domingo, 31 de julho de 2022

A ordem do mar

À medida que ver se completa em arco

de uma harmonia que reúne o espaço inteiro

a flor se ergue em fantasia calma e se decanta

na brisa que a inclina e a rodeia e a aviva.

Não mais a máscara, não mais a mímica, não mais

as flautas e as palavras flutuantes. Só a canção

do mar, a sua ordem múltipla e monótona,

os seus artifícios frescos, a sua fragância funda.

É uma voz que torna o céu mais amplo e a folha

mais azul. É o conhecimento de uma ordem

em que as sombras se combinam com o vento,

em que os corpos são formas do verdadeiro oceano.


António Ramos Rosa

Pintura de Manuel Amado

https://www.youtube.com/watch?v=W6ijeWSrDHk


quinta-feira, 21 de julho de 2022

Convento da Arrábida



Painel de Frei Agostinha da Cruz no Convento da Arrábida

Alta Serra deserta, donde vejo

As águas do Oceano duma banda,

E doutra já salgadas as do Tejo.

 

Daqui mais saudoso o sol se parte;

Daqui muito mais claro, mais dourado,

Pelos montes, nascendo, se reparte

 

Aqui sob-lo mar dependurado

Um penedo sobre outro me ameaça

Das importunas ondas solapado.

 

Duvido poder ser que se desfaça

Com água clara, e branda a pedra dura

Com quem assim se beija, assim se abraça.

 

Eis por cima da rocha áspera descem

Os troncos meio secos encurvados,

Eis sobem os que neles enverdecem.

 

Os olhos meus dali dependurados,

Pergunto ao mar, às plantas, aos penedos

Como, quando, por quem foram criados?

 

Assim com cousas mudas conversando,

Com mais quietação delas aprendo

Que outras que há, ensinar querem falando.

 

Se pelejo, se grito, se contendo

Com armas, com razão, com argumentos,

Elas só com calar ficam vencendo.


Frei Agostinho da Cruz



quarta-feira, 20 de julho de 2022

A Serra da Arrábida









A Serra tem o ar de uma onda que avança impetuosa e subitamente estaca e se esculpe no ar; é uma onda de pedra e mato, é o fóssil de uma onda. Ri-se do mar de agora, gaivota mansinha, profundamente azul, que faz avultar, com a planície que lhe fica à esquerda, o seu dorso gigantesco.

E seguimos; e à maravilha segue a maravilha: agora começa-se a descer a Estrada do Professor Gentil, três quilómetros que nos levam ao Portinho. 

Que pena não poder durar mais tempo esta nossa paragem! É que aqui é o ponto mais belo que até agora encontrámos: em nossa frente ergue-se, piramidal, o Monte do Guincho, onde a Mata do Solitário nasceu e vingou. Os pássaros cantam a liberdade dos bosques. E nós baixamos até ao Portinho, onde havemos de almoçar. Uma baía que abraça amorosissimamente um mar estático... Uma fortaleza mandada construir por D. Pedro II para defesa da costa (piratas que gostariam de passar aqui o seu fim-de-semana) e que é hoje a Estalagem de Santa Maria... Mato a nascer ao rés das ondas dir-se-ia que tem a raiz na água salgada... Uma luz que fere a vista, mas de que a vista se enamora, a vestir as coisas todas de um brilho que não é deste mundo... Gaivotas que não são sinal de temporal - são antes as pombas de uma paz única e primitiva... Todo o Portinho (que poeta lhe pôs este nome?) a ser um cais sobre a Poesia, uma janela que dá para a Beleza... Sabe-nos bem estarmos vivos.

Mas não deixemos de ver a Lapa de Santa Margarida - uma gruta enorme que o mar enche com a sua voz sagrada. Humildemente escondida na sombra, uma capelinha tosca onde por vezes se reza missa.

Depois Alportuche, uma pequenina praia a que nos conduz uma alameda de eucaliptos. E se tomarmos um bote poderemos ainda visitar a Praia dos Coelhos e a de Galapos. 

Chegou a hora da partida.  Passamos a dois passos da Mata Coberta... Um minuto mais e aparece o Convento. Ali se concentra a religiosidade esparsa pela Serra; parece que é ali a fonte mística, quando o contrário é o que afinal acontece; ali desemboca, vindo de todos os cantos, trazido por todos os ventos, o espírito que dá à Serra da Arrábida elevação e sentido. Ali é que se apercebe com nitidez a Arrábida mais verdadeira, que não é a Arrábida dos banhos, nem a Arrábida das caldeiradas, nem a Arrábida das romarias encantadoramente pagãs, nem sequer a Arrábida do turismo; é o que aquelas paredes contam...

