terça-feira, 23 de abril de 2024

Jograis aos 50 anos do 25 de Abril

Maio de 68, Paris. Tudo começa com os estudantes que ocupam as faculdades e as ruas de alguns bairros de Paris. Exigem a reforma do ensino, contestam todo o tipo de preconceitos e autoritarismos. É o tempo do “É proibido proibir”. Os trabalhadores aderem à revolta, o país paralisa. A França treme.

Por cá, em 1969, os estudantes de Coimbra em greve resistiram durante bastante tempo à chantagem e perseguição das autoridades que, através da censura, controlavam toda a informação.

Apesar de algumas proibições, ouviam-se muito as baladas e canções de intervenção. Por isso através delas podemos reviver todo o processo do 25 de Abril.

“ O que faz falta é agitar a malta/ o que faz falta…” cantava José Afonso.

Do exílio Manuel Alegre escreve e Adriano Correia de Oliveira interpreta: “Pergunto ao vento que passa /Notícias do meu país… Mesmo na noite mais triste/Em tempo de servidão/Há sempre alguém que resiste/Há sempre alguém que diz não.

Vários cantores criticam a guerra colonial cantando: “Menina dos olhos tristes/o que tanto a faz chorar/o soldadinho não volta do outro lado do mar.”

A PIDE perseguia, prendia e muitas vezes torturava os opositores ao regime. A canção “Vampiros” de José Afonso lembra essa realidade: “No céu cinzento sob o astro mudo/ Batendo as asas pela noite calada/Vêm em bandos com pés veludo/Chupar o sangue fresco da manada… Eles comem tudo/e não deixam nada.”

Mas nunca se perdeu a esperança, diz o poema de António Gedeão e canta Manuel Freire: “Eles não sabem nem sonham /que o sonho comanda a vida…”

Em 1971, nos álbuns de José Mário Branco “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” e de Sérgio Godinho “ Sobreviventes” pressente-se a revolução. Sérgio canta: ”Aprende a nadar companheiro/que a maré se vai levantar/que a liberdade está a passar por aqui…”

E finalmente a revolução, o 25 de Abril de 1974:

“Esta é a madrugada que eu esperava/O dia inicial inteiro e limpo/Onde emergimos da noite e do silêncio/ E livres habitamos a substância do tempo” (Sophia de Mello Breyner Andresen)

Foi inesquecível. O povo saiu à rua para saudar a revolução ao som de “Grândola Vila Morena”, de cravo na mão. “A poesia está na rua” lia-se num cartaz de M. H. Vieira da Silva. Agora os portugueses já podem reunir-se e participar em manifestações. “O povo unido jamais será vencido” grita-se.

E todos cantávamos com Sérgio Godinho:

“Ai, só há liberdade a sério/Quando houver/A paz, o pão/Habitação, saúde e educação…”

Pois… 50 anos depois esta canção continua actual!


HN

https://www.youtube.com/watch?v=ohV3KeGOnTw

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Em diálogo com "As mulheres do meu país"



Entre 1947 e 1949, a escritora e jornalista Maria Lamas percorreu o país, indo a várias localidades de norte a sul e visitando as ilhas, para retratar as mulheres portuguesas. 
 
Maria Lamas viaja para denunciar a falta de condições de vida. Escreve sobre pobreza, fome, maus-tratos. Excesso de trabalho. Analfabetismo. Ignorância. Isolamento. Mas também escreve - com satisfação e algum choque - sobre música, o riso, a vitalidade que encontra por todo o lado, mesmo durante as estações mais frias e nos lugares mais escuros do país. 
Grande parte das mulheres sobre as quais escreve são raparigas e aqueles anos de juventude são o tempo mais alegre da vida delas.
Seja qual for o país.

Nas aldeias havia sempre festas, em muitas delas havia bandas de música e também se fazia teatro amador. 
A aldeia da minha avó era uma dessas aldeias e o meu bisavô um desses dinamizadores culturais que se tornavam importantes nas pequenas terras. Para além de tocar música, ele montava peças de teatro em que a minha avó e o meu avô acabavam por participar.
Embora raramente a minha avó falasse desse passado com saudade - ao contrário da vida com os filhos a crescer em Luanda mais tarde - , ela devia ter saudade. Havia nela e nos seus silêncios - na sua calma interior que ninguém na família herdou - uma melancolia que só podia vir desses tempos de juventude.

