quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

De volta a casa



Este era o meu jardim de infância, já muito misterioso e que só eu conhecia. Para os outros seria um bocado de terra com meia dúzia de árvores, uns canteiros esboroando-se aos poucos, um tanque de água suja e um muro de sobre o qual se avistava uma lonjura de planície sem fim e uma montanha distante que no inverno se cobria de neve. Mas ninguém, decerto, poderia adivinhar a minha vida naquele jardim, os sítios escusos onde me escondia, os troncos velhos onde marcava sinais e o chão fofo de folhagem onde me deitava planeando viagens ao fim do mundo; aonde vinha recolher-me em momentos de imperioso isolamento jurando ser melhor e prometendo a mim mesmo transformar o mundo e fazê-lo regressar ao ideal que eu sonhava.
Agora, vê-lo de novo à luz de uma manhã clara, com uma brisa suave desviando as folhagens dos raios de sol, depois de não sei quanto tempo de ausência, era um regressar de recordações e de ternuras que me faziam ficar ali, encostado à porta, aspirando o cheiro da seiva que das plantas descia à terra e se evolava em fluido no ar, e me faziam meditar numa época imensamente querida que eu via fugir e da qual nunca poderia separar-me. Tudo no jardim chamava por mim: as rosas de todo o ano, as sebes de pitosporos, a relva espigada dos canteiros...até aquele passarito que me acordava. E eu, a tudo queria e amava.

Ruy Cinatti

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Natal...Natais...



Tu, grande Ser,

Voltas pequeno ao mundo.

Não deixas nunca de nascer!

Com braços, pernas, mãos, olhos, semblante,

Voz de menino.

Humano o corpo e o coração divino.


Natal… Natais…

Tantos vieram e se foram!

Quantos ainda verei mais?


Em cada estrela sempre pomos a esperança

De que ela seja a mensageira,

E a sua chama azul encha de luz a terra inteira.

Em cada vela acesa, em cada casa, pressentimos

Como um anúncio de alvorada;

E em cada árvore da estrada

Um ramo de oliveira;

E em cada gruta o abrigo da criança omnipotente;

E no fragor do vento falas de anjos, e no vácuo

De silêncio da noite

Estriada de súbitos clarões,

A presença de Alguém cuja forma é precária

E a sua essência, eterna.


Natal… Natais…

Tantos vieram e se foram!

Quantos ainda verei mais?


Cabral do Nascimento, em ‘Cancioneiro’

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Passado






Ah velha sebenta
em que escrevia as minhas composições de Francês
“Mes Vacances”: gostei muito das férias
je suis allée à la plage (com dois ee,
o verbo ètre pede concordância), j’ai beaucoup
nagé e depois terminava com o sol a pôr-se
no mar e ia ver gaivotas ao dicionário

As correcções a vermelho e o Passé Simple,
escrever cem vezes nous fûmes vous fûtes ils fúrent
as tardes de sol
e Madame Denise que dizia Toi ma petite
com ar de sargento e a cara zangada a fazer-se
vermelha (tenho glóbulos a mais, faites attention)
e o olhar que desmentia tudo
em ternura remplit

E as regras decoradas e as terminações
verbais a i s, a i s, a i t,
a hora de estudo extra e o sol de fim de tarde
a filtrar-se pelas carteiras,
a freira a vigiar distraída em salmos
eu a sonhar de livro aberto
once upon a time there was a little boy
e as equações de terceiro grau a uma
incógnita

Ah tardes claras em que era bom
ser boa, não era o santinho nem o rebuçado
era a palavra doce a afagar-me por dentro,
as batas todas brancas salpicadas de gouache
colorido e o cinto azul que eu trazia sempre largo
assim a cair de lado à espadachim

As escadas de madeira rangentes
ao compasso dos passos, sentidas ainda
à distância de vinte anos,
todas nós em submissa fila a responder à chamada,
“Presente” parecia-me então lógico e certo
como assistir à oração na capela e ler as Epístolas
(De São Paulo aos Coríntios:
Naquele tempo...),
tem uma voz bonita e lê tão bem, e depois
mandavam-me apertar o cinto para ficar
mais composta em cima do banquinho,
à direita do padre