Sebastião da Gama (texto com supressões)

https://www.youtube.com/watch?v=8ZEHtt_5Ja4



sexta-feira, 15 de julho de 2022

Emigrantes

Casa onde nasceu  Ferreira de Castro, Ossela, Oliveira de Azeméis






Vista para a Serra da Freita

À hora do jantar,  feitas as pazes com Deolinda, que o prazer de a ver levara-o, logo que ela aparecera, a tudo lhe perdoar, Manuel da Bouça não se conteve mais e perguntou-lhe:
- Olha cá: de quem é aquela casa nova nos Salgueiros? 
- A casa nova? É do Nunes.
- Do Nunes?
- Sim, do Nunes da Agência. Do que vendeu a passagem e o passaporte ao pai...
- Ah! - E à admiração sucederam ideias vagas, vagos pressentimentos, mal formuladas hipóteses. - Do Nunes... Mas, então, ele está rico?
- Muito! Toda a gente deu em sair da terra e ele não tinha mãos a medir. Era em Cambra, era em Oliveira e até por aí andou um empregado dele a saber quem queria ir para o Brasil ou para a América. Correu que ele não era homem sério e até foi preso por causa de uns fulanos de Castelões que mandou sem papéis. Iam primeiro para Espanha e depois para a América, mas descobriu-se tudo. Diz-se que deu dinheiro à justiça para se livrar; não sei se é certo ou se não é; mas, lá que ele esteve preso pouco tempo, isso é verdade, porque uma semana depois de eu saber do acontecido vi-o passar no automóvel para Cambra.
- E já há muito tempo que ele tem a casa?
- Vai para três anos. Vem aqui passar o Verão, para fazer caçadas na Felgueira e pescar no rio. Traz sempre muitos criados, automóvel e tudo. Consta que é a maior fortuna que se tem feito por cá nos últimos tempos. A mim ninguém me tira da cabeça que ele tinha combinações com o Carrazedas para tirar as terras aos pobres.
- An? Que dizes?
- Toda a gente o diz à boca pequena. Não viu o pai o que aconteceu às nossas courelas?
Bateram à porta. A vizinhança, regressada pos campos, ao saber da grande nova, acorria a saudar Manuel da Bouça. Parabéns deste, parabéns daquele, Manuel da Bouça sorria e agradecia enlevadamente.
Respeitosos, servis, todos se quedavam em palreira, pergunta da esquerda, pergunta da direita e, de quando em quando, uma hábil referência à fortuna que ele conseguira ganhar.
Lisonjeado, Manuel da Bouça não tinha coragem pars negar os bens que lhe atribuíam.
- Não é tanto assim...Não é tanto assim...Fez-se o que se pôde...
Sentia que a verdade quebraria a vitória daquele momento, lançando no ambiente de adulação um silêncio incómodo - amesquinhando-o, envergonhando-o. Súbita cobardia amarrava-o à mentira, perante os olhos ávidos dos vizinhos, daqueles velhos conhecidos, que o desprezariam se conhecessem a verdade.

Ferreira de Castro


sexta-feira, 1 de julho de 2022

Sou feliz só por preguiça



Sou feliz só por preguiça. A infelicidade dá uma trabalheira pior que doença: é preciso entrar e sair dela, afastar os que nos querem consolar, aceitar pêsames por uma porção da alma que nem chegou a falecer. 
- Levanta, ó dono das preguiças.
É o mando de minha vizinha, a mulata Dona Luarmina.
- Preguiçoso? Eu ando é a embranquecer as palmas das mãos.
- Conversa de malandro...
- Sabe uma coisa, Dona Luarmina? O trabalho é que escureceu o pobre do preto. E, afora isso, eu só presto é para viver...
Ela ri com aquele modo apagado dela. A gorda Luarmina sorri só para dar rosto à tristeza.
- Mas você, Zeca: é que nem faz ideia da vida. 
- A vida, Dona Luarmina?A vida é tão simples que ninguém a entende. É como dizia meu avô Celestiano sobre pensarmos Deus ou não-Deus...
Além disso, pensar traz muita pedra e pouco caminho. Por isso eu, um reformado do mar, o que me resta fazer? Dispensado de pescar, me dispenso de pensar. Aprendi nos muitos anos de pescaria:  o tempo anda por ondas. A gente tem é que ficar levezinho e sempre apanha boleia numa dessas ondeações. 
- Não é verdade, Dona Luarmina? A senhora sabe essas línguas da nossa gente. Me diga, minha dona: qual é a palavra para dizer futuro?
Sim, como se diz futuro? Não se diz, na língua deste lugar de África. Sim, porque futuro é uma coisa que existindo nunca chega a haver. Então eu me suficiento do actual presente. E basta.

Mia Couto
Arte de Malangatana


Que sei eu?



Que sei eu daquele caminho 

onde o olhar não decifra?

Que sei eu da água escura

tornada espelho da vida?

Que sei eu deste silêncio

quando é bandeira de luto?

Que sei eu da lua grande

sem coração que a habite?


Feliz o passo encetado

neste esplendor do agir

sem pensar muito no caso

dum louco que quis saber

dum cego que quis fugir

para um astro iluminado.


Feliz o passo acertado

pelas certezas bem juntas

a um dia ensolarado

sem a névoa das perguntas.


João Rui de Sousa

Pintura de Menez

https://www.youtube.com/watch?v=zfjOXvykoic