sábado, 31 de outubro de 2015

O segredo da Mãe


Quando o Verão se aproxima, com os seus calores de cozedura e o Sol de bico mais amarelo, as mulheres da aldeia juntam-se, ao fim da tarde, e conversam em surdina. A reunião é logo à saída da aldeia, debaixo da sombra das árvores que se alinham pela rua: e elas fazem um círculo em volta do tronco, como se precisassem de um eixo para a sua conversa. As mulheres da aldeia são baixas, e é por isso que se podem juntar sob as ramagens que, embora estejam carregadas de folhas, não as impedem de se verem umas às outras, e de se rirem com as conversas que só elas ouvem, enxotando um ou outro homem mais curioso, que se procure aproximar. 
Lembro-me de ter tentado saber de que falavam. À noite, já depois de todas terem voltado para suas casas, ia até junto da árvore e tentava ouvir o barulho que o vento fazia, por entre a folhagem, como se ainda aí subsistisse o eco das suas palavras. O mais que conseguia era entrever, por entre a agitação dos ramos, o rosto branco da Lua cheia que, ainda hoje não sei se se ria de mim ou, pelo contrário, me lançava um desses esgares de desprezo que os seres do alto atiram cá para baixo, quando sentem que os espreitam. Eu, no entanto, não espreitava ninguém, e muito menos a Lua, que só o acaso do movimento das folhas me punha diante dos olhos. Foi assim durante todo um Verão em que, cansado de ver essas reuniões das mulheres da aldeia, pretendi saber do que é que elas falavam, como se um segredo se pudesse desvendar sem mais nem menos.
A figura central dessas reuniões era a Mãe. Não sei se era a mais velha do grupo; mas era a que falava menos, e era em volta dela que se passavam as conversas mais sérias, já que muitas das frases que eram ditas em surdina despertavam risos abafados, como se não passassem dessas pequenas intrigas que animam os verões e despertam a imaginação de quem sabe que não terá outra oportunidade para se divertir, quando o frio fizer cair as folhas das árvores, fechando nas suas casas as mulheres e calando as suas conversas em volta das árvores. Mais estranho era ainda o facto de essa Mãe aparecer, muitas vezes, com uma ovelha às costas, e uma tesoura aberta na mão enluvada.

Nuno Júdice
(inspirado na obra de Graça de Morais)
https://www.youtube.com/watch?v=Tcapo5YhJlY

sábado, 24 de outubro de 2015

As maçãs de Cézanne


Um artista é um mestre do olhar. Gosto de pensar assim em Cézanne. Ele viveu narrando a apaixonada visualidade do mundo, mas mantendo-se à procura (em cada paisagem ou figura, em cada maçã) de alguma coisa que nunca se toca completamente. "O que eu procuro traduzir é mais misterioso, enxerta-se na própria raiz do ser, na fonte inapreensível das sensações" - explicava-se assim. Pintava sempre os mesmos objetos, e pintava-os por eles mesmos, pela sua ressonância espiritual. Tinha por técnica a sobreposição de cores sucessivas, que não se misturavam. Para obter esse efeito, precisava esperar que a primeira tinta secasse, para introduzir então a seguinte: um processo extraordinariamente lento, rigoroso e, claro, contemplativo. Concentrava-se na cor, sintetizava nela a experiência de revelação e a tomada de consciência das coisas. "A montanha pensa em mim, e eu torno-me a sua consciência" era um dos seus lemas. Por isso aquele que disse que "suspensas entre a natureza e a utilidade, as maçãs de Cézanne existem apenas para serem contempladas", não se enganou. Estas maçãs que podiam simplesmente estar sobre a nossa mesa são uma espécie de exercício proposto ao olhar. Essas pequenas esferas, leves e maciças, desenhadas nas frestas invisíveis da luz, iluminam o nosso  modo instável de segurar o escuro.