Maria Lamas conta que no momento em que as raparigas casam, felizes, sabendo que finalmente vão sair da casa de pais que as prendem para começar uma vida delas, não podem saber como é o marido. Se ele é dos que batem, não o descobrem com surpresa. Constata que as próprias mulheres culpam as mulheres  sujeitas a essa violência, assim como se acreditassem estar a salvo. Como se dependesse realmente delas salvarem-se de homens violentos.
Também escreve sobre o conceito de "virtude feminina", e fá-lo com o mesmo tom que usa para descrever alguns trajes ou certos costumes supersticiosos: denotando esperança de que em breve seja algo anacrónico.

Escrevendo tanto sobre a vida dentro de casa, contando como as pessoas dormem (vários numa cama e alguns filhos com animais), como as crianças comem (alimentando-se das mães mesmo quando as mães mal se alimentam e se fortificam com vinho), como os bebés nascem em quartos pequenos com gente aos gritos, mulheres que insultam os maridos e põem roupas de homem para parir, falando de outros hábitos quase bárbaros, referindo doenças que advêm da promiscuidade dos maridos, nunca se fala sobre sexo. Nunca se pergunta sobre sexo. Sob nenhum ponto de vista: nem da obrigação dele, quando os maridos estavam em casa, nem da falta dele, quando os maridos se ausentavam às vezes durante tanto tempo.

 Susana Moreira Marques

Pinturas de José Malhoa

https://www.youtube.com/watch?v=OL5sBSaT7P0


domingo, 31 de março de 2024

As mulheres da seca do bacalhau

 



A seca do bacalhau na Gafanha emprega muitas centenas de mulheres, durante parte do ano, havendo secas onde o trabalho é permanente, porque abrange duas campanhas, a dos lugres e a dos arrastões.

Na referência a esta actividade feminina focaremos em especial a Gafanha, visto ser ali que ela atinge o maior desenvolvimento, como é também ali que existem as mais importantes secas do bacalhau de todo o País.

Pelos costumes e ambiente em que vivem e ainda porque tanto se entregam à lavoura como à faina da seca ou qualquer outra que se lhes proporcione, elas conservam, sob certos aspectos, a mentalidade da mulher do campo; mas a disciplina das tarefas realizadas em comum ou distribuídas numa coordenação de actividades, o sentido das responsabilidade, os horários fixos e ainda o contacto com outras realidades directamente ligadas ao seu próprio esforço vão-lhes dando uma noção diferente da vida e criando consciência da importância do seu labor.

Não se imagine, porém, que as mulheres do povo, naquelas circunstâncias, têm uma vida mais leve e fácil, em relação às suas irmãs que permanecem em contacto permanente com a terra. Com muito poucas excepções, elas fazem longos percursos, de manhã e à tarde, porque moram longe do local onde trabalham. Também, de uma forma geral, todas aproveitam algumas horas que lhes fiquem livres para ajudar na modesta faina agrícola da família, seja regar o milho, ir ao mato e à lenha ou tratar dos animais.

A sua vantagem não está no aligeiramento das tarefas, mas sim na mudança do ambiente, na variedade dos assuntos que lhes prendem a atenção e no convívio com as companheiras.

As mulheres das secas do bacalhau são desembaraçadas, faladoras e alegres, como se a vida lhes não pesasse. Em conjunto, nas horas de plena actividade, cantando em coro ou simplesmente escutando os programas de rádio, que um amplificador de som leva a todos os recantos das instalações onde trabalham [EPA – Empresa de Pesca de Aveiro], elas constituem um quadro pleno de vitalidade e optimismo.

É árduo o trabalho destas mulheres, desde descarregar, lavar, salgar e levar o bacalhau, todos os dias, para as “mesas” da seca, para depois, mais tarde, empilhar, seleccionar e enfardar. Nenhuma tarefa as faz recuar. São, quase todas, mulheres de pescadores de bacalhau ou de operários, e elas próprias trabalham no que se lhes proporciona, quando não é preciso sachar o milho ou colher a batata, muito abundante ali. A sua existência passa-se em permanentes fadigas e sobressaltos. Usam uma linguagem desabrida, que chega a ser chocante, porque se habituaram a encarar a vida e as pessoas de forma hostil, à força de lutar e sofrer de muitos modos. Tudo se resume, porém, a um desabafo, tão natural, para elas, como respirar, rir ou falar. Bravas mulheres, as da Gafanha!

 

Maria Lamas,  in "As mulheres do meu país"  (texto com supressões)

https://vimeo.com/271322795



sábado, 9 de março de 2024

Carolina Beatriz Ângelo

Carolina Beatriz Ângelo

Carolina Beatriz Ângelo (à direita) com  Ana de Castro Osório, em São Jorge de Arroios onde votou



Carolina Beatriz Ângelo (Guarda, São Vicente, 16 de abril de 1878 — Lisboa, 3 de outubro de 1911) foi uma médica e feminista portuguesa. Ficou famosa por ter sido a primeira mulher cirurgiã e a primeira mulher a votar em Portugal, por ocasião das eleições da Assembleia Constituinte, em 1911.

