terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Renova-te


Renova-te.

Renasce em ti mesmo.

Multiplica os teus olhos, para verem mais.

Multiplica os teus braços para semeares tudo.

Destrói os olhos que tiverem visto.

Cria outros, para as visões novas.

Destrói os braços que tiverem semeado,

Para se esquecerem de colher.

Sê sempre o mesmo.

Sempre outro.

Mas sempre alto.

Sempre longe.

E dentro de tudo.


Cecília Meireles

Pintura da Gabriele Munster

https://www.youtube.com/watch?v=oHS6F-84gf0

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Apesar das ruínas

Apesar das ruínas e da morte,

Onde sempre acabou cada ilusão,

A força dos meus sonhos é tão forte,

Que de tudo renasce a exaltação

E nunca as minhas mãos ficam vazias.


Sophia de Mello Breyner Andresen
Pintura de João Queiroz

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Ao Eduardo Lourenço, na Flor da sua Idade


Era bonita mas tão provinciana
a cidade. Dos seus muros pasmados
a luz fina caía preguiçosa
nas areias do rio. Mas o resto 
era vulgaridade e sonolência.
Só as árvores não era vulgares:
de tão formosas tornavam o céu
de cristal, como se o verão fora
imortal entre plátanos e choupos.
Ali nos encontrámos certo dia,
éramos jovens e mais jovem que nós
era a poesia que nos acompanhava.
Hoderlin, keats, Pessanha e o Pessoa
eram então - e não o serão ainda? - 
os nossos amigos. O mais, gente ideias
costumes, tudo tinha o mesmo cheiro
de caserna aliada a sacristia.
Dessa cidade em nós nada ficou.
De nós, que ficará nessa cidade.
                                                       1983
Eugénio de Andrade
Pintura de Vieira da Silva



sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Cruzeiro Seixas

 


Levado pelas águas

sem jamais encontrar o mar

ferozmente atacado por uma flor

olho os dinossauros idilicamente

pastando nas margens. Que vejo eu?

Já não resta fóssil sobre fóssil

e só os náufragos ainda repetem os erros de ortografia

de continente em continente.

As plumagens agitadas das palavras são estandartes

atravessando o espaço e o sono

livres em toda a sua estranhíssima glória.

São os peixes esverdeados

que escondem sob as roupagens os labirintos

e as maquinarias prontas a investir

contra o paraíso.

A experiência impregnou as pedras da sua voz rouca

e as coisas são como um tríptico aberto

mostrando aos canibais perplexos

os nós mais secretos

daquele marinheiro alado.

Desfia-se já o fio que há séculos nos mantém.

 

Tenho frio

e imploro que me cubram com o dilúvio

ao som de trombetas exacerbadas:

que me cubram a mim e ao eco,

e à memória de tudo isto.

Estou ainda aqui,

e vejo

como um cego vê o mar.


Cruzeiro Seixas

(texto e gravura)

https://www.youtube.com/watch?v=XGiEh774GBg

sábado, 14 de novembro de 2020

Aniversários

 


As abelhas não fazem anos.
Nenhuma viveu um ano
para o poder fazer.

Com um dia de vida
qualquer abelha vai trabalhar.
Com dois já pode namorar
e com cinco casa e tem filhos.
Com vinte dias de vida
uma abelha está acabada:
é uma velha.

Os anões são tão pequeninos
que não fazem anos.
Fazem aninhos.
Os gigantes são tão grandalhões
que não fazem anos.
Fazem anões.

Os anos que fazemos
também nos fazem a nós.
Os anos que fizemos nos fizeram.
Os anos que faremos nos farão.
É de anos que somos feitos,
de breve e misterioso tempo.
Em nós estão os anos que já fomos.
Esses anos, que fizemos, somos nós,
do cimo da cabeça à ponta dos pés.

