sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Uma viagem à Índia


Não falaremos então de um povo
que é demasiado e muito.
Falaremos nesta epopeia apenas de um homem: Bloom.
Bloom abriu os seus dois olhos contraditórios
(um que queria ver o novo, o outro dormir)
dirigindo o olhar para o calmo compartimento
onde acabara de entrar.
Bloom, o nosso herói. Eis o que faz primeiro: observa.

Eis agora Bloom na primeira etapa da sua viagem à Índia,
em Londres, só e sem dinheiro
e sem ninguém conhecer. Procura amigos
ou outra coisa?
E seria Bloom a ter um olhar estranho
ou estranhos eram os homens que dele
se aproximavam?
Eis que não existe resolução.
Quem começa o momento: quem olha ou aquilo
que é olhado? Pode o início do mundo localizar-se
em quem é empurrado?

Gonçalo M. Tavares
http://www.youtube.com/watch?v=T0JuEY_MHGI&feature=related

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Senhor


Senhor se da tua pura justiça
Nascem os monstros que em minha roda eu vejo
É porque alguém te venceu ou desviou
Em não sei que penumbra os teus caminhos

Foram talvez os anjos revoltados.
Muito tempo antes de eu ter vindo
Já se tinha a tua obra dividido

E em vão eu busco a tua face antiga
És sempre um deus que nunca tem um rosto

Por muito que eu te chame e te persiga.


Sophia de Mello Breyner Andresen
http://www.youtube.com/watch?v=h8TpRnMU09M

sábado, 18 de dezembro de 2010

Viajar? Para viajar basta existir


Viajar? Para viajar basta existir. Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo, ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como, afinal, as paisagens são.
Se imagino, vejo. Que mais faço eu se viajo. Só a fraqueza extrema da imaginação justifica que se tenha de deslocar para sentir.
"Qualquer estrada, esta mesma estrada de Entepfluhl, te levará até ao fim do mundo." Mas o fim do mundo, desde que o mundo se consumou dando-lhe a volta, é o mesmo Entepfuhl de onde se partiu. Na realidade, o fim do mundo, como o princípio, é o nosso conceito do mundo. É em nós que as paisagens têm paisagem. Por isso, se as imagino, as crio; se as crio, são; se são, vejo-as como às outras. Para quê viajar? Em Madrid, em Berlim, na Pérsia, na China, nos Pólos ambos, onde estaria eu senão em mim mesmo, e no tipo e género das minhas sensações?
A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos.

Fernando Pessoa
http://www.youtube.com/watch?v=uTnm0vlsbp8

sábado, 11 de dezembro de 2010

O Deus Da Incerta Ignorância


De que serve saber um pouco mais ou um pouco menos 
se a nascente do ser não é o pensamento?
Amadurecer é despojar-se de ofuscantes lâmpadas e plumas
e encontrar a nudez e o pulmão da sombra
numa respiração leve e longínqua
que nos faz vislumbrar o paraíso do silêncio
O sábio é aquele que sabe que tudo está a mais
quando não se encontrou o centro tranquilo
em que a paixão é a sossegada estrela
que reúne nos seus raios os contrários impulsos
Quando se vê o delicado desenho de água ténue
que envolve a sombra das coisas cintilante e trémula
a mente se recolhe na sua côncava câmara
e em vez de ramificar-se em ramos vãos
condensa-se num ovo de silêncio e apaixonadamente vê