O facto de ser viúva e de sustentar a sua filha Maria Emília Ângelo Barreto (1903-1981), permitiu-lhe invocar em tribunal o direito de ser considerada «chefe de família», tornando-se assim a primeira mulher a votar no país, nas eleições constituintes, a 28 de maio de 1911. Por forma a evitar que tal exemplo pudesse ser repetido, a lei do código eleitoral português foi alterada no ano seguinte, com a especificação de que apenas os chefes de família do sexo masculino poderiam exercer o seu direito de voto.

A sua militância em organizações defensoras dos direitos das mulheres iniciou-se em 1906 no comité português da agremiação francesa La Paix et le Désarmement par les Femmes,  seguindo-se em 1907, a sua participação no Grupo Português de Estudos Feministas, conduzido por Ana de Castro Osório, e na Maçonaria, na Loja Humanidade, sob o nome simbólico de Lígia.

Em 1909, fez parte do grupo de mulheres que fundou a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas (LRMP), defensora dos ideais republicanos, do sufrágio feminino, do direito ao divórcio, da instrução das crianças e de direitos e deveres igualitários para homens e mulheres

A 5 de outubro de 1910, dá-se a Implantação da República, tendo Carolina Beatriz Ângelo e Adelaide Cabete sido as responsáveis pela confecção secreta das bandeiras vermelhas e verdes, simbolizando a bem sucedida revolução. 

Logo após, esteve envolvida na fundação da Associação de Propaganda Feminista (APF). Esta associação, que chegou a dirigir, teve origem na cisão da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas por questões relacionadas com o sufrágio feminino. No âmbito da Associação de Propaganda Feminista projectou a criação de uma escola de enfermeiras, o que é referido como mais uma manifestação da sua preocupação com a emancipação das mulher. 

Experiências e Evidências

Nancy Roman fotografada em 2017 com a figura de Lego criada em sua homenagem

Nancy Grace Roman (1925-2018) é considerada a mãe do telescópio espacial Hubble.
O Hubble foi o primeiro telescópio óptico de grande escala em órbita no espaço. Nancy teve um papel essencial sobretudo no início do projeto, e como cientista-chefe da empreitada, coordenou os trabalhos dos astrónomos e engenheiros espaciais envolvidos.
O Hubble entrou em órbita em abril de 1990, e nos anos seguintes expandiu massivamente o conhecimento que nós, humanos, temos do Universo. Conforme explica artigo do NY Times, o Hubble “aumentou a compreensão acerca de galáxias distantes e de planetas do nosso próprio sistema solar ao transmitir imagens que chegariam distorcidas caso houvessem sido obtidas através de equipamentos operados na atmosfera terrestre”.




EXPERIÊNCIAS E EVIDÊNCIAS

Quando eu era menina,

fazíamos na escola uma experiência

com dois ímanes

e uma folha de papel

 

Era uma dança estranha

e fascinante,

a do íman pousado no papel

obedecendo ao outro, o encoberto,

um hércules de força

misteriosa

 

Durante muito tempo

acreditei

que o magnetismo era uma coisa

de homens sábios, aquele papagaio

de Benjamin Franklin ficou-me na memória:

o papagaio voando,

e de entre as nuvens, o relâmpago

e a promessa de aprisionar a luz

 

Eu não sabia então que só há poucos anos

pôde a primeira mulher

usar um telescópio de excelência,

provar a existência da matéria negra

na beleza do movimento angular

das galáxias

 

O interior da História

repelido por séculos,

o corpo em negativo de tantas antes dela:

um grão de areia

de encontro ao negativo do deserto

– durante tantos séculos

 

E contudo, moveram-se,

uma dança de carga positiva voando

no papel, como invisível é a maior parte

da matéria, mas existe

 

(Está mais do que

provado)


Ana Luísa Amaral


domingo, 25 de fevereiro de 2024

Armazém



Quando mudei de casa
Descobri imensas coisas para as quais não tinha
espaço. O que se faz numa situação destas? Aluguei
um armazém. Enchi-o. Passaram-se anos.
De quando em vez, visitava-o, observava as minhas coisas,
mas nada acontecia, nem uma só
pontada no coração sentia.
À medida que fui envelhecendo, as coisas que realmente gostava
foram diminuindo, mas crescendo
em importância. Então, um dia abri o cadeado
e chamei o homem do ferro-velho. Ele
levou tudo o que lá estava.
Senti-me como um pequeno burrito, quando
o libertam do seu fardo. Coisas!
Queima-as! Queima-as! Faz uma maravilhosa
fogueira! Mais espaço fica no teu coração para o amor,
para as árvores! Para os pássaros, que nada
possuem – a razão de poderem voar.