Álvaro Magalhães

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Escrever poemas



Escrever poemas é bom, pode ser. Comecei a escrever poemas aos 10, 11 anos. Voltava da escola no segundo andar do autocarro da Carris e apetecia-me escrever sobre o que via. Os sinais de trânsito eram chupa-chupas, os semáforos tinham cores de rebuçado. Nunca gostei de chupa-chupas nem de rebuçados mas achava que ficava bonito numa redacção escolar escrever estas coisas. Dava-me prazer escrever assim e achava que estava certo o que escrevia. As professoras gostavam muito das minhas redacções, tinha muito sucesso.
Comecei a ouvir a Musa quando ia fazer 23 anos. Antes não ouvia a Musa. Eu sei que falar assim parece banha de cobra. Mas não é. Já contei isto muitas vezes. A minha gata tinha desaparecido, eu estava muito triste, aflita. De repente na minha cabeça estava um poema sobre a gata. Peguei na caneta e na esferográfica e escrevi. Ouvir a Musa não é só ter prazer em escrever, ter ideias ou imagens como eu tinha aos 11 anos. É aparecer o texto na cabeça vindo não sei de onde. E a minha gata apareceu. Não são os textos que me interessam, quero lá saber da Musa. Quero é a gata, o afecto, a vida, a gata.
Ouvir a Musa é desgastante, um frenesi. Volto a escrever como aos 11 anos, quando andava no segundo andar do autocarro da Carris. Tenho 60 anos adolescentes.
                                                                                  7-VI-2020

Adília Lopes
Pintura de Pierre-Auguste Renoir

 

 




sábado, 31 de outubro de 2020

Os números


este é o livro da minha descendência:
adelino gerou armindo que gerou adão que 
gerou tiago que gerou três. dois deles correm agora pela sala em
perseguições alternadas. o terceiro cresce sem que o 
vejamos ainda. somos cada vez mais, embora insuficientes
para substituir os mortos que coleccionamos em álbuns de 
família, e por motivos práticos vivemos quase isolados na nossa
felicidade doméstica, um sentimento mal recebido pela crítica.
durante a infância ninguém morreu. os corpos 
eram retirados do olhar das crianças de forma subtil e
eficaz. chegou por fim o momento de consultar
a conta-corrente, de avaliar os ganhos e as perdas.
um nome por cada nome, numa família em que o
passou é quase tão desconhecido como o futuro.
fomos trazidos até aqui por uma paixão
quase constante entre os sexos, ao longo dos séculos.
e agora, na idade adulta,é a cada dia
que nos vamos aproximando do passado.
pode ter sido muito diferente em outras épocas, mas
hoje é saturno que é devorado pelos filhos enquanto vê
televisão, numa tarde de sábado.

Tiago Araújo

sábado, 17 de outubro de 2020

Redacção da Guidinha


Ora cá estou eu

Ora cá estou eu Guidinha em tudo menos nos papéis porque nos papéis sou Margarida do Rosário Peixoto para falar dos homens pais que são os homens piores que eu conheço são tão ruins que eu tenho pena de ter Mãe e Pai antes queria ter duas Mães eles são tão ruins que até fingem que a gente não existe quando eu ando na escada a escrever os nomes dos namorados das vizinhas nas paredes sim que não é segredo nenhum toda a gente sabe que a D. Mécia do segundo andar embeiçada pelo careca da sapataria aparece sempre alguém que pergunta "pst ó menina quem são os seus pais?" o que eu queria dizer é que ninguém me pergunta "pst ó menina quem são as suas Mães?" por aqui já se vê como eles são tão maus que fazem de conta que mandaram vir a gente de Paris sozinhos eu também vingo-me neles que é uma coisa doida quando me perguntam "pst ó menina quem são os seus pais" e sei que é para irem lá com queixinhas disto e daquilo digo sempre que são dois muito finos que vivem do lado de lá da rua e que pintam os cabelos e os olhos e que não têm mulheres e quando lá vão com as queixinhas é um gozo ouvir o loiraças todo contente a gritar para o outro que está na cozinha "ó filho então não queres lá saber está aqui uma mulherzinha a dizer que temos filhos não achas que tem graça" o que é preciso é chatear os homens o meu pai é do piorio levanta-se e vai para a repartição volta janta e vai para o café e quando está em casa é só para atacar só para atacar "Não sei que fazes ao dinheiro que te dou o Costa dá menos em casa e come carne todos os dias" 

Luís Sttau Monteiro
Ilustração "Mafalda"de Quino

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Mestre




Mestre, meu mestre querido!
Coração do meu corpo intelectual e inteiro!
Vida da origem da minha inspiração!
Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida?

Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti nem de nada,
Alma abstracta e visual até aos ossos,
Atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre múltiplo,
Refúgio das saudades de todos os deuses antigos,
Espírito humano da terra materna,
Flor acima do dilúvio da inteligência subjectiva...

Meu mestre e meu guia!
A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou,
Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente,
Natural como um dia mostrando tudo,
Meu coração não aprendeu nada.
Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade.
Meu coração não é nada,
Meu coração está perdido.

Prouvera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele
Poeta decadente, estupidamente pretensioso,
Que poderia ao menos vir a agradar,
E não surgisse em mim a pavorosa ciência de ver.
Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano!

A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação.
Libertaste-me, mas o destino humano é ser escravo.
Acordaste-me, mas o sentido de ser humano é dormir.


Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)
Foto: Lisboa, na Praça da Figueira

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

A minha filha (vendo-a dormir)


Que alma intacta e delicada!

Que argila pura e mimosa!

É a estrela d'alvorada

Dentro dum botão de rosa!

 

E, enquanto dormes tranquila,

Vejo o divino esplendor

Da alma a sair da argila,

Da estrela a sair da flor!

 

Anjos, no azul inocente,

Sobre o teu hálito leve

Desdobram candidamente,

Em pálio, as asas de neve...

 

E eu, urze má das encostas,

Eu sinto o dever sagrado

De te beijar— de mãos postas!

De te abençoar — ajoelhado!

 

Guerra Junqueiro

https://www.youtube.com/watch?v=wfF0zHeU3Zs

sábado, 12 de setembro de 2020

Sonhando com Dacosta

 

A última vez que vi António Dacosta foi em sonhos, nos Açores. Ele estava a sonhar o seu sonho e eu entrei nele como visitante. Posso entrar no seu sonho, Mestre?, perguntei. Ele levantou a tela do quadro que estava a pintar e respondeu: entre lá no meu quadro, faça favor...
Detivemo-nos numa praia. É uma praia de uma minha ilha, disse Dacosta, olhe que bonita que é.
A areia era fina e dourada, salpicada de crustáceos e moluscos, com pequenas concreções azuis que pareciam vindas de outro planeta. Na praia havia uma barraca de madeira pintada de branco e na porta estava escrito: Restaurante. Entrámos e Dacosta cumprimentou o dono.Era um hospedeiro bizarro, com duas asas azuis nas costas e o cabelo vermelho. Esta é a minha Caça ao Anjo, disse Dacosta, é assim que se chama este restaurante, e este é o meu anjo da guarda, o anjo que cuida do meu estômago e da minha alma.
O hospedeiro fez uma vénia, sacudiu as asas e perguntou-me: gosta de anjos de cabelo vermelho?
Gosto, respondi, nunca tinha visto nenhum, mas aqui nos Açores há seres muito bizarros, você não virá por acaso de outro planeta?
Venho de Saturno, respondeu o anjo, toda a gente pensa que em Saturno somos todos saturninos e melancólicos, e pelo contrário temos asas azuis e cabelo vermelho, mas não se trata do Saturno que você julga, é o Saturno que Dacosta sonha...
Dacosta encheu o meu copo de vinho e disse: há um Saturno em que penso há anos, é a ideia de Saturno, mas não é o planeta, é o Deus que preside ao nascimento dos deuses, e este Saturno perseguiu-me sempre, e a ele tinha-o sempre no coração e na alma, porque ouvia a sua voz a dizer-me que um dia haveria de explodir em mim o nascimento dos deuses, e nesse dia haveria de ser feliz.
E você o que é que respondia ao seu Saturno?
Eu ficava calado, respondeu Dacosta, e continuava à espera. 
E depois um dia, os deuses começaram a nascer, normalmente essas coisas sucedem na Primavera mas aconteceu no Outono, comecei a sentir-me esquisito, a minha alma inchou como incha o mar no equinócio, meti-me na cama, fui bebendo uma tisana aguardando o momento de dar à luz. E a certa altura levantei-me, pus-me em frente do cavalete, peguei nos pincéis e nas tintas, tracei duas linhas na tela mas fi-las curvas como esguichos de de água a sair de uma fonte, porque percebi que aquela era a minha geometria. E os deuses chegaram por si próprios, eu comecei a pintar e sentia-me feliz. E pintei vários quadros, num êxtase que não saberia descrever. Aquele foi o dia triunfal da minha vida e não poderei ter outro igual.
O anjo veio à nossa mesa com uma grande travessa. Era um prato de aspecto insólito e magnífico. Perguntei ao anjo que comida era aquela. É uma comida que antigamente se cozinhava aqui, na desaparecida Atlântida, e que hoje quis cozinhar para vocês.

