que fez a sua irrespondível pergunta, e, se nada disto aqui aconteceu, ao menos o viajante acredita que nenhum lugar existe no mundo com mais adequado cenário para uma representação skakespeariana, das que metem castigos, vaticínios funestos e grandeza. É uma cenografia natural que não precisa de  retoques, e em tenebrismo dramático nada poderia ser mais impressionante. Construído de xisto, o castelo da Lousã resiste mal ao martelar alternante do sol, da chuva, das geadas, do vento, ou então é o viajante que isso teme por ver como se estão esboroando, nos sítios mais expostos, os muros restaurados. Tem porém o xisto uma coisa boa: cai uma lasca, facilmente, se põe outra.