domingo, 25 de abril de 2021

E agora José


Lá vai o português

Lá vai o português, diz o mundo, quando diz, apontando umas criaturas carregadas de História que formigam à margem da Europa.

Lá vai o português, lá anda. Dobrado ao peso da História, carregando-a de facto, e que remédio – índias, naufrágios, cruzes de padrão (as mais pesadas). Labuta a côdea do sol-a-sol e já nem sabe se sonha ou se recorda. Mal nasce deixa de ser criança: fica logo com oito séculos.
No grande atlas dos humanos talvez figure como um ser mirrado de corpo, mirrado e ressequido, mas que outra forma podia ele ter depois de tantas gerações a lavrar sal e cascalho? Repare-se que foi remetido pelos mares a uma estreita faixa de litoral (Lusitânia, assim chamada) e que se cravou nela com unhas e dentes, com amor, com desespero ou lá o que é. Quer isto dizer que está preso à Europa pela ponta, pelo que sobra dela, para não se deixar devolver aos oceanos que descobriu com muita honra. E nisso não é como o coral que faz pé-firme num ondular de cores vivas, mercados e joalharia; é antes como o mexilhão cativo, pobre e obscuro, já sem água, todo crespo, que vive a contra-corrente no anonimato do rochedo. (De modo que quando a tormenta varre a Europa é ele que a suporta e se faz pedra, mais obscuro ainda).
Tem pele de árabe, dizem. Olhos de cartógrafo, travo de especiarias. Em matéria de argúcias será judeu, porém não tenaz: paciente apenas. Nos engenhos da fome, oriental. Há mesmo quem lhe descubra qualquer coisa de grego, que é outra criatura de muitíssima História.
Chega-se a perguntar: está vivo? É claro que está: vivo e humilhado de tanto se devorar por dentro. Observado de perto pode até notar-se que escoa um brilho de humor por sob a casca, um riso cruel, de si para si, que lhe serve de distância para resistir e que herdou dos mais heróicos, com Fernão Mendes à cabeça, seu avô de tempestades. Isto porque, lá de quando em quando, abre muito em segredo a casca empedernida e, então sim, vê-se-lhe uma cicatriz mordaz que é o tal humor. Depois fecha-se outra vez no escuro, no olvidado.
Lá anda, é deixá-lo. Coberto de luto, suporta o sol africano que coze o pão na planície; mais a norte veste-se de palha e vai atrás da cabra pelas fragas nordestinas. Empurra bois para o mar, lavra sargaços; pesca dos restos, cultiva na rocha. Em Lisboa, é trepador de colinas e de calçadas; mouro à esquina, acocorado diante do prato. Em Paris e nos Quintos dos Infernos topa-a-tudo e minador. Mas esteja onde estiver, na hora mais íntima lembrará sempre um cismador deserto, voltado para o mar.
É um pouco assim o nosso irmão português. Somos assim, bem o sabemos.
Assim, como?

José Cardoso Pires, 1977

Pintura de Francisco Relógio

https://www.youtube.com/watch?v=gqMqK6Supww





sábado, 24 de abril de 2021

Os livros



É então isto um livro,

este, como dizer?, murmúrio,

este rosto virado para dentro de

alguma coisa escura que ainda não existe

que, se uma mão subitamente

inocente a toca,

se abre desamparadamente

como uma boca

falando com a nossa voz?

É isto um livro,

esta espécie de coração (o nosso coração)

dizendo "eu" entre nós e nós?


Manuel António Pina

https://vimeo.com/3691184


terça-feira, 13 de abril de 2021

Para o esquecimento

 


Pensa que queria que fosse como dantes


Quando não queria saber mais nada

Quando caminhar chegava

Quando falar nunca era mais ou menos que


Quando as cores tinham os tons certos

E as dúvidas duração sem angústia


Pensa que queria ser como fui um dia

E não ter aprendido com engano nenhum


Susana M. Marques

Desenho de Picasso

https://www.youtube.com/watch?v=rzy2wZSg5ZM


domingo, 11 de abril de 2021

O CAMINHO DE CASA (II)

GÓTICO AMERICANO


Uma recordação chega
para fender os alicerces,
a dúvida rasga as cortinas
por onde se côa o sangue dos dias felizes.

As filhas passadas já não correm no jardim,
já ninguém responde quando chamo
pelos seus vagos nomes que chamo
como se chamassem eles por mim.

Tu lavas a louça na cozinha
entre cheiros sujos e restos de comida,
ou ficas à janela infinitamente;
os vizinhos mudaram-se, o cão morreu para sempre.

            casa agora é feita d' ângulos agudos,
        de perguntas, de poços descobertos, 
        e nós perdemo-nos por dentro d'outros mundos
        por portas que se abriram para dentro.

 O meu coração repousa
 na cave no meio da minha vida
 e eu vagueio lá fora entre os sentidos.
 Sou eu quem chama, não me ouves bater? 


              Manuel António Pina

               Pintura de Grant Wood

              https://www.youtube.com/watch?v=9kUA2gAlCZY