António Ramos Rosa
http://www.youtube.com/watch?v=8_CUq3_MKZU&feature=related

sábado, 4 de dezembro de 2010

Está tudo ligado - O poder da música


O primeiro violino e o primeiro contrabaixo da Filarmónica de Berlim (um israelista e um egípcio) e o timbalista principal da Filarmónica de Israel são membros da Orquestra do Divã e, de vez em quando, sentam-se na mesma secção com estudantes que só tocam os seus instrumentos há dois ou três anos. É uma excelente oportunidade para os estudantes e um acto de generosidade e dedicação da parte dos profissionais à causa da orquestra. Afinal de contas, o projecto não existe simplesmente para que a orquestra faça concertos; os profissionais que continuam a voltar à orquestra não o fazem apenas por razões musicais mas por causa da forma humanista de abordar o conflito, forma que subscrevem.
É claro que a Orquestra não pode trazer a paz. Pode, todavia, criar as condições de compreensão sem as quais é impossível falar sequer de paz.Tem a possibilidade de despertar a curiosidade de cada indivíduo para escutar o que o outro tem a dizer e de inspirar a coragem necessária para ouvir aquilo que preferia não ouvir. Muita gente se tem referido ao projecto como um maravilhoso exemplo de tolerância, termo de que não gosto, porque tolerar alguma coisa ou alguém tem implícito um aspecto negativo; é-se tolerante apesar de certos defeitos. O significado da palavra tolerância é deturpado quando entendido apenas como um aspecto de generosidade altruísta. Tem implícito um elemento de presunção - eu melhor que tu. Goethe exprimiu isto de forma sucinta quando disse: " Simplesmente tolerar é insultar; o verdadeiro liberalismo significa aceitação". A verdadeira aceitação, acrescentaria eu, significa reconhecer a diferença e a dignidade do outro.

Daniel Barenboim
http://www.youtube.com/watch?v=WyOJ-A5iv5I

terça-feira, 23 de novembro de 2010

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia


O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal,
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Pelo Tejo vai-se para o mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

Fernando Pessoa
http://www.youtube.com/watch?v=Hr9sTxkO2xw

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Goa


Ao sair do aeroporto de Dabolim, aturdido pelo calor, o cansaço de duas noites sem dormir, e sobretudo o confuso alvoroço da multidão em festa, abandonei a minha mala, aliviado, nas mãos do primeiro motorista de táxi. Tive sorte. Sal parece um tipo honesto e interessante. Católico. O tablier do carro, transformado em altar, proclama isso mesmo: há uma Virgem Maria dentro de uma redoma de vidro, com pequenas luzes coloridas que piscam ao ritmo da música, uma minúscula urna com o corpo incorrupto de São Francisco Xavier, um crucifixo de prata suspenso do espelho retrovisor. Porém, o que primeiro me chamou a atenção foi a bandeira azul e branca do Futebol Clube do Porto.
   - Você fala português?
   Sal riu-se:
   - Bom dia...
O português dele, infelizmente, resume-se a isto. Um táxi com a bandeira do Futebol Clube do Porto é uma coisa que apenas esperava encontrar na cidade do Porto. Se fosse do Sporting ou do Benfica, clubes menos regionais, não estranharia tanto. Ontem, curiosamente, em conversa com o escritor Mário Cabral e Sá, soube que nos anos cinquenta se chegou a criar um Futebol Clube do Porto de Siolim: "copiávamos tudo de Portugal" - disse-me ele com amargurada ironia. O táxi de Sal também tem uma bandeira portuguesa, colada no vidro posterior, ao lado de outra da União Europeia. Finalmente - foi isso que me conquistou - Sal deu ao seu carro um belo nome, Princesa de Goa, e escreveu-o a tinta dourada em ambas as portas.

José Eduardo Agualusa
http://www.youtube.com/watch?v=Ux2FdIHJ2rs

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Amor


Dava pelo nome muito estrangeiro de Amor, era preciso chamá-lo sem voz - difundia uma colorida multiplicação de mãos, e aparecia depois todo nu escutando-se a si mesmo, e fazia de estátua durante um parque inteiro, de repente voltava-se e acontecera um crime, os jornais diziam, ele vinha em estado completo de fotografia embriagada, descobria-se sangue, a vítima caminhava com uma pêra na mão, a boca estava impressa na doçura intransponível da pêra, e depois já se não sabia o que fazer, ele era belo muito, daquela espécie de beleza repentina e urgente, inspirava a mais terrível acção do louvor, mas vinha comer às nossas mãos, e bastava que tivéssemos muito silêncio para isso, e então os dias cruzavam-se uns pelos outros e no meio habitava uma montanha intensa, e mais tarde as noites trocavam-se e no meio o que existia agora era uma plantação de espelhos, o Amor aparecia e desaparecia em todos eles, e tínhamos de ficar imóveis e sem compreender, porque ele era uma criança assassina e andava pela terra com as suas camisas brancas abertas, as suas camisas negras e vermelhas todas desabotoadas.

