sábado, 11 de janeiro de 2020

Almirante Reis


Ponho-me a olhar a Avenida cá de cima, da minha água-furtada e meu refúgio, e digo-lhe, seu Apolinário: tudo isto levou uma grande volta. Antigamente vivia-se aqui como num céu aberto. Nem faz ideia. Onde isso vai, parece que não, os dias passam devagar, mas os anos vão-se depressa. A gente dá por isso quando não há remédio.
Foi nos começos da República, e eu, de calção, com os sapatos nas poças de chuva, travava os primeiros corpo a corpo com a gramática latina e o verbo Amar. A Avenida era então novinha em folha, como o regime. Começava lá em baixo, num boqueirão sinistro, um rio de lama onde às vezes havia inundações e gritos, entre ribanceiras e prédios esguios, e ia-se perder ao alto, nas quintas e azinhagas. As casas, modestas e limpinhas, tinham fachadas de azulejo de mau gosto, outras eram pintadas a cor. Havia as «terras», lotes vagos de barro viscoso onde a gente ia «reinar», e as carroças se atolavam até aos eixos, com muitas pragas dos carroceiros. As árvores eram frágeis e verdes, de mocidade e esperança. Que sossego o desses dias agitados! Isto não era Avenida, era a Rua do Lá-Vai-Um.

José Rodrigues Miguéis
https://www.youtube.com/watch?v=NiVmF4eMdTM

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