E o fascínio das confissões,
as vozes sussurradas na fina teia de madeira
castanha a esconder uma falta,
o cheiro do chão encerado e da cera das velas
e quando deixei de acreditar em pecados
e comecei a achar que as palavras não prestam
e que era inútil
inútil a teia de madeira

Ah noites de insónia à distância de vinte anos,
once upon a time there was a little boy
and he went up on a journey
there was a little girl, une petite fille
e o passé simple, como parecia simples o passado

Au clair de la lune
mon ami Pierrot
Prête-moi ta plume
pour écrire un mot

Escrever uma palavra
uma só
ao luar
a pedir concordância como uma carícia
Elles sont parties,
les mouettes


Ana Luísa Amaral

sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Envelhecer


10 Junho, 1967

Faz hoje trinta anos que fui preso, a primeira vez, pela polícia do fascismo - ao tempo, a P.V.D.E. É dia comemorativo! Assinalo-o abrindo nele este diário, que será de reflexões ou apontamentos e não de factos, pois foi o perigo destes que me fez evitar o gosto do jornal íntimo. Se nunca houve carta ou rabisco que os cães de fila não esquadrinhassem à lupa! Entre prisões (5) e buscas (3), quantas recordações não perdi, voluntária ou involuntariamente! Até o diarismo, companheiro e confidente da frustração, foi boicotado...
Envelhecer é desvalorizar o futuro, dum ponto de vista pessoal. E reganhar, de certo modo, o passado. Se estas linhas, escritas entre duas consultas, podem ajudar-me a preencher o vazio do imediato, por que evitá-las, hoje? Bem se me dá que as levem ou que as destruam! Não deixarei nelas o quer que seja que prejudique terceiros.


22 Agosto, 1967

A minha família passou maus bocados com as dificuldades financeiras motivadas pelas minhas sucessivas prisões, todas de seis meses, e pouco espaçadas umas das outras. Grande homenagem devo por isso à minha Mulher. Os meus filhos reflectem também essa marca: a sua reserva perante o empenhamento ideológico é quase um reflexo condicionado contra o que os fez sofrer.É duro, ninguém sabe quanto, mas é assim, que lhe hei-de eu fazer? Sempre na mira de os ajudar, fiz sair artigos, sob a forma de cartas, que a página literária do Jornal de Notícias publicou sob pseudónimo. 

29 Agosto, 1967

Os meus Filhos  não têm preconceitos religiosos, realmente. Mas não têm também um ideal que os norteie. como pude eu falhar nisso? Ou como pôde o ambiente sobrepor-se-me nisso? Não vale a pena arrepanhar-me a procurar-lhe uma causa que talvez esteja, afinal neles - e seja a sua verdade. Vejo-os, pelo menos, moralmente íntegros, em sentido não convencional. E isso é uma alavanca com que poderão abrir o seu caminho.

19 Agosto, 1968

Domingo na Ria, na lancha do turismo, com os Abrantinos, os "Alvaneses e outros. Piquenique à la bourgeoise, em fundo azul-oiro. A paisagem é mulher, e eu só me entendo com ela - a sós. Partilhada, é o social que passo a ver reflectido nela: o moliço abandonado, à tona de água, no caso de ontem. Tanta incúria dói-me, como se a "propriedade" fosse minha.
Úberes pejados de sal, barcos de pêlo arruçado, bandos nostálgicos de gaivotas (dão-me saudades donde não fui!), a serrania violeta... E o coalho dos lodos, a estragar o encanto destas águas turvas, senão a dizer-nos que são autênticas - e não um lago camarário regrado e mesquinho...

22 Janeiro, 1969

 O Amor que eu tinha à literatura transferi-o para outros amores que lhe eram prévios, uma vez que era impossível, sem contradição com estes, uma adesão total a ela, por esse tempo. Cumpri-me integralmente por esse caminho. E por isso posso hoje voltar a ela, envelhecido, sim, mas não exausto. Amor velho não cansa!