Herberto Helder
http://www.youtube.com/watch?v=w8bk9_nzLcM

sábado, 6 de novembro de 2010

Outra vez o Tejo


Um barco atravessa o Tejo.
Vem da infância, não sei para onde vai.
É branco, dessa brancura só dada
às aves. O rio,
que não via há tanto tempo,
entra agora pelas ruas de Lisboa
ao encontro da tão amada
luz dos jacarandás.
Volto a ter oito anos neste jardim,
vou perder-me nestas ruas,
nestas calçadas, onde o grito
das gaivotas sobe a prumo,
vou correr com o vento de esquina
em esquina, subir
com as árvores, ser
com elas poeira fina.

Eugénio de Andrade
http://www.youtube.com/watch?v=HVh86j7vCMw

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O cheiro das ondas no instante em que o ar é mais frio do que a água


Normalmente é no terceiro minuto a partir do crepúsculo que o ar da praia é mais frio do que a água. Não no segundo nem no quarto: no terceiro e durante onze segundos, o que requer discernimento, atenção e paciência. O melhor é encostarmo-nos à muralha, de queixo na palma, vigiar as gaivotas, dar fé da mudança de cor no horizonte e nisto, mal o terceiro minuto começa, tira-se a palma do queixo para que o ar poise nela e aí está: pega-se no ar da praia, mete-se no bolso e leva-se para casa sem deixar entornar. Tem de utilizar-se logo visto que no dia seguinte, a partir das dez, já o ar aqueceu. Puxa-se com cuidado do bolso e respira-se devagarinho. Quase sempre, então, os pinheiros estremecem e parece existir, nas mulheres da família, uma espécie de vontade de chorar. Não de tristeza, claro: do facto de existir para sempre, dentro delas, um búzio comovido. Só conheci um homem de mãos tão impregnadas de nuvens quanto as suas: o senhor José, duro camponês de Trás-os-Montes, no jardim dos meus pais, a fazer crescer uma flor com dedos humildes, de ossos suaves como o leite, vagarosos, certeiros. Devia ter tido o bom senso de morrer antes dele para que me fechasse os olhos para sempre. Mas descuidei-me  e o senhor José lá está no cemitério, humilde, escalavrado, agreste, a fazer corpo com a terra. O seu sorriso sem dentes, a sua bondade, o pobre, gasto corpo destroçado. A língua de pedra o que dirá agora? Nasceu em São Martinho da Anta, chamava-me
     - Menino
     e era muito mais elegante de alma do que eu, de uma delicadeza
     ia escrever aristocrática, escrevo aristocrática
     que não possuí nunca: sou feito de cardos e há palavras que deixei secar dentro de mim ou a vida secou. Claro que vou escrevendo, vou respirando, até me acontece, às vezes, orvalhar-me. Mas escondo.

António Lobo Antunes
http://www.youtube.com/watch?v=j51oyMWOWEM

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Barcelona






Estava um dia esplêndido com um céu azul espectacular e uma brisa limpa e fresca que cheirava a Outono e a mar. A minha Barcelona favorita foi sempre a de Outubro, quando a alma lhe sai a passear e a pessoa se torna mais sábia só de beber da fonte de Canaletas, que durante esses dias, por puro milagre não sabe nem a cloro. Avançava a passo ligeiro, evitando engraxadores, mangas-de-alpaca que voltavam do cafezinho de meio da manhã, cauteleiros e um bailado de varredores que pareciam estar a polir a cidade a pincel, sem pressa e com traço pontilhista. Já nessa época, Barcelona começava a encher-se de automóveis, e por alturas do semáforo da Rua Balmes observei postadas em ambos os passeios quadrigas de empregados de escritório de gabardina cinzenta e olhar esfomeado, a comer um Studebaker com os olhos como se se tratasse de uma cançonetista em roupão de quarto. Subi pela Balmes até à Gran Vía, vendo-me e desejando-me com semáforos, eléctricos, automóveis e até motocicletas com sidecar. Numa montra vi um cartaz da casa Phillips que anunciava a chegada de um novo messias, a televisão, que se dizia que ia mudar a nossa vida e nos ia transformar a todos em seres do futuro, como os americanos.

