domingo, 26 de janeiro de 2020

Relento

Diz-se que era um bom electricista. Um dia
a cidade pô-lo a nu, espetou-lhe a faca.
Desde aí nunca mais foi a mesma coisa.
Mas está na hora da nossa lição:
"não julgues para não seres julgado
- S. Mateus, capítulo sétimo".

A seguir, isolou-se com a manta, como quem
reduz a noite a uma questão de fase e neutro,
aconchegou-se um pouco mais
à fachada do Teatro Nacional.
Lá dentro, por coincidência, "Esta noite
improvisa-se", de Luigi Pirandello".

E, com este enquadramento, o cartaz
ganha um quê de surrealista, a escassos
cinquenta metros da porta do café Gelo.
Ocorre-me um fado antigo, na boca de
Zeca Afonso: "Ó mar largo, ó mar largo,
Ó mar largo sem ter fundo".

domingo, 19 de janeiro de 2020

Que país é este?

                    O PAÍS RELATIVO

              País por conhecer, por escrever, por ler...

              País purista a prosear bonito,
              a versejar tão chique e tão pudico,
              enquanto a língua portuguesa se vai rindo,
              galhofeira, comigo.

              País engravatado todo o ano
              e a assoar-se na gravata por engano.

              País amador do rapapé
              do meter butes e do parlapié,
              que se espaneja, cobertas as miúdas,
              e as desleixa quando já ventrudas.

              O incrível país da minha tia,
              trémulo de bondade e de aletria.

              País dos gigantones que passeiam 
              a importância e o papelão,
              inaugurando esguichos no engonço
              do gesto e do chavão.
                
              E ainda há quem os ouça, quem os leia,
              lhes agradeça a fontanária ideia!

              País pobrete e nada alegrete,
              baú fechado com um aloquete,
              que entre dois sudários não contém senão
              a triste maçã do coração.

              Que Santa Sulipanta nos conforte
              na má vida, país, na boa morte!


                     Alexandre O´Neill
                     Fotografia tirada na Av. Almirante Reis, Lisboa
                     https://www.youtube.com/watch?v=Vu2xhB8V-F4

sábado, 11 de janeiro de 2020

Almirante Reis


Ponho-me a olhar a Avenida cá de cima, da minha água-furtada e meu refúgio, e digo-lhe, seu Apolinário: tudo isto levou uma grande volta. Antigamente vivia-se aqui como num céu aberto. Nem faz ideia. Onde isso vai, parece que não, os dias passam devagar, mas os anos vão-se depressa. A gente dá por isso quando não há remédio.
Foi nos começos da República, e eu, de calção, com os sapatos nas poças de chuva, travava os primeiros corpo a corpo com a gramática latina e o verbo Amar. A Avenida era então novinha em folha, como o regime. Começava lá em baixo, num boqueirão sinistro, um rio de lama onde às vezes havia inundações e gritos, entre ribanceiras e prédios esguios, e ia-se perder ao alto, nas quintas e azinhagas. As casas, modestas e limpinhas, tinham fachadas de azulejo de mau gosto, outras eram pintadas a cor. Havia as «terras», lotes vagos de barro viscoso onde a gente ia «reinar», e as carroças se atolavam até aos eixos, com muitas pragas dos carroceiros. As árvores eram frágeis e verdes, de mocidade e esperança. Que sossego o desses dias agitados! Isto não era Avenida, era a Rua do Lá-Vai-Um.

José Rodrigues Miguéis
https://www.youtube.com/watch?v=NiVmF4eMdTM

sábado, 4 de janeiro de 2020

Bom Ano 2020


Se



Se és capaz de manter a tua calma quando
Todo o mundo ao teu redor já a perdeu e te culpa;
De crer em ti quando estão todos duvidando,
E para esses no entanto achar uma desculpa;
Se és capaz de esperar sem te desesperares,
Ou, enganado, não mentir ao mentiroso,
Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,
E não parecer bom demais, nem pretensioso;
Se és capaz de pensar – sem que a isso só te atires,
De sonhar – sem fazer dos sonhos teus senhores.
Se encontrando a desgraça e o triunfo conseguires
Tratar da mesma forma a esses dois impostores;
Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas
Em armadilhas as verdades que disseste,
E as coisas, por que deste a vida, estraçalhadas,
E refazê-las com o bem pouco que te reste;
Se és capaz de arriscar numa única parada
Tudo quanto ganhaste em toda a tua vida,
E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada,
Resignado, tornar ao ponto de partida;
De forçar coração, nervos, músculos, tudo
A dar seja o que for que neles ainda existe,
E a persistir assim quando, exaustos, contudo,
Resta a vontade em ti que ainda ordena: “Persiste!”
Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes
E, entre reis, não perder a naturalidade,
E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes,
Se a todos podes ser de alguma utilidade,
E se és capaz de dar, segundo por segundo,
Ao minuto fatal todo o valor e brilho,
Tua é a terra com tudo o que existe no mundo
E o que mais – tu serás um homem, ó meu filho!


Rudyard Kipling (tradução de Guilherme de Almeida)
https://www.youtube.com/watch?v=wbSzumecW5c