Antonio Tabucchi


quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Quinta da Paz






Vejo o Passado reviver,

Porque em meu coração

Tudo é ressurreição,

Amanhecer...

E vejo aquelas almas esperando,

Doidas de luz, seu próprio nascimento...

Nas nuvens já descubro as fontes marulhando

E a brisa, para mim, é já tumulto e vento.


Saio do velho lar escuro de abandono.

Cá fora, o céu azul dá nova graça

Às árvores despidas pelo Outono,

Ao passarinho, flor etérea que  esvoaça...


E vejo a antiga fonte: os dois golfinhos

E o nicho donde outrora

Um santo contemplava os passarinhos

Voando, à flor da aurora.

E, nas frestas antigas da parede,

A harmoniosa e límpida frescura

Que nos desperta a sede,

Pousava em alegrias de verdura...


Vejo a nossa ramada, ao longo do quintal:

Claustro de folhas mortas, a cair...

Leva-as, no seu regaço, o zéfiro outonal;

Nadam nos charcos de água...

Vestem de oiro mortal a dura frágua;

Outras, no Azul, vão ser estrelas a sorrir...


Teixeira de Pascoaes

https://www.youtube.com/watch?v=sKkk7vjSdeg&feature=youtu.be



Teixeira de Pascoaes






Quanto eu viver viverá em mim a visão do Tâmega a atravessar o encantado rincão de Amarante em terras de Portugal. Guardarei para sempre - Deus queira que para depois de morto - a memória daqueles dias arrancados ao tempo em companhia de Teixeira de Pascoaes, e no íntimo ambiente da sua casa natal e solarenga, e daquela subida com ele e com o seu valoroso pai Teixeira de Vasconcellos ao cimo do Marão, que estende, como rendida cauda, uma falda doce para as ridentes terras do Minho e se debruça, sobre escarpadas garras, para os campos de Trás-os-Montes.
Debrucei-me àquela santa janela - minha santa janela - onde o poeta medita e diz adeus ao sol, e fala ao vento e saúda a aurora, e lê no infinito; debrucei-me com ele àquela janela, a beber com os olhos a água do Tâmega, que vai
                        Compondo versos de neblina
                        Às árvores, ao monte e à dura frágua...
                        Elegias d´orvalho à luz divina
                        E endechas  de remanso e cantos de água...
E com ele, com o poeta dulcíssimo, com Teixeira de Pascoaes, detive-me na sua Amarante, a ver a entrada da noite, o olho de luz do Tâmega, sob o arco da ponte, e vi-o sob o céu nocturno:
                         Ó Tâmega obscuro, água dormente...
                         Ó rio, à noite, a arder todo estrelado!
                         Água meditativa ao luar nascente,
                         Água coberta de asas ao sol nado!
Sim, também o vi ao nascer o sol, coberto de asa de neblina. E este rio é todo ele poeta, rio também de águas refrescantes e musicais.

Miguel de Unamuno

domingo, 9 de agosto de 2020

Passos na neve

 

Num caminho coberto de neve, atrasa os próprios passos. Vai prestando atenção a todas as coisas vivas que não fazem barulho, tem tempo para isso. Entre uma pegada e outra não pensa em nada, observa apenas a trilha recortada que um corpo, neste caso o seu corpo, vai deixando num mundo ímpar. Sabe que há gente que já morreu e com certeza andou por ali. Sabe que há lobos por perto e que a ventania faz das suas naquele branco sempre que pode. Nada o espanta. Tudo o excede. Caminha até parar de caminhar. E sem pensar nas coisas, é cúmplice das coisas.


