domingo, 27 de agosto de 2023

As maçãs

Da alma só sei o que sabe o corpo:
onde a esperança e a graça
aspiram ao ardor
da chama é a morada do homem.
Vê como ardem as maçãs
na frágil luz de inverno.
Uma casa devia ser
assim: brilhar ao crepúsculo
sem usura nem vileza
com as maçãs por companhia.
Assim: limpa, madura.

Eugénio de Andrade

domingo, 20 de agosto de 2023

Coimbra de António Nobre


Moro numa alta, numa velha Torre,
Cheia de sonho e de legenda, até!
Pelos seus muros verde suor escorre,
Porque, há mil anos, que ela está de pé!

Olhai o Sol que entre salgueiros morre,
E a velha Coimbra, enoitecendo, vê!
Aqui, sozinho, moro nesta Torre,
Com o meu cão e o velho e leal Joseph.

Sobe ao terraço: aqui, "fora de portas",
Perto das nuvens, nas regiões serenas,
Moram as minhas esperanças mortas:

Vê-as ao canto... Pobres andorinhas!
Nas asas têm já tão poucas penas,
Que parecem um bando de velhinhas...

Coimbra, 1889


Para as raparigas de Coimbra

Minha capa vos acoite,
Que é pra vos agasalhar:
Se por fora é cor da noite,
Por dentro é cor do luar...

Vou encher a bilha e trago-a
Vazia como a levei!
Mondego, que é da tua água?
Que é dos prantos que chorei?

Ó quem me dera abraçar-te,
Contra o peito assim, assim,
Levar-me a morte e levar-te
Toda abraçadinha a mim.
 
A cabra da velha Torre,
Meu amor, chama por mim;
Quando um estudante morre,
Os sinos chamam, assim.
 
Ó sinos de Santa Clara,
Por quem dobrais, quem morreu?
Ah, foi-se a mais linda cara
Que houve debaixo do Céu!

Coimbra, 1890

quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Quietude



Que poema de paz agora me apetece!
Sereno,
Transparente,
A sugerir somente
Um rio já cansado de correr,
Um doce entardecer,
Um fim de sementeira.
Versos como cordeiros a pastar,
Sem o meu nome em baixo, a recordar
Os outros que cantei a vida inteira.

Miguel Torga

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Natália Correia visita Torga





Em Coimbra, na casa de Miguel Torga, que visitávamos sempre que acedíamos à cidade, Natália Correia perturba-se. O escritor abeira-se do fim. Deitado num divã, junto à janela do escritório onde nos recebe, sidera-nos com o seu desespero branco: "Ainda bem que vou morrer, não assistirei à agonia de Portugal. Portugal vai desaparecer nesta CEE, a sua cultura, a sua economia, não aguentarão os embates que lhe vão ser impostos. Onde estão os políticos, os intelectuais, que não vêem isso? É catastrófica a sua falta de lucidez!"
Ele não acreditava que " o País sobrevivesse integrado na comunidade Europeia",  repetia, repetia - qual Camões após Alcácer Quibir. "Portugal está a ser destruído por dentro, pelo centrão que o sequestrou através do voto para o roubar, enganar, aviltar", arquejava, olhando para lá dos vidros da saleta onde o corpo se lhe desfazia. 
Preocupado com a tosse de Natália (a doença tomara-a já), levantou-se, foi buscar um estetoscópio e obrigou-a a deixar-se consultar. "Não está nada bem", sussurraria. Sentou-se à secretária e prescreveu-lhe uma receita. A última que passou. "Em vez de a aviar numa farmácia vou guardá-la como recordação, um tesouro", decidiu ela comovida...

"Oh, Pátria minha tão bela e perdida", irrompe no auto-rádio, de regresso a Lisboa, o coro do Nabuco de Verdi. Então ela eleva a voz, abre a janela e canta, e leva-nos a cantar, lágrimas e entoações soltas ao infinito: "Oh, mia Patria si bella e perduta, Patria mia perduta"..."
O carro oscila e, alado, ergue-se da estrada, deixando as luzes do casario de Coimbra para baixo, para baixo, e, por eternidades, voga à altura do Va Pensiero, à altura da paixão de Torga e Natália pelo país que os almou para sempre. 

Fernando Dacosta


Miguel Torga o insubmisso



Coimbra, 20 de Junho de 1975 

Estranha revolução esta, que desilude e humilha quem sempre ardentemente a desejou. A mais imunda vasa humana a vir à tona, as invejas mais sórdidas vingadas, o lugar imerecido e cobiçado tomado de assalto, a retórica balofa a fazer de inteligência. Mas teimo em crer que apesar de tudo valeu a pena assistir ao descalabro...



Chaves, 11 de Setembro de 1975

LAMENTO

Pátria sem rumo, minha voz parada
Diante do futuro!
Em que rosa-dos-ventos há um caminho
Português?
Um brumoso caminho
De inédita aventura, 
Que o poeta, adivinho,
Veja com nitidez
Da gávea da loucura?

Ah, Camões, que  não sou, afortunado!
Também desiludido,
Mas ainda lembrado da epopeia...
Ah, meu povo traído,
Mansa colmeia
A que ninguém colhe o mel!...
Ah, meu pobre corcel
Impaciente,
Alado
E condenado
A choutar nesta praia do Ocidente...

Miguel Torga
Retrato de Isolino Vaz



Coimbra, 1 de Nov. de 1983

Memória
De todos os cilícios, um, apenas
Me foi grato sofrer
Cinquenta anos de desassossego
A ver correr 
Serenas
As águas do Mondego


Escultura que assinala o percurso que Miguel Torga fazia do seu consultório na Portagem até à beira do Mondego para ir apreciar a paisagem.

Obra concebida pelo arquitecto José António Bandeirinha e pelo artista plástico António Olaio.