Mário Sacramento (07/07/1020 - 27/03/1969)

https://arquivos.rtp.pt/conteudos/biografia-vida-e-obra-de-mario-sacramento/

José Estêvão tribuno de Aveiro

Foto anterior a 1889, data da inauguração da estátua a José Estêvão (Col. Morais Sarmento)



Praça de Município cerca de 1967, já com o edifício projectado pelo arquit. Fernando Távora

Ave, Aveiro

Escrevo-te e não sei quem és — como face para sempre talhada! A mais antiga memória que guardo de ti é da ria a transbordar por praças e vielas, nas marés vivas. Sob os lampiões dos Arcos, Rua dos Mercadores abaixo, vogavam bateiras conduzindo os teus íncolas (ia a dizer os teus doges) às soleiras das portas. E eu batia palmas de menino com brinquedo, na janela da avó. 

Salto o calendário e fustiga-me o rosto a saibrada que o vento erguia, corro pela Mina, mergulho nas Pirâmides, pergunto pelo dicionário ao sapateiro da Fonte Nova, faço as primeiras malcriadices no Parque, invejo a farda soldadesca do Luisinho, tenho uma icterícia de ovos moles...

Vamos crescendo, os dois, já sem laranjas roubadas na Rua do Gravito e sem aventuras nocturnas pelos arrabaldes — descubro a beleza com que te despedes (te despes) do Sol, perco-me em versos pelos carreiros das marinhas, levo a pasta da namorada à Estação, invento um jornalzinho de estudantes... Aprendo a respeitar professores como João Joaquim Pires, José Pereira Tavares, Francisco de Assis Maia, George Agostinho da Silva, António Salgado Júnior, guardo um profundo desprezo por outros, lanço uma cervantina burricada pelo teu centro, compenso o José Estêvão ensinando-lhe (junto às grades da estátua) o canto em coro da lnternacional — conspiro adolescentemente...

Que te aconteceu, entretanto? Não dou fé disso. Estavas aí, talvez. Para onde quer que me volte, descubro, porém, que um braço me acompanha sempre, apontando — como sombra impressa no chão! — o caminho dos meus passos: o do discurso coalhado em bronze do teu tribuno... Lobrigo-o na Barra, mandando calar a ronca; na Costa Nova, mostrando as xávegas desprotegidas; no paredão, invectivando o porto inconcluso; no Senhor das Barrocas, deplorando o que resta do templo; nas cancelas, dizendo porquê? ao tráfego... Nem sempre entendo o que quer, mas que quer, quer!

E redescubro, olhando-o melhor, que eras uma vilazinha apenas, perdida nas brumas do passado... Como eu, cresces desajeitada e errabunda. Largas os calções, engravatas-te, ganhas borbulhas na cara, abres risca na cabeça, asfaltas as pantalonas, escanhoas o arvoredo até ao sangue, pões moderno onde devia ser antigo e antigo onde devia ser moderno, tiras o nome do teu génio tutelar do frontispício do Liceu... Deliras, ó púbere!  Pouco tempo tenho, uma vez mais, para dar conta de ti. Passamos um pelo outro, eu trocando a farda pela bata, tu trocando os pergaminhos por licets camarários... Descontas letras onde vendias cafés, proíbes que as casas tenham uma testa mais alta que a do vizinho, fazes concorrência ao Portugal dos Pequeninos como quem ganha saudades dos tempos em que podia brincar... Eu palpo barrigas, tu palpas carteiras. E acontece a tragédia: descubro que envelheço mais depressa do que tu — e sem que tenha podido conhecer-te! Não chegarei a ver-te dona dos teus passos, querida Amiga, e tenho pena, pois virás a ser formosa quando ganhares o juízo que a juventude não tem! Não te passeiam ainda — senão como amostra — as cabeleiras e as barbas psicadélicas. Mas andas tão miniurbe que coro de ver-te!

Passaram os tempos em que davas ovos moles e políticos. E, todavia, és pura ainda, ó Aveiro! Tens o sal, tens o sol, tens o céu encaixilhado nas marinhas — e o bacalhau, sem shorts nem nada, a bronzear-se nos tabuleiros... Serás cidade um dia, ó vila de outrora! Entre les deux ton coeur balance indecisamente — e o meu com o teu... Mas o meu com cãs e o teu indesvendado ainda, como sempre! Foste noiva, foste esposa e és viúva dum só Homem: o que filtra bronze num pedestal eterno...  O bronze e a salmoira te protejam até à consumação dos séculos!

