segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O cheiro das ondas no instante em que o ar é mais frio do que a água


Normalmente é no terceiro minuto a partir do crepúsculo que o ar da praia é mais frio do que a água. Não no segundo nem no quarto: no terceiro e durante onze segundos, o que requer discernimento, atenção e paciência. O melhor é encostarmo-nos à muralha, de queixo na palma, vigiar as gaivotas, dar fé da mudança de cor no horizonte e nisto, mal o terceiro minuto começa, tira-se a palma do queixo para que o ar poise nela e aí está: pega-se no ar da praia, mete-se no bolso e leva-se para casa sem deixar entornar. Tem de utilizar-se logo visto que no dia seguinte, a partir das dez, já o ar aqueceu. Puxa-se com cuidado do bolso e respira-se devagarinho. Quase sempre, então, os pinheiros estremecem e parece existir, nas mulheres da família, uma espécie de vontade de chorar. Não de tristeza, claro: do facto de existir para sempre, dentro delas, um búzio comovido. Só conheci um homem de mãos tão impregnadas de nuvens quanto as suas: o senhor José, duro camponês de Trás-os-Montes, no jardim dos meus pais, a fazer crescer uma flor com dedos humildes, de ossos suaves como o leite, vagarosos, certeiros. Devia ter tido o bom senso de morrer antes dele para que me fechasse os olhos para sempre. Mas descuidei-me  e o senhor José lá está no cemitério, humilde, escalavrado, agreste, a fazer corpo com a terra. O seu sorriso sem dentes, a sua bondade, o pobre, gasto corpo destroçado. A língua de pedra o que dirá agora? Nasceu em São Martinho da Anta, chamava-me
     - Menino
     e era muito mais elegante de alma do que eu, de uma delicadeza
     ia escrever aristocrática, escrevo aristocrática
     que não possuí nunca: sou feito de cardos e há palavras que deixei secar dentro de mim ou a vida secou. Claro que vou escrevendo, vou respirando, até me acontece, às vezes, orvalhar-me. Mas escondo.

António Lobo Antunes
http://www.youtube.com/watch?v=j51oyMWOWEM

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