Mary Oliver (versão de Pedro Belo Claro)
Pintura de Miró

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Fado do Alentejo



Alentejo, ai solidão
Solidão, ai Alentejo
Oceano de ondas de oiro
Tinha um tesoiro perdido
Nos teus ermos escondido
Vim achar o meu tesoiro

Alentejo, ai solidão
Solidão, ai Alentejo
Convento de céu aberto
Nos teus claustros me fiz monge
Perdeu-se-me a terra ao longe
Chegou-se-me o céu mais perto

Alentejo, ai solidão
Solidão, ai Alentejo
Padre-nosso de infelizes
Vim coberto de cadeias
Mas estas com que me enleias
Deram-me asas e raízes

José Régio
Pinturas de Henrique Pousão

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

A Serra de Ossa e o seu Convento










A menos de meia encosta da montanha eleva-se o convento de S. Paulo, virando para o Redondo em meio de uma densa mancha de verdura - vasto olivedo, laranjal farto, sobreiral, eucaliptal, ubérrimas terras de trigo. Era este convento o solar da Congregação dos Monges de Jesus Cristo da Pobre Vida. Só nos princípios do séc. XV foi esta Congregação aprovada por Gregório XII, mas desde remotos tempos devia existir, para que os seus cronistas, piedosamente exagerando, fizessem remontar ao monge Fernão de Anes, ex-cavaleiro de D. Afonso Henriques, a primeira organização do cenóbio, e a tempos muito anteriores (poucos anos depois da morte de Cristo!) a retirada para as grutas da serra dos primeiros convertidos de S. Manços. Diz ainda a tradição que foram aqui martirizados pelos mouros, a 11 de Março de 715, S. Francisco, S. Ascêncio, S. Teodofredo e S. Fiónio.
O actual convento, que fica num dos sítios mais aprazíveis da serra, foi fundado no tempo de D. João I e reconstruído nos finais do séc.XVIII. D. Sebastião, antes da expedição de África, aqui veio fazer as suas devoções. Em 1699 visitou o mosteiro a Rainha de Inglaterra D. Catarina de Bragança. E foi para aqui também que vieram desterrados, no tempo do Marquês de Pombal, os meninos de Palhavã.
Quase inteiramente salvo da ruína, o convento é hoje uma magnífica vivenda burguesa*. Amplas escadarias de mármore de Estremoz, amplos corredores por onde se desdobra, em azulejos seiscentistas,  o filme da lenda judaica ou cristã. 

*Actualmente funciona como hotel/museu gerido por uma Fundação criada pelos proprietários, família Leote, com o objectivo de dar a conhecer este património e de continuar a investir na sua restauração. 

Hernani Cidade (1887-1975)

https://www.youtube.com/watch?v=v9VCvWshqYo


domingo, 4 de fevereiro de 2024

Aveiro e a epopeia da Ria

À esquerda, o Rossio, antes da intervenção


O Rossio, depois das obras realizadas (inauguração em Janeiro de 2024), ficou dotado de um parque de estacionamento subterrâneo.  Em primeiro plano vêem-se as ruínas da capela de S. João.


A capela de S.João demolida em 1910

A Ria, e Aveiro, seu centro urbano, são a parte mais nova da terra humanizada de Portugal. Região adolescente, sem as rugas fundas do passado, dela pode afirmar-se que não teve pré-história. O mais antigo documento que se lhe refere é o testamento da condessa Mumadona que, em 959, legava ao Mosteiro de Guimarães as terras e salinas de alavario, assim como as de alcarobim. Que nesta data existissem salinas em Alquerubim, hoje a muitos quilómetros do mar, revela, só por si, que o Vouga era de barra aberta, longe de alavario, e que, por consequência, ainda se não haviam debuxado os cordões litorais que mais tarde formaram a Ria e cortaram as terras de aluvião com a anastomose dos canais.
Tem-se comparado Aveiro e Veneza. Comparação pretensiosa e vã. Nada ali corresponde à sumptuosa cidade do Adriático (...)
Mas a verdade é que Aveiro tem a sua beleza original, o seu carácter próprio e um sentido profundo de criação humana, única e heróica.
E ainda que, sob o ponto de vista de arte, Aveiro seja a capital do barroco, o que define e distingue a cidade e o seu distrito é, acima de tudo, a Ria e a sua paisagem, ora desordenada, ora simetricamente humanizada.