                                                                                                     Amén

Mário Sacramento (1920-1969)

Publicado em "Comércio do Porto" , 22 de Fevereiro de 1969 (texto com supressões)


quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Europa (1944-1945)




Europa, sonho futuro!

Europa, manhã por vir,

fronteiras sem cães de guarda,

nações com seu riso franco

abertas de par em par!


Europa sem misérias arrastando seus andrajos,

virás um dia? Virá o dia

em que renasças purificada?

Serás um dia o lar comum dos que nasceram

no teu solo devastado?

Saberás renascer, Fénix, das cinzas

em que arda enfim, falsa grandeza,

a glória que teus povos se sonharam

— cada um para si te querendo toda?



Europa, sonho futuro,

se algum dia há-se-ser!

Europa que não soubeste

ouvir do fundo dos tempos

a voz na treva clamando

que tua grandeza não era

só do espírito seres pródiga

se do pão eras avara!

Tua grandeza a fizeram

os que nunca perguntaram

a raça por quem serviam.

Tua glória a ganharam

mãos que livres modelaram

teu corpo livre de algemas

num sonho sempre a alcançar!


Europa, ó mundo a criar!


Adolfo Casais Monteiro,
Pintura "O rapto de Europa" de Rembrandt





sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Bilbao

Visita ao Museu Guggenheim







Casco Viejo




Passeio  de barco pela ria





                                                           
Perto do Museu Guggenheim...


....o edifício projectado pelo arquitecto Sisa Vieira


Juntos



Esta terra, este tempo, esta espantosa podridão
que me acompanha desde que nasci
(porque sou filho de uma pátria triste
e bela como um sonho de pedra e sol; de um tempo
amargo como a borra
da história):
esta terra, este tempo que tiram de meus pés
até arrancar os ossos à minha última esperança,
ah, não poderão, não poderão jamais me vencer,
porque minha mão se estende e se agarra
a outra mão humana e a outra mão,
que me encadeiam, mãe imensa, a ti.

Blas Otero, poeta basco

A casa de meu pai


Defenderei
a casa de meu pai.
Contra os lobos,
contra a seca,
contra a usura,
contra a justiça,
defenderei
a casa
de meu pai.
Perderei
o gado,
as plantações,
os pinheirais;
perderei
os juros,
as rendas,
os dividendos,
mas defenderei a casa de meu pai.
Me tirarão as armas
e com as mãos defenderei
a casa de meu pai;
me cortarão as mãos
e com os braços defenderei
a casa de meu pai;
me deixarão
sem braços,
sem ombros
e sem peitos,
e com a alma defenderei
a casa de meu pai.
Morrerei,
a minha alma se perderá,
a minha prole se perderá,
mas a casa de meu pai
permanecerá
em pé.


Gabriel Aresti, poeta basco
trad. Fábio Aristimunho

País Basco

 

Amanheceu uma manhã esplêndida, pura, lavada, e depois de beber uma manzanilla (infusão de camomila) e de nos despedirmos da dona da casa, empreendemos a subida de Aitzgorri. O sol dourava ao longe as alturas, e pelo carreiro pedregoso e em ziguezague ia-se-nos abrindo o peito ao ar virginal da manhã montanhesa.
Por fim, no alto, na crista, na pequena varanda da ermida da Cruz,  lançávamos um olhar de águia aos vales Guipúzcoa de um lado, à planície de Álava e aos cimos de Navarra e Rioja, pelo outro. Além, ao longe, sobre os lagos de névoas, outras cristas a que outras vezes subimos.
Aqui em baixo, no campo sem árvores,estão os pastores: pastores e, se se proporciona, contrabandistas. Deles poderiam sair os caçadores, e dos caçadores os guerrilheiros. Os guerrilheiros ágeis, de pés tão ligeiros como seguros, de andar de raposa. São os que impediram a passagem de Carlos Magno em Roncesvales, os que derrotaram Roldão; são os que estiveram quase a cortar a retirada a Massena; são os que, em duas guerras no século passado, puseram em xeque os exércitos nacionais. Porquê? No fundo, por lutar. A raposa, como a cabra, puxa sempre para o monte. É a liberdade, mas a liberdade pura, primitiva, sem programa, sem bandeira, sem hino; é a liberdade do ar dos cumes; é a vida, é o livre jogo de músculos, do peito, do olhar. Quem nestas alturas não se sente guerrilheiro, ao ver a seus pés o magnífico xadrez dos vales e das montanhas?
Já que tanto vos prego sermões do meu canto de académico de Salamanca, não vos parecerá mal que alguma vez dê largas às sugestões destas livres escapadelas pelos vales e cumes da minha terra. Quem sabe se dentro deste reitor universitário engaiolado em Salamanca, se dentro deste sisudo pregador, não se agita o livre raposo caçador?

