domingo, 26 de novembro de 2017

Nápoles






Fui tomada por uma exaustão que, por mais que tentasse repousar, não queria passar. Pela primeira vez fiz gazeta. Faltei à escola, creio, quinze dias, e nem a António disse que já não conseguia estudar, que queria desistir. Saía à hora habitual, passeava toda a manhã a pé pela cidade. Aprendi muito sobre Nápoles, nesse período. Remexia os livros usados das bancas do mercado de Port'Alba, assimilava títulos sem querer, nomes de autores, prosseguia em direcção a Toledo e ao mar. Ou subia ao Vomero pela Via Salvator Rosa, chegava a San Martino, descia pelo Petraio. Ou então explorava a Doganella, ia até ao cemitério, cirandava pelas alamedas silenciosas, lia os nomes dos mortos. Por vezes, jovens vadios, velhos patetas, até senhores distintos de meia-idade, iam-me no encalço, fazendo-me propostas obscenas. Apressava o passo de olhos baixos, fugia sentindo o perigo, mas não desistia. Pelo contrário, quanto mais fazia gazeta à escola mais aquelas manhãs de vadiagem alargavam o rasgão na rede de obrigações escolares que me aprisionava desde os seis anos de idade. Na devida hora regressava a casa e ninguém suspeitava de que eu, e logo eu, não tina ido à escola.

Elena Ferrante
https://www.youtube.com/watch?v=X24wnVcBMLg


domingo, 19 de novembro de 2017

A flor



Acerca do Vesúvio poderíamos dizer alguma coisa. Ficou
no seu cume uma nuvem e o vento nem sequer a afasta. Talvez seja
uma recordação que veio ter connosco. Caminhemos
nessa direcção, porque é devagar que os nossos passos se dirigem
para o tempo. A vegetação procura o interior das cinzas.
O mar fica próximo; existe também um rio. Ao longe principiaram a cultivar
os campos. Outrora, ao descer da lava, julgo que todos estavam
adormecidos. Há quem diga que foi o sono que a trouxe,
aquecida por tantos corpos ali deitados, vasos da sua própria
nudez agora sujeita a um calor desconhecido. Que sonhos
podem existir aqui? Ficaram perdidos, dispersos pelos caminhos
sem saída de quem desperta. As mãos tocam
as chamas nelas ocultas, as fendas que se abrem mais ao encontrarmos
estas sementes iluminadas. Sempre foi igual a sombra
que as colunas deixam umas nas outras. Passamos entre elas. Talvez
uma flor calcinada conserve ainda o seu perfume.

Fernando Guimarães
https://www.youtube.com/watch?v=v9E9fv6zr18

sábado, 4 de novembro de 2017

Tentando compreender Gordon Matta-Clark


Como é triste…
Este bairro agoniza
Ruas quase desertas
Casas abandonadas
Lixo, muito lixo
Ruas esburacadas e negras.
Pobres habitantes
Empurrados
Para a periferia!
Outros virão
Instalar-se aqui
Nos novíssimos prédios
Em construção.
(Isto valoriza a zona.
E é bom para o turismo!)

Instintivamente
Apanho um pedaço de papel
Miro-o, remiro-o
Amarroto-o com as duas mãos
Aliso-o vagarosamente
Com a tesoura faço uns cortes
Um picotado
E volto a amarrotá-lo
Levo um pedacinho à boca
E mastigo-o
Devagar
A saborear
E eureka, entendi!
Ok, Gordon Matta-Clark,
Tens toda a razão,
Os tempos mudaram,
A arte já não cabe
No aconchego dos museus.
Ficaram célebres
As tuas intervenções
Nas casas abandonadas
Mostrando novas formas de olhar
E agitando as consciências…
Ok, Gordon Matta-Clark,
Mais uma vez concordo contigo.
A arte é frugal
Total
Para ser comida
E vivida
Mortal
Como todos nós.