quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Águeda

 CORREIO

Chegam cartas. Chegam pedaços 
do meu país.
Chegam vozes. Chega um silêncio que me diz
as revoltas as lágrimas os cansaços.
Chegam palavras que me apertam os braços.
Chegam notícias do meu país.

Chega o José o Alípio o Manel a Toina
Chegam do Sul e falam a cantar
chegam do Norte e trocam os bês pelos vês
chegam mulheres descalças e homens de boina
chegam os antigos senhores do mar.
Chega gente que chora em português.

Chegam palavras como sinos a tocar:
Há fogo em Sintra. Greve no Barreiro.
E chegam de Águeda palavras de há vinte anos:
Mataram no Gravanço o filho do moleiro.
E o Ti Fausto a dizer: Se ainda houvesse republicanos...
palavras de Águeda com os sinos a dobrar
pelo Ti Fausto que já morreu que já morreu.

E há o Eugénio a tocar a Marselhesa
ao piano das palavras que o tempo me traz.
Chegam notícias de mim mesmo de há vinte anos:
O Manel gosta da Maria do Brás.
Ti Fausto Eugénio Vó Clementina
onde é que estão onde é que estão os republicanos
e a Maria do Brás que ficou sempre menina
dentro de mim em Águeda há vinte anos?

Manuel Alegre
ÁGUEDA AGOSTO DE 2021












terça-feira, 17 de agosto de 2021

A Pateira de Fermentelos

 A Pateira de Fermentelos é uma lagoa natural, localizada no triângulo Águeda, Aveiro, Oliveira do Bairro, antes da confluência do Rio Cértima com o Rio Águeda, pertencendo na sua parte Sul ao concelho de Águeda (freguesias de Ois da Ribeira, Espinhel e Fermentelos).
Considerada uma zona húmida de elevada riqueza ecológica, a Pateira de Fermentelos desde cedo se tornou um sistema em que as actividades humanas se integravam perfeitamente na sua dinâmica, permitindo assim a manutenção da lagoa. A prática de uma agricultura drenante e a recolha constante do moliço (para posterior utilização como adubo natural), permitiu a manutenção de uma significativa superfície livre de água e impediu o avanço do pântano. Este equilíbrio, entre a actividade agrícola e a recolha do moliço, conduziu a uma paisagem humanizada de elevada organização e diversidade, na qual a lagoa atingia a sua maior dimensão.
No entanto, as alterações económicas e sociais operadas por volta dos anos 60, reduziram progressivamente a prática de recolha do moliço, permitindo assim o seu livre desenvolvimento. Este processo foi ainda grandemente acelerado pela descarga de esgotos, efluentes orgânicos e industriais e drenagem dos terrenos agrícolas envolventes.

in Jornal das Autarquias




Ao Canto do Lume


Que ilusão, viajar! Todo o Planeta é zero.

Por toda a parte é mau o Homem e bom o Céu.

- Américas! Japão! Índias; Calvário!... Quero

Mas é ir à Ilha orar sobre a cova de Antero

E a Águeda beber água do Botaréu....


António Nobre

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Egas Moniz

 Férias em Avanca

Quando íamos a férias, eu, meu irmão e a Lucianinha que sempre vinha, no Verão, do Convento de Arouca, fazíamos a vida impossível a nossos pais e especialmente à nossa mãe, sempre solícita em nos aturar. Minha irmã já gostava de bordar e costurar, místeres em que com ela se entendia. Os rapazes gostavam da vida ao ar livre, da caça aos passarinhos, da busca de ninhos e das brigas na relva do quintal, espécie de luta romana que improvisávamos. Às vezes acabava menos amigavelmente. Pequenas nuvens que não chegavam a projectar sombras.
Havia uma ambição da nossa vida de garotos: o rio! Passava ao fundo da pequena quinta um riacho tentador. Estávamos proibidos de ir sós para lá. O ribeiro tinha uns lugares mais fundos e meus pais receavam qualquer desastre. Mas era uma tentação irresistível! Logo de manhã, da janela do nosso quarto, víamos os salgueiros e amieiros, que bordavam as margens a chamarem-nos em movimentos rumorejantes. O desejo de transgredir as ordens paternas aparecia como uma necessidade imperiosa, revolta que considerávamos legítima contra a opressão familiar. Apenas com pessoa de gravidade podíamos descer às margens do Gonde, - assim se chama o riacho, só imponente com as cheias - e nem sempre aparecia companhia idónea.
Quando o tio João António vinha ao Marinheiro,  então sim, era satisfeito o nosso desejo. Meu tio pescava ao anzol uns inocentes roubacos e raros barbos que, ao tempo, constituíam com esquivas enguias, a fauna ictiológica do Gonde.