O espectáculo que oferecem as labutas marítimas e campestres do dia a dia na água ou nas margens da laguna, empolga como um dos mais poderosos e fecundos esforços de criação de tipos culturais realizados pelo povo português. Às águas afluem ou delas refluem para a cidade, sístole e diástole do imenso coração da Ria, os varinos de burel sombrio, os barqueiros, pescadores e marnotos, de camisas e manaias brancas, ou, de mistura com os mercantéis, as salineiras e peixeiras da praça e rua, com os chambres e lenços de variegadas cores. Na ria as pesadas barcas saleiras, carregadas de sal, os esguichos de transporte em longa meia-lua, as caçadeiras leves ou as finas bateiras dos mercantéis que trazem o pescado, os barcos moliceiros de proa recurva e de painéis policromados ou os navios bacalhoeiros que vão à Terra Nova e à Gronelândia, afirmam, um a um, seu género de vida, sua técnica e seu tipo humano diferente.

Salinas de Aveiro

Ao lado e pelas margens, os barqueiros-lavradores transportando sempre, de canal em canal, o moliço fertilizante, e cujos barcos, em Agosto, parecem navegar por terra, entre os pendões de milho, transformaram durante séculos, com teimoso esforço, os imensos e estéreis areais em campinas verdejantes e ergueram das gafanhas, que outrora serviram de vazadouro de leprosos, dezenas de povoações ridentes. Essa epopeia, a meio dos ventos carregados de humidade atlântica e da areia das dunas, ombreia, pelas condições rudes do trabalho, com a dos homens que construíram os socalcos do Douro e as calhadas da Beira Alta.

Jaime Cortesão (1884-1960)


segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Quadras a S. Gonçalo


S. Gonçalo de Amarante,

Casamenteiro das velhas,

Por que não casais as novas?

Que mal vos fizeram elas?!

 

São Gonçalo, bom prior...

De Amarante padroeiro,

Tem-no por Santo maior

A Beira-Mar de Aveiro!

 

Confrade, veste o Gabão...

São Gonçalo é teu patrono!

Ai de quem, na Beira Mar...

Não queira ser seu mordomo!

 

São Gonçalo bem que ensina:

Os novos não sejam tansos!

Hão-de aprender e sentir

A velha dança dos mancos!

 

Vinha povo, em mercanteI...

Ou ranchos, em moliceiro,

Com cavacas... no farnel...

Ao São Gonçalo... de Aveiro!

 

Lançar cavacas no adro...

Ia a "bondade" de Aveiro!

Vinha, ao Santo, o pescador

Matar a fome em Janeiro!

 

Cavaca, bom pão de inverno,

Quanta fome faz matar?!

A terra, em lama, um inferno...

E anda mau tempo no mar!

 

Guarda o pão que vem do alto...

Por ser duro e saboroso

Poderá matar as faltas

Num inverno rigoroso!

 

Da varanda da capela

Saltam cavacas à praça.

Quero eu apanhar dela

Duro pão doce de graça!

 

Em redor da capelinha

Corre o povo em desalinho...

Quem agarra mais cavacas?!

Valha-nos São Gonçalinho!