Miguel de Unamuno (1864-1936)


domingo, 16 de outubro de 2022

À procura de si própria




 "Onde deixei a Mila?", pergunto-me, como se procurasse as chaves de casa. Terei ficado na Beira, em sessenta e sete, lendo um jornal em voz alta à sombra de um mamoeiro, ou serei aquele borrão de tinta na fotografia de uma barragem também em Moçambique? Serei as nódoas de água sobre a secretária do meu avô [português] Manuel; uma caneta na mala do avô [angolano] Castro; a pulga no colchão em São Gens? Encontrar uma pessoa pode ser sinal de que a procurámos. Parece-me todavia que "encontrar" não é um resultado previsto de "procurar" quando falamos de pessoas. Encontrar-me a mim é mais parecido com encontrara uma pulga quando se procurava um borrão; encontrar uma nódoa de água quando se procurava uma chave; encontrar uma caneta quando se procurava uma pessoa. O que se encontra reconfigura o que se procurava. A procura de uma origem e  de uma identidade não reconstitui a minha origem nem descobre a minha identidade. Uma pessoa apenas se encontra a si mesma por acaso.
"Onde deixei a Mila?" O tempo da procura coincide com o tempo da descoberta, exactamente como se percebesse o propósito do que escrevo no decurso de escrever. A pessoa que encontrei por acaso confunde-se com o resultado de uma procura apenas no sentido em que, se usarmos uma pá para desenterrar um baú, é possível que o baú encontrado esteja marcado pela pá que usámos. Tal conclusão mostra-me que apenas por acaso este é o meu cabelo. O que somos por escrito é tão diferente do que somos quanto uma nódoa de água é diferente de uma chave.

Djaimilia Pereira de Almeida


quarta-feira, 5 de outubro de 2022

As gavetas


 A gaveta é um poema 
                   um cuidadoso poema
sim                           Sim
                   um poema.

Guardar é uma coisa difícil
É por vezes um vício.

Eu aprendi a guardar
mas perdi tanta coisa que guardei
sem saber onde as metera
que errei longamente longe das minhas gavetas
longe de mim
longe das casas antigas
sem saber onde encontrar-me
sem poemas            sem mim.

Um dia
um dia longamente esperado
regressei.
À minha volta acenderam-se os objectos
iluminou-se o rosto                  das coisas
abriu-se o onde       as conheci e guardei.

As gavetas são os arquivos onde fechei o sol
onde semeei os instantes já vividos
as gavetas são os onde
                             onde se guardam esperas
mergulhadas
                    no murmúrio e no perfume
das eternas.

Não               não           os poemas não são
gavetas
mas sim                                               Sim
as gavetas são                                poemas.
                                                             Sim      
os arquivos                       dos poetas.


Salette Tavares (texto com supressões)
Pintura de Menez

                    









                   

domingo, 18 de setembro de 2022

Um dia muito atarefado


Corre, foge e acelera

Cai, levanta-se, continua

A empurrar no carrinho

O seu adorado “bebé”.


 Mas...começa a travar

Chama, grita ãm ÃÃM

Aponta ÃÃÃÃUUMM

Ainda nos falta apertar

O cinto do seu "bebé"!

“Tudo bem” pensamos

O quê? Mudou de ideias

E tudo volta ao princípio

Mais… uma… vez…

 

Agora a “Mimi” (Minnie)

Está com um babete

Que pede para tirar

E a seguir colocar

Indefinidamente.

 

- Anda mudar a fralda!