Egas Moniz (1874-1955)





 



domingo, 15 de agosto de 2021

Barra de Aveiro: um Agosto

Começam a morrer os últimos pianos do século
arrefece o estio na cabeça
agora almoço e já cai o crepúsculo
esse que me fugia por aí esse tempo

o mesmo rio não se contempla duas vezes no rosto do homem
debruçado fumando no molhe do marégrafo
a mesma Barra de Aveiro não é a mesma
o engenheiro Oudinot sentiria um aperto de coração idêntico

tive todas as alegrias e melancolias assim dito por alto
próprias das idades sucessivas mas nenhuma
que iludisse deveras a velha constatação jónia
cada gesto de mão é sempre um outro

nem sou sequer quem muda mas um outro

Fernando Assis Pacheco

                                         Engenheiro Reinaldo Oudinot (1744-1807)
                                                  Responsável pelo projecto da barra de Aveiro






sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Moliceiro

Morro de amor pelas águas da ria

Esta espuma de dor eu não sabia
Sou moliceiro do teu lodo fecundo
Sou a ria de Aveiro, o sal do mundo

Vara comprida
Tamanho da vida
Braço de mar
A lavrar, a lavrar

Morro de amor nesta rede que teço
E é no sal do suor que eu aconteço
Para além da salina o horizonte me ensina
Que há muito mar, muito mar pra lavrar, pra lavrar

Ary dos Santos ( do repertório de Carlos do Carmo)
https://www.youtube.com/watch?v=c1oxr3PUXr0

                                 Aguarela de Roque Gameiro

Ria de Aveiro

 4 horas da tarde

É neste ponto, depois da barra, que a ria desvanecida se imaterializa e atinge a perfeição suprema. S. Jacinto das Areias, pintado de vermelho e envernizado de novo, revê-se no espelho límpido das águas. Adiante há um pinheiral na duna, pequenino e já misterioso. À direita, em diferentes gradações de roxo, o vasto acampamento das salinas estende-se muito ao longe até à serra. Azul, azul vivo, azul que a luz trespassa e estremece, azul que não tem limites. Também a terra se prolonga e o amplo panorama se torna irreal. Aqui a matéria não existe. As terras alagadas têm tanta transparência como a ria. Distingo árvores, mas as árvores são traços de cor diluída e nascem da água; adiante riscos de uma paliçada ou um pedaço de areia desvanecida... O que há é azul a jorros, uma vasta amplidão indistinta como num sonho, cheia de ar húmido e envolvida em luz carinhosa. As coisas são tão leves, que a luz as atravessa... Vogamos. Seis horas, sete horas... Era preciso anotar a todos os momentos a aparência dos seres e das coisas, que a cada minuto se transformam. O mesmo panorama toma novos aspectos de sonho translúcido à medida que a luz esmorece e o barco se desloca. Às  oito horas estamos de novo perto da barra e o jorro que vem do mar parece lava fundida. O poente avermelha as areias e acende na água um rasto de estrelas.

Raul Brandão





quinta-feira, 12 de agosto de 2021

De Aveiro

Quem, por uma calma e luminosa manhã  de Agosto ou Setembro, deixar a cidade, seguindo a estrada da Barra - essa estrada singular, ladeada de água, com a ria por uma banda e pela outra as marinhas - e parando a meio do caminho, pelas alturas do lago do Paraíso, circunvagar em torno a vista, terá a larga visão panorâmica de uma das mais admiráveis e soberbas paisagens do nosso país. Voltando-se para a cidade, olhando por sobre os tabuleiros das marinhas, de águas paradas e polidas como placas rectangulares de vidro, vê-la- á estender-se numa linha de casaria acotovelada - traços brancos de paredes sob traços vermelhos de telhados - acima da qual se erguem perfis de torres ou altos muros de edifícios públicos e de fábricas. Depois, num segundo plano, de uma extensa gama de verdes, descobrirá os campos, os imensos milhares, as massas de arvoredo - os choupos e salgueiros que formam as cortinas marginais do Vouga, os pinheiros sombrios, os velhos álamos da estrada de Ílhavo, os tufos isolados dos esguios eucaliptos. De entre esta verdura, surgir-lhe-á a mescla branca das povoações circunvizinhas(...) E para lá, enfim,  de toda esta zona verdejante e apenas levemente ondulada, erguer-se-á ante a sua vista, no esplendor de uma imaterialização luminosa, um traço longo e caprichoso que se diria dado com uma pincelada de ametistas e safiras liquefeitas, a magnífica linha orográfica das cordilheiras da Beira: as serranias majestosas de Arouca, das Talhadas e do Caramulo, com o seu pico central e, mais para sul a avançada do Buçaco e os perfis vagos da Estrela e da Lousã, esbatendo-se diafanamente no céu de lápis-lazúli.

Luís de Magalhães (1859-1935)

                                                                          Postais antigos  




                                                                          Fotos actuais





domingo, 1 de agosto de 2021

Madrugada


Um leve tremor precede a madrugada

Quando mar e céu na mesma cor se azulam

E são mais claras as luzes dos barcos pescadores

E para além de insânias e rumores

A nossa vida se vê extasiada


Sophia de Mello Breyner Andresen

Foto do nascer do sol na Ilha do Farol, 2012

https://www.youtube.com/watch?v=sBOR1Ha7QZA