Carlos Ruiz Zafón
http://www.youtube.com/watch?v=MsB4a--WRTs

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Uma família


Uma família não funcionava perfeitamente sem os seus criados, gente de fora e parentes pobres. Além dos directamente implicados na sua saúde e estado das firmas e propriedades: os médicos, os advogados, os capelães (que eram os párocos da freguesia ou, com mais elevação, os secretários do episcopado). Depois vinham os fornecedores de víveres e vestuário, os responsáveis da apresentação urbana, os merceeiros de grosso, ou de garrafeira, os alfaiates, ourives, decoradores e mestres-de-obras. Também tinham o seu lugar marcado na agenda da casa os explicadores, as baby-sitters, pessoal muito reduzido face ao de antigamente que compreendia a professora de piano e a jovem au-pair que ensinava línguas e acompanhava as meninas da casa, tratando também de assegurar o futuro com algum bom partido que se apresentasse.
A casa era um mundo que fervilhava de convites e contas para pagar, de despesas faustosas ou miúdas, de renovação de cortinas ou de roupa de casa, de projectos para os filhos, de pensões para os que estudavam no estrangeiro, de pequenas paixões e rivalidades domésticas e de grandes crises tanto financeiras como amorosas.

Agustina Bessa-Luís
http://www.youtube.com/watch?v=waersqxvFwY

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Amesterdão


O voo chegou com um atraso de duas horas ao Aeroporto de Schiphol. Clive apanhou o comboio para a estação central e daí partiu a pé para o hotel à luz de um cinzento-suave da tarde. Enquanto ia a atravessar a ponte recordou-se de novo de como Amesterdão era uma cidade calma e civilizada. Fez um grande desvio para oeste a fim de passear ao longo da Brouwersgracht. Afinal, a sua mala estava muito leve. Como era reconfortante ter um curso de água no meio da rua. Que lugar tolerante, aberto, adulto: os belos armazéns de tijolo e de madeira trabalhada convertidos em apartamentos de bom gosto, as modestas pontes Van Gogh, o discreto mobiliário de rua, os holandeses de ar inteligente e interessante nas suas bicicletas com os filhos de aspecto calmo sentados atrás. Até os comerciantes pareciam professores e os varredores de rua faziam lembrar músicos de jazz. Não havia cidade com um ordenamento mais racional.

Ian McEwan
 http://www.youtube.com/watch?v=n2kkr0e_dTQ&feature=related

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

O Coração das Trevas

Subir o rio era o mesmo que viajar para trás, até às primeiras idades do mundo, quando a vegetação transbordava da terra e as árvores reinavam. Uma torrente deserta, um grande silêncio, a floresta impenetrável. O ar era quente, espesso, muito pesado e mole.  A luz solar não tinha alegria. Longos troços de rio deserto perdiam-se por lonjuras de enorme sombra. Nas margens de areia prateada, hipopótamos e crocodilos tomavam lado a lado banhos de sol. As águas largas corriam entre uma confusão de ilhas arborizadas, uma pessoa perdia-se naquele rio como num deserto, e todo o dia tropeçava em baixios, tentava encontrar um canal navegável e acabava por julgar-se vítima de um feitiço, isolada para sempre do que até ali conhecera - sei lá onde - talvez noutra vida. Em certos momentos o passado vinha ter connosco, como às vezes sucede quando não temos um instante de sossego; mas aparecia sob a forma de um sonho ruidoso e agitado, que viríamos a recordar, espantados, se aferido pela esmagadora realidade daquele mundo de plantas, água e silêncio. Era uma vida de silêncio que não parecia ter nenhuma paz. O silêncio de uma implacável força que tramava objectivos impossíveis de penetrar. Que nos olhava com olhar vingativo.

Joseph Conrad
http://www.youtube.com/watch?v=1b26BD5KjH0

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Lua



    Entre a terra e os astros, flor intensa.
    Nascida do silêncio, a lua cheia
    Dá vertigens ao mar e azula a areia,
    E a terra segue-a em êxtases suspensa.

