terça-feira, 23 de novembro de 2010

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia


O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal,
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Pelo Tejo vai-se para o mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

Fernando Pessoa
http://www.youtube.com/watch?v=Hr9sTxkO2xw

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Goa


Ao sair do aeroporto de Dabolim, aturdido pelo calor, o cansaço de duas noites sem dormir, e sobretudo o confuso alvoroço da multidão em festa, abandonei a minha mala, aliviado, nas mãos do primeiro motorista de táxi. Tive sorte. Sal parece um tipo honesto e interessante. Católico. O tablier do carro, transformado em altar, proclama isso mesmo: há uma Virgem Maria dentro de uma redoma de vidro, com pequenas luzes coloridas que piscam ao ritmo da música, uma minúscula urna com o corpo incorrupto de São Francisco Xavier, um crucifixo de prata suspenso do espelho retrovisor. Porém, o que primeiro me chamou a atenção foi a bandeira azul e branca do Futebol Clube do Porto.
   - Você fala português?
   Sal riu-se:
   - Bom dia...
O português dele, infelizmente, resume-se a isto. Um táxi com a bandeira do Futebol Clube do Porto é uma coisa que apenas esperava encontrar na cidade do Porto. Se fosse do Sporting ou do Benfica, clubes menos regionais, não estranharia tanto. Ontem, curiosamente, em conversa com o escritor Mário Cabral e Sá, soube que nos anos cinquenta se chegou a criar um Futebol Clube do Porto de Siolim: "copiávamos tudo de Portugal" - disse-me ele com amargurada ironia. O táxi de Sal também tem uma bandeira portuguesa, colada no vidro posterior, ao lado de outra da União Europeia. Finalmente - foi isso que me conquistou - Sal deu ao seu carro um belo nome, Princesa de Goa, e escreveu-o a tinta dourada em ambas as portas.

José Eduardo Agualusa
http://www.youtube.com/watch?v=Ux2FdIHJ2rs

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Amor


Dava pelo nome muito estrangeiro de Amor, era preciso chamá-lo sem voz - difundia uma colorida multiplicação de mãos, e aparecia depois todo nu escutando-se a si mesmo, e fazia de estátua durante um parque inteiro, de repente voltava-se e acontecera um crime, os jornais diziam, ele vinha em estado completo de fotografia embriagada, descobria-se sangue, a vítima caminhava com uma pêra na mão, a boca estava impressa na doçura intransponível da pêra, e depois já se não sabia o que fazer, ele era belo muito, daquela espécie de beleza repentina e urgente, inspirava a mais terrível acção do louvor, mas vinha comer às nossas mãos, e bastava que tivéssemos muito silêncio para isso, e então os dias cruzavam-se uns pelos outros e no meio habitava uma montanha intensa, e mais tarde as noites trocavam-se e no meio o que existia agora era uma plantação de espelhos, o Amor aparecia e desaparecia em todos eles, e tínhamos de ficar imóveis e sem compreender, porque ele era uma criança assassina e andava pela terra com as suas camisas brancas abertas, as suas camisas negras e vermelhas todas desabotoadas.

Herberto Helder
http://www.youtube.com/watch?v=w8bk9_nzLcM

sábado, 6 de novembro de 2010

Outra vez o Tejo


Um barco atravessa o Tejo.
Vem da infância, não sei para onde vai.
É branco, dessa brancura só dada
às aves. O rio,
que não via há tanto tempo,
entra agora pelas ruas de Lisboa
ao encontro da tão amada
luz dos jacarandás.
Volto a ter oito anos neste jardim,
vou perder-me nestas ruas,
nestas calçadas, onde o grito
das gaivotas sobe a prumo,
vou correr com o vento de esquina
em esquina, subir
com as árvores, ser
com elas poeira fina.

Eugénio de Andrade
http://www.youtube.com/watch?v=HVh86j7vCMw

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O cheiro das ondas no instante em que o ar é mais frio do que a água


Normalmente é no terceiro minuto a partir do crepúsculo que o ar da praia é mais frio do que a água. Não no segundo nem no quarto: no terceiro e durante onze segundos, o que requer discernimento, atenção e paciência. O melhor é encostarmo-nos à muralha, de queixo na palma, vigiar as gaivotas, dar fé da mudança de cor no horizonte e nisto, mal o terceiro minuto começa, tira-se a palma do queixo para que o ar poise nela e aí está: pega-se no ar da praia, mete-se no bolso e leva-se para casa sem deixar entornar. Tem de utilizar-se logo visto que no dia seguinte, a partir das dez, já o ar aqueceu. Puxa-se com cuidado do bolso e respira-se devagarinho. Quase sempre, então, os pinheiros estremecem e parece existir, nas mulheres da família, uma espécie de vontade de chorar. Não de tristeza, claro: do facto de existir para sempre, dentro delas, um búzio comovido. Só conheci um homem de mãos tão impregnadas de nuvens quanto as suas: o senhor José, duro camponês de Trás-os-Montes, no jardim dos meus pais, a fazer crescer uma flor com dedos humildes, de ossos suaves como o leite, vagarosos, certeiros. Devia ter tido o bom senso de morrer antes dele para que me fechasse os olhos para sempre. Mas descuidei-me  e o senhor José lá está no cemitério, humilde, escalavrado, agreste, a fazer corpo com a terra. O seu sorriso sem dentes, a sua bondade, o pobre, gasto corpo destroçado. A língua de pedra o que dirá agora? Nasceu em São Martinho da Anta, chamava-me
     - Menino
     e era muito mais elegante de alma do que eu, de uma delicadeza
     ia escrever aristocrática, escrevo aristocrática
     que não possuí nunca: sou feito de cardos e há palavras que deixei secar dentro de mim ou a vida secou. Claro que vou escrevendo, vou respirando, até me acontece, às vezes, orvalhar-me. Mas escondo.

António Lobo Antunes
http://www.youtube.com/watch?v=j51oyMWOWEM