Então dá meia volta

Corre, foge e acelera

- Anda cá, apanhei-te!

Quer o creme, aponta

Pede ÃÃÃMMMM

Esperneia, rebola,

Consegue alcançá-lo

E começa a comê-lo.

- NÃO, NÃO, isso NÃO!

Ela olha-nos a sorrir

A gozar(?) muito doce,

Só para experimentar

Até onde a deixam ir.

 

Agora vai para a cama

Aceita sem protestar

É um anjinho a dormir

Vó, VÓÓÓ… Está a chamar

Acordou? Já? Chatice!

Hoje dormiu tão pouco…

 

São dias muito intensos

Sem parar num frenesim

O segredo? A confiança

Que deposito nela…

E ela… em mim!


HN 
Abr./Maio 2022


sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Tavira 1944

 As mulheres sentavam-se à porta da noite
as mais novas riam
os dentes eram a sua coroa
ou tremiam ao pressentir os passos dos soldados
as crianças riscavam a cal com os seus gritos
cresciam para a morte com grandes olhos claros

ou ramos cegos

Eugénio de Andrade



Postais Antigos de Tavira







Notas sobre Tavira




Cheguei finalmente à vila da minha infância.
Desci do comboio, recordei-me, olhei, vi, comparei.

(Tudo isto levou o espaço de tempo de um olhar cansado).

Tudo é velho onde fui novo.

Desde já — outras lojas, e outras frontarias de pinturas nos mesmos prédios —

Um automóvel que nunca vi (não os havia antes)

Estagna amarelo escuro ante uma porta entreaberta.

Tudo é velho onde fui novo.

Sim, porque até o mais novo que eu é ser velho o resto.

A casa que pintaram de novo é mais velha porque a pintaram de novo.

Paro diante da paisagem, e o que vejo sou eu.

Outrora aqui antevi-me esplendoroso aos 40 anos — Senhor do mundo —

É aos 41 que desembarco do comboio [indolentão?].

O que conquistei? Nada.

Nada, aliás, tenho a valer conquistado.

Trago o meu tédio e a minha falência fisicamente no pesar-me mais a mala...

De repente avanço seguro, resolutamente.

Passou roda a minha hesitação

Esta vila da minha infância é afinal uma cidade estrangeira.

(Estou à vontade, como sempre, perante o estranho, o que me não é nada)

Sou forasteiro tourist, transeunte.

E claro: é isso que sou.

Até em mim, meu Deus, até em mim.


Álvaro de Campos

"Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890..." - Fernando Pessoa

https://www.youtube.com/watch?v=brqC48rNrpI

Tavira de ontem e hoje

Tavira Agosto de 1922

Muros muito brancos, de porta e janela, alguns com gelosias, que é a velha e a melhor maneira de manter as casas sempre frescas. A reixa deixa passar o ar e conserva a meia luz: dá intimidade aos interiores. Nas ruas não passa ninguém. Casas apalaçadas, tumulares.Telhados mouriscos, pontiagudos, de quatro águas, muito caiados, e as chaminés do sul, que lembram reduções de minaretes. Há-as rendilhadas; há-as com filigranas e flores. Outras mais pobres e mais simples, mas sempre aspirando para o céu de Alá. Entre elas e a Geralda a diferença é apenas de tamanho. Brancas, esguias, delicadas, com um pouco de imaginação povoa-se Tavira de torres onde o árabe faz a oração da manhã e da tarde. A alma do moiro está viva. Subjugada, persiste e sonha. Aspira. Perseguida, obstina-se. E para viver faz-se pequenina e contenta-se em deitar fumo...
Tavira é uma terra fechada, concentrada,de gente rica que arrecada o dinheiro do figo, da amêndoa e da alfarroba. Cada fruto destas árvores é um pingo de oiro. Que saudades eu tenho nesta terra neurasténica, da fedorenta Olhão! De Olhão, até o mau cheiro me cheira agora bem...E como compreendo a mudança de fisionomia dos homens e das coisas.. Tavira é uma terra de montanheiros, Olhão é uma terra de pescadores. O pescador é comunista e alegre, o montanheiro desconfiado e triste. No mar não há marcos...

Raul Brandão



Tavira Agosto de 2022