    Sophia de Mello Breyner Andresen
    http://www.youtube.com/watch?v=1llMUfDsYZc

    Ria de Aveiro


    É um momento solene. Aí para baixo é a ria de Aveiro(...) O viajante fez bem as suas orações: não há vento, a luz é perfeita, as infinitas águas da ria são um imóvel lago. Este é o reino do Vouga, mas não há-de o viajante esquecer as ajudas da arraia-miúda de rios, ribeiras e ribeirinhos que das vertentes das serras da Freita, de Arestal e do Caramulo avançam para o mar, alguns condescendendo afluir ao Vouga, outros abrindo o seu próprio caminho e encontrando sítio para desaguar na ria por conta própria. Digam-se os nomes de alguns, de norte para o sul, acompanhando o leque desta mão de água: Antuã, Ínsua, Caima, Mau, Alfusqueiro, Águeda, Cértima, Levira, Boco, fora os que só têm nome para quem vive à borda deles e os conhece de nascença. Se este dia fosse de estivais lazeres, estariam as estradas em aflição de trânsito, as praias em ânsia de banhos, e nas águas não faltariam as embarcações de folguedo mecânico ou à vela. Mas este dia, mesmo de tão formoso sol e tão aberto céu, é de alto Inverno, nem sequer está a Primavera em seus primeiros ares. O viajante, pelo menos assim quer acreditar, é o único habitante da ria, além dos seus naturais, homens e bichos da água e da terra. Por isso (todo o bem há-de ter a sua sombra) estão as salinas desertas, os moliceiros encalhados, os mercantéis ausentes. Resta a grande laguna e a sua silenciosa reapiração de azul. (...) O viajante sabe que está a querer exprimir o inexprimível, que nenhumas palavras serão capazes de dizer o que uma gota de água é, quanto menos este corpo vivo que liga a terra e o mar como um enorme coração.

    José Saramago
    http://www.youtube.com/watch?v=5OL_ptX0098

    quinta-feira, 7 de outubro de 2010

    Teia de Aranha


    O tempo em S. Cristóvão anda devagar. As terras são cascalho puro, de maneira que é preciso dar prazo às raízes para roerem o granito até fazerem de uma areia um grão de cevada ou de centeio. Um ano, ali, são trezentes e sessenta e cinco dias bem medidos. E as pessoas que lá moram, afeitas a horas longas, têm uma paciência de relojoeiro, cheia de mil cálculos e de mil ponderações. Exactamente como nas leiras, onde a gente vê semanas a fio o mesmo pé de milho parado, meditativo, enigmático, a aloirar encobertamente a sua espiga, assim nos homens mais pasmados, mais lentos e mais metidos consigo, anda às vezes uma resolução secreta a criar e a amadurecer. E saem obras tão perfeitas destas meditações, tão acabadas na concepção e na forma, que só o dedo da providência, porque aponta do céu, é capaz de lhes evidenciar os defeitos de fabrico. Mas mesmo assim são às vezes precisos anos para que Deus descubra a fenda do cântaro. Tal é a perfeição dos artífices de S. Cristóvão!

    Miguel Torga
    http://www.youtube.com/watch?v=eNIRWwZ_sBY

    As mais-velhas


    Nunca sabem a idade, porque nasceram antes do tempo das sementes, num qualquer ano da praga dos gafanhotos ou da epidemia da varíola(...) Crescem sob o signo das sobreviventes, com a testa marcada pela estrela em brasa das vacas eleitas para serem mães, mulheres, irmãs(...)
    Por vezes e sem que se note muito param, entre o dia e a noite, um momento, para passar, em forma de história, provérbio ou adivinha, as fórmulas de sobrevivência, lições de parentesco, lugares de culto, os nomes do caminho. São livros de marinharia que trazem escritos dentro da memória e, em segredo, libertam do esquecimento(...)
    Todos os seus dias parecem iguais e, no entanto, desfilam apressados entre a seiva das palavras e a multiplicação dos gestos necessários ao governo do tempo, à transformação do leite, às curas da alma em crescimento.
    Ainda têm tempo para descobrir no bosque os cogumelos solares que secam, carne vegetal que se armazena para os anos de crise. Deixam de ter nomes a certa altura. Passam a ser avós de toda a gente ou as nossas mais-velhas, forma eficaz de apaziguar a culpa.

    Ana Paula Tavares
    http://www.youtube.com/watch?v=y9G34NRgnxQ

    quarta-feira, 6 de outubro de 2010

    O culto do chá


    Segundo a tradição da gente japonesa, Darumá, o grande apóstolo indiano do budismo, veio à China aí pelo começo do século VI da nossa era cristã, e em terras chinesas pregou em honra da verdade, iluminando o espírito dos homens(...)
    Consta mais que, em certa noite , as pálpebras se lhe cerraram de fadiga, e o bom Darumá deixou-se adormecer, para só acordar pela manhã. Então, pedindo a alguém uma tesoira ou instrumento parecido, cortou a si próprio as pálpebras indignas e arremessou-as ao solo, num gesto de despeito...
    As pálpebras, por milagre, enraizaram, dando nascença a um gracioso arbusto nunca visto, que medrou mui de pronto e cujas folhas, tratadas de infusão pela água quente, foram um remédio precioso contra o sono e contra o cansaço das vigílias. Estava conhecido o chá, tem pois na China a sua origem, e é coisa santa, como se acaba de provar. Crê quem quer; mas devo advertir que este livro foi escrito para os crentes.