https://www.youtube.com/watch?v=lePoynUgEWk

domingo, 14 de janeiro de 2024

São Gonçalo Cagaréu


Aguarda-se em fila a vez para subir ao cimo da capela e lançar as cavacas

Guardo do Largo de São Gonçalinho, a forma tão carinhosa como as gentes da nossa Beira-Mar tratam São Gonçalo, recordações imorredoiras, daquelas que resistem a todos os acidentes de percurso. Morei lá na força da minha vida, com a minha mãe e os meus irmãos, no n.º 1 da Travessa de São Gonçalinho, um primeiro andar que dava, e felizmente ainda dá, para o largo que eu dominava por duas janelas de guilhotina. Lá estudava, noite adentro, lá pintava a roubar ao descanso, de lá partia para o meu trabalho de dia inteiro, e lá ainda descobria horas para dar explicações. 
Todos os moradores do Largo pareciam uma família, sempre com um espírito de entreajuda verdadeiramente excepcional. Era o espírito cagaréu a falar em pleno. Todos os vizinhos, nos dias da festa, colocavam guarda-chuvas abertos do lado de fora das janelas de primeiro andar, logo pela manhã. As minhas janelas eram as que estavam mais a jeito e os meus guarda-chuvas, ao fim do dia, estavam ajoujados de cavacas. À noite, sempre que o sino tocava, lá ia eu ver à janela o espectáculo das pessoas de todas as idades a correr atrás das cavacas que do alto da capela eram atiradas para o terreiro.
A família do lado do meu pai Manuel era toda da Beira Mar. A da minha mãe, da freguesia da Glória. Sou, pois, filho de uma simbiose difícil já que, quando o meu pai, homem da Ria e do Mar, começou a namorar a minha mãe, menina da freguesia “de lá de cima”, como se dizia então, sentiu alguma animosidade pela parte dos mancebos ceboleiros. Nesses tempos que já lá vão, dizem-me que chegava a haver cenas de pancadaria sempre que namoros semelhantes se esboçavam. Esta ambiência única que então se respirava na nossa Beira Mar marcou-me de forma profunda para todo o sempre. 
As pessoas da nossa terra e os seus hábitos mudaram muito. Confesso que tenho saudades do tempo em que se corria toda a Beira Mar sem ver uma única porta fechada à chave, tudo no trinco e fé em Deus, sem um único agente da autoridade a fiscalizar as ruas, porque tal era desnecessário e até insultuoso para os cagaréus.
O tempo passa mas essa fé em São Gonçalo só tem aumentado. Bem escreveu o saudoso poeta aveirense Amadeu de Sousa:

                                                Dos santos todos de Aveiro,

                                                 Desta terra, deste céu,

                                                 S. Gonçalinho é sem dúvida

                                                 O santo mais cagaréu.

São Gonçalo é bem um santo que os aveirenses foram construindo à sua medida, transformando-o em pessoa de família com quem todos se sentem à vontade e a dialogar.
Há quem diga, pela devassa da História, que o Santo nunca terá existido… E até há quem se pergunte se “São Gonçalo não terá sido uma invenção posta ao serviço de uma qualquer ideia ou propósito”. …É com estas palavras que o padre Amaro Gonçalves se questiona sobre o assunto.. Mas facto é que existe um testamento de uma tal Maria Johannis, datado de 18 de Maio de 1279, legando os seus bens à Igreja de São Gonçalo de Amarante. Supõe-se que o santo terá morrido a 10 de Janeiro de 1259, portanto vinte anos antes desse legado à Igreja de seu nome. Segundo o Flos Sanctorum de 1513, Gundisalvus, ou Gonçalo, “nasceu em Tagilde, estudou rudimentos com um devoto sacerdote e frequentou depois a escola arqui-episcopal de Braga. Ordenado sacerdote foi nomeado pároco de São Paio de Vizela. Depois foi a Roma e Jerusalém; no seu regresso, vendo-se desapossado do seu benefício, prosseguiu um caminho de busca interior já anteriormente encetado; depois foi a experiência da vida eremítica, a pregação popular…, e logo caiu na ambiência mendicante da época, após o que se faria dominicano”.
No dia 10 de Janeiro, entre os anos de 1682 e 1687, o nosso grande jesuíta Padre António Vieira, na cidade brasileira de Bahía, proferiu um brilhante sermão, belíssimo panegírico seiscentista, de recorte barroco, ao nosso São Gonçalo. O brilhante orador, sempre agarrado à sua fluência expositiva, refere alguns dos milagres do Santo. O do pão que faz converter em carvão e voltar à alvura primitiva. O do amansar de uns touros bravos, como se tivessem ensino de muitos anos. O dos cardumes de peixe que saltavam aos pés do santo consoante sua ordem. O da água e do vinho que brotavam de fontes que ele fez surgir nas pedras da ponte amarantina em construção, para apagar a sede dos trabalhadores e lhes dar alegria na sua lide. E de tantos, tantos outros que mantêm incólume., ainda hoje, a sua fama de santo milagreiro.
Desses milagres eu já tinha notícia, por leituras, quando vivi na Travessa de São Gonçalinho.
Mas do seu espírito vingativo, foi lá que, à boca pequena, fui sabendo de algumas histórias de castigos dados pelo Santo a quem se atrevesse a desfeiteá-lo.
Como a queda do Cajica quando estava empoleirado num escadote a pintar a capela e que, chegado ao pé da imagem, lhe pôs uma “purisca” nos lábios, invectivando-o:”Tu não fumas estipor?”.
Ou a cena do Mestre Zé que se viu aflito a sair a Barra de Aveiro com a sua embarcação, só por se ter recusado a dar esmola ao Santo.
Ou ainda o roubo do relógio do Luís Pierres, em pleno arraial, por igual recusa de esmola. E muitas mais. 
Mas nunca consegui, nos anos sessenta, ao contrário do que hoje acontece, ter uma descrição cuidada da célebre “dança dos mancos” que se fazia, que se fez sempre, no maior dos segredos, pela noite dentro, na capela de portas trancadas. Pessoas que eu sabia serem mordomos da festa e, portanto, zeladores da capela, nela pernoitando para, afirmavam, tomar conta das pratas que eram emprestadas para decorar os altares, indagados sobre a “dança”, não tugiam nem mugiam. Uma vez pus o problema ao senhor Prior que me disse que “isso” tinha sido proibido pelo senhor Bispo, para garantir o decoro na capela. Mas que o espírito brejeiro das gentes da Beira Mar nunca deixou morrer a “dança dos mancos”, com proibição ou sem proibição, isso para mim, hoje, não me deixa dúvidas.
Nunca assisti a uma dessas danças dentro da capela. Mas já assisti a réplicas executadas por ex-mordomos e, efectivamente, vê-los a dançar com as suas macaquices e ouvi-los cantar as suas versalhadas marotas é de morrer a rir.
Aliás, esta associação de São Gonçalo a estas danças não é só verificável em Aveiro. Com a mesma natureza brejeira, as danças e bailes de São Gonçalo aparecem sempre por toda a parte onde há festejos em sua honra.
O que é certo é que da fama de folião e casamenteiro o Santo se não livra nos dois lados do Atlântico.
Num lado e noutro, São Gonçalo é especialista em casar solteironas:

