quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Sua Majestade a Rainha


Há nove anos que uma princesa de Orléans se casava em Lisboa com um príncipe de Bragança, e nunca brasões reais se conjugaram no armorial por efeito de mais íntimo e estreito laço de simpatia.
Em torno do problema monárquico tal é a incoerência dos princípios, a tergiversão das opiniões, a inconsistência moral dos argumentos, a bronca rudeza dos processos e a turva confusão da cabala, que eu mesmo, velho e obscuro sociologista, não sei se não estarei aqui servindo uma facção pela simples circunstância de escrever um artigo!
Como a rainha D. Amélia tem sabido, com o mais completo êxito, manter ilesas as suas altas prerrogativas de esposa, de mãe e de princesa, pela modéstia do seu trato, pela simplicidade dos seus hábitos e pelo diligente e piedoso culto das tradições portuguesas!
A arte nacional não somente ela a tem servido, cultivando-a humilde e carinhosamente pela pintura, subsidiando artistas, instituindo prémios a operários estudiosos, mas ainda promovendo e sustentando pela sua generosa intervenção as grandes obras monumentais como as restaurações da Sé Velha e de Santa Cruz de Coimbra.
Da simplicidade dos seus hábitos darei um traço característico. Uma vez em Sintra às cinco horas do antigo terraço da Regaleira, tendo subido dos Pisões três senhoras que desmontavam de um passeio a cavalo, discutiu-se num grupo em que eu me achava, o corte inglês e o corte francês das amazonas...
Alguém lembrou-se de perguntar : - Onde é que foi feita a amazona da rainha? - E uma pessoa informada respondeu: - Fê-la a costureira dela, em Vila Viçosa.

Ramalho Ortigão, 1895
https://www.publico.pt/2015/10/01/culturaipsilon/noticia/retratos-de-familia-1709778

domingo, 11 de fevereiro de 2018

Caminho imperfeito


Não sou o meu corpo, não sou o meu nome, não sou esta idade, não sou o que tenho, não sou estas palavras, não sou o que dizem que sou, não sou o que penso que sou.
Não sou o meu corpo porque existo fora da minha pele, para além dela, transcendo-a delicadamente ou à bruta. Não sou o meu nome porque não sou apenas o meu nome. Não sou esta idade porque esta idade só existe agora - eu fui e serei. Não sou estas palavras porque eu não sou apenas palavras. Não sou o que dizem que sou porque aquilo que sou não se diz. Não sou o que penso que sou porque penso vagamente que sou mais do que consigo pensar. Essa ideia é demasiado vaga e eu sou concreto no mundo concreto, sou real no mundo real.
Sou um caminho.
Sou alguma coisa que vem de antes, que me foi entregue pelo meu pai. Também ele a recebeu. Foi-me entregue em palavras, no tom de voz que ainda sou capaz de ouvir, no silêncio, no olhar, na presença, no toque, no cheiro, no cuidado, na memória, no exemplo, em tudo o que o meu pai foi para mim - uma força que não fui capaz de reconhecer completamente no seu tempo, mas que se impregnava em tudo o que eu era e aprendia a ser.
Sou alguma coisa que avança.
Sou alguma coisa que continuará depois de mim, que entrego aos meus filhos. Quero muito que lhes traga valor, que lhes enobreça a experiência de estarem vivos. Tento entregar-lha em palavras - estas palavras escritas, a desejarem ser claras, como esperança, como uma manhã de claridade -, no meu amor - o melhor de mim - e em todas as minhas imperfeições - eu.
Sou este caminho.
Já vivi muito. Quando viajo na minha memória, tenho lugares incríveis onde ir. As ruas da minha aldeia são infinitas, caminho nelas para sempre. Vou da loja do senhor Heliodoro à carpintaria do meu pai, atravesso a terra inteira, digo bom dia a pessoas que já morreram...
Aonde quer que eu vá, levo tudo isto comigo.

José Luís Peixoto
(pintura de Graça de Morais)
https://www.youtube.com/watch?v=g8eoDdKAFv8&index=17&list=PLnUrHwXcADOsmZHXLZdRv5h6KlKtU5C7V