domingo, 31 de dezembro de 2017

Cantarolar pela rua

                                 

                                    Cantarolar pela rua   Assobiar
                                    de mãos nos bolsos como quem tem dez anos ou cinquenta
                                    Ter aberto um jornal que não se lê                       
                                    Interromper sem razão uma conversa
                                    Voltar ou não voltar e afinal voltar               
                                    Contagiar desta alegria toda até então submersa
                                    os que não sabem nada disto ou disto riem
                                    e só de ver sorrir assim também sorriem
                                    confusamente sem saber porquê

                                    isto é estar vivo é bom e não se explica
                                    nem inventa


                                    Mário Dionísio
                                    http://www.centromariodionisio.org/a_pintura_mariodionisio.php

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Os animais carnívoros


Dava pelo nome muito estrangeiro de Amor, era preciso chamá-lo sem voz - difundia uma colorida multiplicação de mãos, e aparecia depois todo nu escutando-se a si mesmo, e fazia de estátua durante um parque inteiro, de repente voltava-se e acontecera um crime, os jornais diziam, ele vinha em estado completo de fotografia embriagada, descobria-se sangue, a vítima caminhava com uma pêra na mão, a boca estava impressa na doçura intransponível da pêra, e depois já se não sabia o que fazer, ele era belo muito, daquela espécie de beleza repentina e urgente, inspirava a mais terrível acção do louvor, mas vinha comer às nossas mãos, e bastava que tivéssemos muito silêncio para isso, e então os dias cruzavam-se uns pelos outros e no meio habitava uma montanha intensa, e mais tarde às noites trocavam-se e no meio o que existia agora era uma plantação de espelhos, o Amor aparecia e desaparecia em todos eles, e tínhamos de ficar imóveis e sem compreender, porque ele era uma criança assassina e andava pela terra com as suas camisas brancas abertas, as suas camisas negras e vermelhas todas desabotoadas.

Herberto Helder
(pintura de Mário Cesariny de Vasconcelos)
https://www.youtube.com/watch?v=1slAcb1Wikk

sábado, 2 de dezembro de 2017

The Sixties



Na ressaca da visita à exposição “A Revista Aspen, 1965-1971”, na Culturgest:

Minimal, pós-minimal, conceptual, pós-conceptual, psicadelismo and so on. Que sei eu? Quase nada. O que aprendi? Muito pouco. “O que faz falta é agitar a malta o que faz falta…” (José Afonso, 1972)

E em Portugal como foram os anos 60?

Entram guizos chocas e capotes
e mantilhas pretas
entram espadas chifres e derrotes
e alguns poetas
entram bravos cravos e dichotes
porque tudo o mais
são tretas.


Fernando Tordo / Ary dos Santos, 1973

Stop! Essa canção não é da década de 60. Tão bonita que apetece cantar mas como diz o poema de Miguel Torga:

“Apetece cantar, mas ninguém canta.
Apetece chorar, mas ninguém chora.
Um fantasma levanta
A mão do medo sobre a nossa hora.”


Na verdade, a censura imposta pelo regime político pretendia manter-nos isolados, parados no tempo e, por isso, tentava impedir a divulgação de quase tudo o que se passava no estrangeiro, para nos proteger de más influências que pudessem gerar contestação.
Até aos anos 60, as artes e as letras em Portugal tinham a língua e a cultura francesas como referência. A partir dessa data assiste-se a uma mudança de paradigma. A cultura anglo-saxónica insinua-se e começa a ser muito apreciada e imitada pelos jovens. 
No campo da música, em Portugal, veja-se o caso do conjunto musical “Os Sheiks” que, além de interpretarem êxitos da música anglo-saxónica, cantavam a chamada música yé-yé. Estamos nos primórdios do rock português. O Quarteto 1111, formado por José Cid, era um projecto bastante arrojado e ficou célebre principalmente pela canção que começava: 

“ Depois de Álcácer-Quibir
El rei D. Sebastião
(oh, oh, oh…)

Perdeu-se num labirinto
Com seu cavalo real
(oh, oh, oh...)


De referir que o Festival de Vilar de Mouros, em 1971, o nosso Woodstock, contou com a participação de grandes nomes da música internacional, como Elton John, além de bandas e cantores nacionais, o que atraiu um grande número de jovens estrangeiros, muitos deles “hippies”. O facto de Vilar de Mouros se situar num local de difícil acesso, longe dos grandes centros urbanos, no meio da natureza, uma espécie de paraíso, acabou por contribuir para o ambiente especial que se criou, o encantamento de que falam todos os portugueses que estiveram presentes, porque nem em sonhos acreditavam que tal pudesse acontecer no nosso país! 

Eles não sabem que o sonho
É uma constante da vida
Tão concreta e definida
Como outra coisa qualquer 

 Manuel Freire / António Gedeão, 1969                                                                               (continua)

HN, 30/11/2017
(em homenagem ao Fernando a quem, por motivos óbvios, pertencia o cartaz acima reproduzido)
https://www.youtube.com/watch?v=y1tydtIldYU