                                               São Gonçalo d’Amarante,

                                                Casamenteiro das velhas;

                                                Por que não casas as novas,

                                                Que mal te fizeram elas?

Num lado e noutro, São Gonçalo aparece-nos associado a uma saudável folia…
Eu disse que os tempos mudaram muito a minha Beira Mar, desde que eu a comecei a conhecer. Sem dúvida que sim. Então, a economia do Bairro assentava na pesca do mar e do rio; no amanho das marinhas de sal; na apanha do moliço que continuava a converter as areias estéreis em úberes terras de pão; em alguma construção naval; no tráfego dos mercantéis que transportavam materiais de construção e alimentos para todas as motas da Ria onde as populações se ancoravam em pequenos povoados. E para todas estas actividades o povo cagaréu solicitava a protecção do nosso Santo. São Gonçalinho até foi nome de arrastão do bacalhau, levando a fé que nele depositavam os armadores e os pescadores da nossa praça até aos mares da Terra Nova, da Gronelândia, da Noruega...
Hoje, as pessoas da Beira Mar já não assentam as suas vidas nesse tipo de actividades, por sua natureza tão aleatórias. Mas a verdade é que o Bairro continua a ter características únicas que lhe conferem uma identidade inconfundível. E tudo continuando à volta do Santo Cagaréu. 
É certo que já não posso ir à casa dos meus avós paternos comer da bacia a caldeirada que o meu avô Ti Luís Manco cozinhava em banho-maria na panela de três pés, no borralho da lareira da cozinha de terra batida, coberta de junco.
É certo tudo isso…
 Mas também é verdade que os festejos de São Gonçalinho se continuam a fazer todos os anos. Que as cavacas atiradas da Capela são objecto de reportagens fotográficas e televisivas. Que a Confraria de São Gonçalo, arregimentada pelo Confrade-Mor Carlos Souto, continua a manter acesa a chama de um saudável aveirismo que Eduardo Cerqueira pregou e que Amadeu de Sousa cantou nos seu versos, defendendo as nossas tradições, sempre assentes na nossa tradicional tolerância e no mais escrupuloso respeito pela liberdade.

Cheira-me, depois disto tudo, que o maior milagre que o nosso São Gonçalinho de Aveiro nos fez foi o de ter eliminado as pontes que, tempos idos, separavam os ceboleiros dos cagaréus, permitindo que, com as nossas diferenças, saibamos fazer maior o amor que todos sentimos por esta terra que nos viu nascer ou quisemos fazer nossa.

 Gaspar Albino (texto com supressões), 25 de Novembro de 2006

https://www.youtube.com/watch?v=hbrU28gX2oQ


 

domingo, 7 de janeiro de 2024

Desabafos de dois artistas

Pintura de Menez       





Pintura de Júlio Pomar




      CARTA DE POMAR  (01/11/1079)

Querida Menez

Disse-me a Paula que estavas a pintar muito e fiquei tão contente! 
Penso em ti muitas vezes e se não escrevi já, não foi por preguiça, foi por não saber: há coisas que a gente não sabe como dizer. 
Depois, tenho andado ou nem tanto com a borda debaixo de água (em recordações do meu avozinho marinheiro!). Não faças caso, de vez quando dá-me isso, como a toda a gente. E como a toda a gente, passa. Tenho estado a pintar muito devagar. Desde que vim só terminei um quadro, vê lá! e não gosto dele. Passo que tempo a pintar um bocadinho e depois destruo tudo.
Estou na fase de fazer num quadro muitos quadros uns em cima dos outros. O que não seria desastre se não houvesse assim compromisso de exposição a curto prazo. Se calhar é por isso mesmo, detesto datas e compromissos.
 