Matilde Campilho

https://www.youtube.com/watch?v=Iq0x_gM8tZg&list=RDIq0x_gM8tZg&start_radio=1&t=53

terça-feira, 28 de julho de 2020

Retábulo de S. Bernardo








Falando com Deus

Só vos conhece, amor, quem se conhece;
Só vos entende bem quem bem se entende;
Só quem se ofende a si, não vos ofende,
E só vos pode amar quem se aborrece.

Só quem se mortifica em vós floresce;
Só é senhor de si quem se vos rende;
Só sabe pretender quem vos pretende,
E só sobe por vós quem por vós desce.

Quem tudo por vós perde, tudo ganha,
Pois tudo quanto há, tudo em vós cabe.
Ditoso quem no vosso amor se inflama,

Pois faz troca tão alta e tão estranha.
Mas só vos pode amar o que vos sabe,
Só vos pode saber o que vos ama. 

Jerónimo Baía (1620-1688)
Fotos do Retábulo no Mosteiro de Alcobaça
https://www.youtube.com/watch?v=hI8CsRT2EpQ&t=37s

sábado, 18 de julho de 2020

Consequências


Os papelotes

Nunca choraremos bastante
termos querido ser belas
à viva força
eu quis ser bela
e julguei que para ser bela
bastava usar canudos
pedi para me fazerem canudos
com um ferro de frisar e papelotes
puxaram-me muito pelos cabelos
eu gritei
disseram-me para ser bela
é preciso sofrer
depois o cabelo queimou-se
não voltou a crescer
tive de passar a andar com uma peruca
para ser bela é preciso sofrer
mas sofrer não nos faz forçosamente belas
um sofrimento não implica como consequência
uma recompensa
uma dor de dentes pode comover a nossa mãe
que para nos consolar sem saber de quê
nos dá um rebuçado
mas o rebuçado ainda nos faz doer mais os dentes
a consequência de um sofrimento
pode ser outro sofrimento
a causa é posterior ao efeito
o motivo do sofrimento é uma das consequências
do sofrimento
os papelotes são uma consequência da peruca

Adília Lopes

Capicua:
https://www.youtube.com/watch?v=chm5DnoA6X8

Escultura de João Cutileiro

sábado, 11 de julho de 2020

Esboços de iluminura







há lugares de onde o tempo não deserta,
como se tudo neles fosse
o regaço, e o nome,
de um murmúrio muito antigo.

havia panos de linho nas janelas
e uma voz que nos chegava,
pela luz,
em passos de deixar pegadas.

sentado no primeiro degrau de subir,
um menino apagava a noite molhando a terra;
"é água de aurora", disse
para os meus olhos,
e abriu os riscos da sina
dentro da palma da mão.

não entrei na casa,
não tinha as mãos lavadas
para bater à porta.

ao fundo do jardim,
perto de quatro paredes de guardar o Céu,
um anjo jazia com pouco respirar.

"levanta-te, e caminha", pedi-lhe,
e dei-lhe uma palavra de matar a sede.

"regaste as rosas, meu amor?",
ouvi alguém, ao longe, perguntar.

Emanuel Jorge Botelho
Pintura de Urbano
https://www.youtube.com/watch?v=ybcLzehFpXA

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Cinemas



Comunidade das pequenas salas de cinema, não muita gente, e a que houver tocada em cheio como o coração tocado por um dedo vibrante, tocada, a pequena assembleia humana, por um sopro nocturno, uma acção estelar. Não se vai lá em busca de catarse directa mas de arrebatamento, cegueira, transe. Vão alguns em busca de beleza, dizem. É uma ciência dos movimentos, a beleza, ciência de ritmo, ciclo, luz miraculosamente regulada, uma ciência de espessura e transparência da matéria? De todos os pontos a todos os pontos da trama luminosa, ao fundo da assembleia sentadamente muda morrendo e ressuscitando segundo a respiração na noite das salas, a mão instruída nas coisas mostra, rodando quintuplamente esperta, a volta do mundo, a passagem de campo a campo, fogo, ar, terra, água, éter (ether), verdade transmutada, forma. A beleza é a ciência cruel, imponderável, sempre fértil, da magia? Então sim, então essa energia à solta, e conduzida, é a beleza.