    Wenceslau de Moraes
    http://www.youtube.com/watch?v=1_GvcQTNEJE&feature=related

    Veneza

     










    Do lodo da laguna, emerge o sonho.
    De mármore, de seda e de cristal,
    Sobe ao céu e flutua,
    Irreal
    E concreto;
    sonho dum europeu oriental,
    Pintor e arquitecto.

    Por ele passeiam gôndolas furtivas
    Carregadas de amor.
    E pombas mansas, senhoriais,
    Moram nos seus palácios deslumbrantes,
    Ondulantes
    Pombais.


    Miguel Torga   
    http://www.youtube.com/watch?v=nGdFHJXciAQ

    terça-feira, 5 de outubro de 2010

    As cidades e os olhos


    Depois de ter caminhado sete dias através de bosques, quem vai para Bauci não consegue vê-la e no entanto já lá chegou. São as finíssimas andas que se elevam do solo a grande distância umas das outras e se perdem acima das nuvens que sustêm a cidade. Sobe-se com escadotes. No chão os habitantes raramente se mostram: têm tudo de que precisam lá em cima e preferem não descer. Nada toca o solo à excepção daquelas pernas compridíssimas de fenicóptero em que assenta e, nos dias luminosos, uma sombra perfurada e angulosa que se desenha na folhagem.
    Três hipóteses se põem sobre os habitantes de Bauci: que odeiam a Terra; que a respeitam a ponto de evitar qualquer contacto; que a amam tal como era antes deles e com binóculos e telescópios apontados para baixo não se cansam de passá-la em resenha, folha a folha, pedra a pedra, formiga por formiga, contemplando fascinados a sua própria ausência.

    Italo Calvino

    http://www.youtube.com/watch?v=n_sovvXhCcI

    Viagem

    Ao longe, entre pinhais, surgiu uma casa.
    - Vamos até lá - disse o homem. - Talvez lá esteja alguém que nos saiba ensinar o caminho.
    Havia uma ligeira brisa e os pinheiros ondulavam.
    Bateram à porta da casa. Ninguém respondeu(...)
    Então o homem avançou com o ombro direito e arrombou a porta. Mas a casa estava vazia.
    Era uma casa pequena de camponeses. Uma casa nua, onde só estavam escritos os gestos da vida. Havia uma cozinha e dois quartos(...)
    Não havia ninguém na cozinha. Não havia ninguém nos quartos. Não havia ninguém nas traseiras, onde as roupas secavam, dependuradas no arame, gesticulando na brisa.

    No forno a cinza ainda estava quente e em cima de uma mesa havia pão e vinho.
    - Tenho fome - disse a mulher.
    Sentaram-se e comeram.
    - E agora? - perguntou a mulher.
    - Vamos voltar para a estrada e continuar - disse o homem.
    Saíram e atravessaram o pinhal. Mas a estrada tinha desaparecido.
    - Tenho medo - disse a mulher. Agora tenho sempre cada vez mais medo. Tudo desaparece.

    Sophia de Mello Breyner Andresen

    http://www.youtube.com/watch?v=6crDzqSywWM

    domingo, 3 de outubro de 2010

    Manifesto

     
    Não alteres nada
    Não comeces
    Ouve o murmúrio do ovo
    no lodo negro
    A boca não quer palavras
    apenas quer ser o ó
    da coincidência
    do círculo interior
    com o círculo do universo
    Os músculos
    querem a ondulação de um barco
    entre árvores
    e os olhos querem seguir as nuvens
    no seu voluptuoso adágio
    Quando adormeceres
    Terás entrado na matéria redonda
    como se entrasses no ouvido da terra
    e então poderás ser tão lento e fluido como um peixe
    e ultrapassarás a violência da cal