segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Ria Formosa


O Verão é um lugar do espírito para onde as quatro estações do ano se encaminham sem cessar. Nesse lugar que fica fora do calendário, esperamos pelo rumor de um outro espaço que esteja fora do tempo. Assim sendo, quem conta como se passou o momento mais próximo do desejo de Verão, que vai na nossa alma? Quem quer contar? Estamos na varanda do Hotel Faro, e já agora eu posso dar início à embaraçosa conversa, não tenho nada a perder.
O meu dia de Verão mais próximo desse momento revelador poderia ser outro, mas diante da ria Formosa, escondida no escuro da noite, só pode ser aquele em que subi a um cataramã com 12 pessoas, e fomos de esteiro em esteiro, e de sapal em sapal, até atingirmos a ilha do Farol. Assim, invoquei o melhor que pude o voo das aves, o cheiro a lodo, o borbulhar das espécies bivalves, e, depois de me desembaraçar desse campo de fertilidade, ataquei a descrição da Deserta, quando o Estaminé ainda estava em construção, e já então parecia o cenário ideal onde rodar um filme que se chamasse "Destino".
Mas outras narrativas iriam ser diferentes. Até que certa pessoa se levantou no meio da varanda e disse que o seu momento precioso tinha ocorrido em Veneza. Fora durante um simpósio sobre os espaços húmidos da Terra, a maternidade das espécies. O especialista disse que havia sido o Verão mais feliz da sua vida porque tinha defendido que certas formações lacustres, como a ria Formosa, deveriam ser vedadas à espécie humana e um terço dos seus colegas havia-o compreendido. Pois que direito tinham as pessoas de estragar o  ambiente dos pássaros? Que direito temos de destruir o cavalo-marinho, o pobre dizimado? Aquele que deveria ser para Portugal o que a flor Edelweiss é para os Alpes? Que direito o de impedir a oxigenação das águas pela atracagem dos barcos, que direito o de conspurcarmos o seu habitat? Que direito teríamos nós de entrar na maternidade das espécies para destruirmos os seus úteros e os seus berços? Disse que, se acaso Cousteau regressasse às pradarias aquáticas da ria, não as reconheceria. Pensaria que uma guerra cósmica havia acontecido no fundo dos lagos.
Fez-se um enorme silêncio. Era de noite, a hora da verdade. Não acredito que tenhamos nascido unidos para viver separados. Em vez de me proibirem o acesso, expliquem-me como e por onde entrar.


Lídia Jorge (texto com supressões)
http://www.youtube.com/watch?v=dnCC0dMNUvE

domingo, 18 de agosto de 2013

Encontro com um Deus instântaneo


Chovia docemente sobre a erva brava coberta de papoilas. Era o fim de uma trovoada de Maio sobre aquela relva dourada, coberta de papoilas, onde em tempos idos se ergueram as ruínas da Comuna.
Mas o que Sálvio procurava na fibrilação da relva não eram esses idos heróicos mas o rosto de Deus.
Em vão buscara de noite tantas vezes, entre o sonho e a vigília, que ele lhe desse um sinal da sua presença.
Talvez não tivesse forma concreta nem voz audível.
Talvez vagasse no céu nuvioso entre a luz e a sombra.
E eis que, de repente, a folhagem das árvores começou a abanar, um vento inconcreto sacudiu a terra e sobre a pávida planície desceu um vulto gigantesco, sem forma definida, e Sálvio ouviu - ou teria enlouquecido? - um terrível grito:
- Sentes-me agora dentro de ti?
Sálvio nada sentiu senão medo, os seus dentes castanholando.
O Senhor Deus, ou o que quer que fosse, riu com estrépito e, tal como surgira, inopinadamente, desapareceu, num estrondo arrepiante.
E Sálvio descansou.

Urbano Tavares Rodrigues
http://www.youtube.com/watch?v=YEdehAN2l2E

sábado, 10 de agosto de 2013

Pequena Artista


Vinte e um meses incompletos
As habilidades sucedem-se
Naturalmente:
andar à roda, de joelhos,
em bicos dos pés ou de pernas afastadas,
fazer a ponte ou dar cambalhotas.

Danças de braços no ar
Baloiçando-te ao ritmo da música
com verdadeiro prazer.
Cantas, ou melhor, dás concertos de jazz
Interpretando a canção do bebé
ou da mamã e do papá
com voz tão doce e envolvente.

Mas o máximo foi quando
pegaste num livro e começaste a  ler
alto e com entoação perfeita:
bebubibobubububibibibi.

HN
http://www.youtube.com/watch?v=PslouhmA1CE


domingo, 4 de agosto de 2013

Poesia


Ai deixa, deixa lá que a Poesia
no perfume das flores, no quebrar
das ondas pela praia,
na alegria
das crianças que riem sem porquê
- deixa lá que se exprima, a Poesia.

Fica sentado aí onde estás, Poeta,
e não mexas os lábios nem os braços:
deixa-a viver em si;
não tentes segurá-la nos teus braços,
não pretendas vesti-la com palavras.

Se a queres ter,
se a queres sempre ver pairando à flor das coisas, fica aí
no teu cantinho, e nem respires, Poeta, e não te bulas,
para que ela não dê por ti.

Não a faças fugir, toda assustada
com a tua presença...
Deixa-a, nua, pairando à flor das coisas,
que ela não sabe que a viste,
nem sabe que está nua,
nem sequer sabe que existe...

Sebastião da Gama
http://www.youtube.com/watch?v=4240QMQ1jhU