José Tolentino Mendonça
https://www.youtube.com/watch?v=D25zQsfNPYY

domingo, 18 de outubro de 2015

Amadeo


Dos vários modelos de reconciliação, a frequência da cozinha de uma casa será por certo o mais antigo e o mais conseguido. Reconhecerá isto Amadeo quando pinta a "Cozinha da Casa de Manhufe", nesse calor de evocados convívios, solilóquios a que o lume crepitante faz companhia, presentificando gerações que vêm aconchegar o corpo dos viventes, dando ao diário fluir um gosto de coisa perfeita que se nos insere na pele. O ocre terno do reboco, que o castanho húmido das madeiras povoa de uma confidência temperada de seriedade, a negra crosta dos potes de três pés, onde se confeccionam riquíssimas substâncias ora gomosas ora enxutas, ora papudas ora rechinantes de gordura que rapidamente a si mesma se come, tudo faz parte dessa geografia vital. A cancela ficou aberta para as escadas de fora, e bem assim se ergueu a ventana, pois que estamos no São Miguel e na cozinha se abafa. Até quem cabeceia no trasfogueiro, ascende o cheiro do mosto e o hausto do saibro dos caminhos, em cujas margens as amoras se toldam de um sudário pulverulento. A cozinha de Manhufe é lugar de trempes e covilhetes de banha, espetos e alguidares onde o sangue suíno paulatinamente coagula sob a elástica película, as carnes salgadas se desfazem da enxúndia gelatinosa que implora o corte do vinho. O sol, então, acalenta ou doira. Estamos no ano de mil novecentos e treze, a cozinha é do homem e o homem dela, que mais falta para que a obra se cumpra?

Mário Claúdio
https://www.youtube.com/watch?v=5ze0Y8tDEWk

sábado, 10 de outubro de 2015

Painéis do Infante

                     

                        Príncipes do silêncio ó taciturnos
                        Por quem chamava nos longínquos céus nocturnos
                        A verdade das estrelas nunca vistas.

                        A vossa face é a face dos elementos,
                        Solitária como o mar e como os montes
                        Vinda do fundo de tudo como as fontes
                        Dura e pura como os ventos.

                        Sophia de Mello Breyner Andersen
                        https://www.youtube.com/watch?v=TXGV0WM7M48

sábado, 3 de outubro de 2015

A Primavera de Botticelli


- Florença, Itália, final de tarde. Uma fila enorme de turistas aguarda a sua vez para visitar a Galleria Degli Uffizi. Falta escassa hora e meia para fecharem ao público e eu anseio por entrar... 
Em suma, entro naquele mundo fantástico e viajo, de sala em sala, como se revisse, nas obras de arte, velhos amigos meus. Até que chego à sala de Botticelli... - Levanta-se da cadeira e, de forma teatral, abre os braços em toda a amplitude - e vejo-a. Ali está ela, à minha frente, imponente em tamanho e em beleza... A Primavera!
- A Primavera? - questionaram as duas amigas, incrédulas.
Ele sorri, reconhecendo que as baralhou um pouco.
- Sim, um dos quadros mais belos que já tive ocasião de ver. De repente, sinto-me a caminhar ao encontro de Vénus mas, quando estou quase a tocar-lhe, sou envolvido pelas Três Graças que dançam em redor de mim e não me consigo libertar do seu cerco. Mercúrio empunha o seu sabre na minha direcção, enquanto Amor, filho de Vénus, se prepara para me lançar uma das suas setas. Esta experiência terrível durou alguns segundos. Não sei como descrever o terror que senti! Estava prestes a gritar por socorro mas, simultaneamente, havia em mim um desejo profundo de prolongar aquela situação única... poder estar dentro de um quadro de Botticelli. Até sentia o perfume das laranjas nas árvores! Ainda hoje sinto o perfume daquelas laranjas...Quando terminou essa experiência, o meu corpo tremia, os meus joelhos fraquejavam e foi com o auxílio dos meus amigos que consegui fazer o caminho de regresso ao hotel. Uf!