      CARTA DE POMAR (sem data)

Querida Menez, como eu percebo o teu sos zinho. Sozinhos estamos por condição que não escolhemos (ou talvez tivéssemos escolhido?) e a vontade de mandar um grande SOS por ares e ventos agarra-nos quanta vez pela garganta e ficamos pendurados dela, ele não há quem entenda. Entende-se a gente, mesmo que seja só pela metade (que mania da proporção!) pela via (reduzida?) destas escritas que os aviões ainda demoram mais; espero bem que quando esta carta chegar já tenhas recuperado (...)


      CARTA DE MENEZ (sem data)

Querido Pomar

Estou tão aflita porque não consigo acabar uma tela que seja - vou até certa altura e depois quando é preciso escolher mesmo não sou capaz, estrago tudo e lá fica outra tela inutilizada. Estive aqui dias seguidos (depois daquele domingo em que estive a pintar todo o dia e que pela primeira vez as coisas iam acontecendo bem e que me deu uma verdadeira vontade de pintar) muitas horas e dias agarrada a uma tela grande que teve vários caminhos, todos eles poderiam ir ter aonde eu queria mas todos eles obfusquei por falta dos souffles vitaux et manquer le souffle pour un peintre c'est le signe même d'un peintre médiocre. Estou aterrada, porque se não consigo pintar preferia deixar de existir.
O estado que é preciso para pintar (para mim) feito de coisas contraditórias: saber conter-se e tactear com cuidado e ao mesmo tempo ser espontâneo e pensar sem pensar, arriscar-se, mas dentro dum ritmo que abrange a contenção no mesmo vaivém que acontece com a tela: parte do quadro vem de lá, parte vem de nós ou nós somos o instrumento através do qual ele se vai fazendo - se eu não estou límpida, avec le coeur pur e como que com toda a minha alma levantada como os crentes em frente de Deus, mas se estou como agora... não vale a pena dizer como é mas é como se tivesse um peso tão grande no coração, na alma, nos sentidos, na imaginação que não consegue apanhar os souffles vitaux (...)
As pessoas não fazem ideia da coisa esquisita que é pintar, como é uma coisa íntima (a mais íntima de todas), como está ligada à nossa vida, mas não da maneira que eles pensam - é muito mais tortuosa essa ligação, mais clara e obscura ao mesmo tempo. Não se pintam as emoções, os sentimentos mas essas emoções e sentimentos servem de detonador ou de "energicador" para a partida como é preciso vento para as nuvens correrem depressa no céu - "exprimir-se a si próprio", "realizar-se" obscenas expressões e quanto erradas, o que mais é verdade é a tentativa de se chegar aos"segredos do universo" de os revelar (...)





terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Ítaca



Quando partires de regresso a Ítaca,

deves orar por uma viagem longa,

plena de aventuras e de experiências.

Ciclopes, Lestregónios, e mais monstros,

um Poseidon irado – não os temas,

jamais encontrarás tais coisas no caminho,

se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime

teu corpo toca e o espírito te habita.

Ciclopes, Lestregónios, e outros monstros,

Poseidon em fúria – nunca encontrarás,

se não é na tua alma que os transportes,

ou ela os não erguer perante ti.

 

Deves orar por uma viagem longa.

Que sejam muitas as manhãs de Verão,

quando, com que prazer, com que deleite,

entrares em portos jamais antes vistos!

Em colónias fenícias deverás deter-te

para comprar mercadorias raras:

coral e madrepérola, âmbar e marfim,

e perfumes subtis de toda a espécie:

compra desses perfumes quanto possas.

E vai ver as cidades do Egipto,

para aprenderes com os que sabem muito.

 

Terás sempre Ítaca no teu espírito,

que lá chegar é o teu destino último.

Mas não te apresses nunca na viagem.

É melhor que ela dure muitos anos,

que sejas velho já ao ancorar na ilha,

rico do que foi teu pelo caminho,

e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.


Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.

Sem Ítaca, não terias partido.

Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.

 

Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.

Sábio como és agora, senhor de tanta experiência,

terás compreendido o sentido de Ítaca.


Konstantínos Kaváfis

Tradução de Jorge de Sena

https://www.youtube.com/watch?v=jM9pCdrLj_k