sábado, 24 de novembro de 2012

"He loved beauty that looked kind of destroyed"


Gostava dessa espécie de beleza
que podemos surpreender a cada passo,
desvelada pelo acaso numa esquina
de arrabalde; a beleza de uma casa devoluta
que foi toda a infância de alguém,
com visitas ao domingo e tardes no quintal
depois da escola; a beleza crepuscular
de alguns rostos num retrato de família
a preto e branco, ou a de certos hotéis
que conheceram há muito os seus dias de fulgor
e foram perdendo estrelas; a beleza condenada
que nos toma de repente, como um verso
ou o desejo, como um copo que se parte
e dispersa no soalho a frágil luz de um instante.
Gostava de tudo isso que deixava muito a sós
consigo mesmo, essa espécie de beleza arruinada
onde a vida encontra o espelho mais fiel.

Rui Pires Cabral
https://www.youtube.com/watch?v=JRXqjxUCuMw

domingo, 18 de novembro de 2012

(O) terramoto da poesia


Se, face à morte iminente, um samurai tivesse o sangue frio e o destemor para criar uns versos, não deveria morrer. Os samurais poupavam a vida do inimigo se este, quando a lâmina adversária se preparava para o derradeiro golpe, criasse um poema. Masamitsu Ito tornou-se então conhecido como o "samurai invulnerável". Era um espadachim medíocre, mas um poeta impetuoso. Perdia batalhas, mas não perdia a vida, escapando ileso pelas suas derrotas. Aos poucos foi-se dedicando totalmente à poesia, desprezando o manejo da espada, pois os haikus, literalmente, salvavam-lhe a vida. Em 31 de Dezembro de 1703, durante um cerco a Edo, Masamitsu Ito, que fazia parte do exército atacante, viu uma criança a largar um crisântemo que foi levado pelo vento. De imediato, veio-lhe à boca um haiku, que gritou para os soldados, para lhes dar ânimo:
Ao tocar no monte Fuji
A flor ao vento
Fê-lo tremer de cócegas
A terra, nesse instante, tremeu realmente, num dos maiores terramotos da história do Japão. A muralha de Edo caiu e tudo aquilo parecia ser fruto de um poema. Masamitsu Ito tornou-se a maior lenda do Japão, o mais terrível dos guerrreiros. Continuou, pelo resto da vida, um espadachim incapaz, mas com a couraça mais impenetrável de todas: um haiku.

Afonso Cruz
https://www.youtube.com/watch?v=FCwlT5qwP7g

sábado, 10 de novembro de 2012

(à Ana no dia dos anos)


Havia uma flor!
Nem eu sabia
onde é que a flor havia,
mas tanto fazia.

Talvez houvesse
onde ninguém soubesse
ou fosse uma flor de estar a haver
só na minha imaginação,
ou não fosse uma flor, fosse uma canção.

Nem a flor sabia
que existia.
Em qualquer sítio, sem saber, floria.
E se fosse uma canção cantava e não se ouvia.

E isso acontecia
no meu coração.
Não sei se era uma flor se uma melodia,
era qualquer coisa que havia,
e cantava e floria,
dentro de mim sem razão.

Ia pela rua e ninguém diria.
As  pessoas passavam
e eu dizia:
"Bom dia!"
E ninguém suspeitava
o bom dia que fazia
em qualquer sítio
que dentro de mim havia!
Só  eu sabia e sorria,
levando-te pela mão.

Manuel António Pina
http://www.youtube.com/watch?v=YUJ7cDSuS1U

sábado, 3 de novembro de 2012

Excertos de "Os Teclados"



Ela procurava alguma coisa que não era da ordem das palavras, embora só pudesse transmiti-la em palavras, algo talvez comparável à música embora não equivalente. Ondas de energia,  que se organizavam numa determinada estrutura – sim, talvez se pudessem pôr as coisas nesses termos, não sabia ao certo.

Havia como na música uma liberdade e  um determinismo – a última frase de um romance, por exemplo, estava já contida na primeira. Era sempre o tom que decidia tudo. Uma vez encontrado, tornava-se uma chave. Uma clave. Nos verdadeiros romances o essencial era, até certo ponto, previsível.

A questão era sempre a mesma, repetia a mulher. Não  importava o que se tinha pela frente, o teclado, o mundo, o Minotauro ou a esfinge. Algumas pessoas eram feitas para desvendar enigmas, passariam a  vida a tentar. O que seria mais suportável se pudessem fazê-lo também em nome dos outros, porque então não estariam sós, a tarefa seria colectiva. Se as pessoas formassem uma comunidade.

Era tudo uma ilusão, pensou. O mundo talvez não fosse um cosmos, um universo ordenado. Provavelmente não tinha medida, nem escapava ao caos.
(Ela caindo dos mundos, de esfera em esfera, presa por um pé. Descendo vertiginosamente através dos planetas. Em cada um uma sereia olhando.)
Ela também não tinha medida nem fronteira. Estava presa à existência, mas não fixada nela.

Cada um estava só, pensou. Não havia respostas em nenhum lugar. Nem havia mestres, porque também não havia verdades, nem caminhos.  Cada um tinha o seu próprio caminho. Embora às vezes, fugazmente, as pessoas se cruzassem – e esse era um instante fulgurante, como se uma luz se acendesse.