Herberto Helder

https://www.youtube.com/watch?v=qMgTCtSxOHE

domingo, 28 de junho de 2020

Natureza


Em forma sabor e duração
em viva densidade harmoniosa
em que o silêncio perpassa na brancura
o fruto melodioso da tranquila hora
cintila em plenitude de presença
sem promessas sem pertencer a ninguém
e em redonda leveza todo em si se consuma
Não se dirige a alguém não requer palavras
não tem mistério algum e é indecifrável
na sua lenta nudez na sua límpida luz
Na sua vaga pureza uma antiguidade murmura
e é a surpresa de uma primeira vez
que se demora como um barco harmonioso

António Ramos Rosa
Foto - Portugal, 25/06/2020
https://www.youtube.com/watch?v=AuDh36azgnU

terça-feira, 9 de junho de 2020

Visões de artistas






Subitamente - que visão de artista! -  
Se eu transformasse os simples vegetais,
À luz do Sol, o intenso colorista,
Num ser humano que se mova e exista
Cheio de belas proporções carnais?!

E eu recompunha, por anatomia,
Um novo corpo orgânico aos bocados.
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça numa melancia,
E nuns repolhos seios injectados.

As azeitonas, que nos dão o azeite,
Negras e unidas, entre verdes folhos,
São tranças dum cabelo que se ajeite;
E os nabos - ossos nus, da cor do leite,
E os cachos de uvas - os rosários de olhos.

Há colos, ombros, bocas, um semblante
Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmido, fragrante,
Como dalguém que tudo aquilo jante,
Surge um melão que me lembrou um ventre.

                                                                               (extracto de Num Bairro Moderno)


Poema de Cesário Verde (1855-1886)
Fotografias de Edward Weston (1886-1958)
https://www.youtube.com/watch?v=eFd5h0JRdKg

terça-feira, 2 de junho de 2020

As mais belas coisas do mundo


Nesse tempo, o meu avô perguntou-me quais seriam as coisas mais belas do mundo. Eu não soube o que dizer. Pensei que poderiam ser o fim do sol, o mar, a rebentação no inverno, a muita chuva, o comportamento dos cristais, a cara das mulheres, o circo, os cães e os lobos, as casas com chaminés. Ele sorriu e quis saber se não haviam de ser a amizade, o amor, a honestidade e a generosidade, o ser-se fiel, educado, o ter-se respeito por cada pessoa. Ponderou se o mais belo do mundo não seria fazer-se o que se sabe e pode para que a vida de todos seja melhor.
Pasmei diante do seu conceito de beleza.
Ele incluía os modos de ser, esses ingredientes complexos que compõem a receita do carácter ou da personalidade, a maneira um pouco inexplicável como somos e sentimos tudo.
Convenci-me que as coisas mais belas do mundo se punham como os mais profundos e urgentes mistérios. Eram grandemente invisíveis e funcionavam por sinais dúbios que nos enganavam, devido à vergonha ou à matreirice. O que sentem as pessoas é quase sempre mascarado. Deve ser como colocarem um pano sobre a beleza, para que não se suje ou não se roube, para que não se gaste ou não se canse.
A beleza, compreendi, é substancialmente o pensamento, aquilo que inteligentemente aprendemos a pensar. A força do pensamento haverá de criar coisas incríveis, científicas, intuitivas, maravilhosas, profundas, necessárias, movedoras, salvadoras, deslumbrantes ou amigas. Pensar é como fazer.
Para a beleza é imperioso acreditar. Quem não acredita não está preparado para ser melhor do que já é. A minha mãe disse que eu virei um sonhador. Para mudar o mundo, sei bem, é preciso sonhar acordado. Apenas os que desistiram guardam o sonho para o tempo de dormir.

sábado, 30 de maio de 2020

Entrada


Distâncias somavam a gente para menos. Nossa morada estava tão perto do abandono que dava até para a gente pegar nele. Eu conversava bobagens profundas com os sapos, com as águas e com as árvores. Meu avô abastecia a solidão. A natureza avançava nas minhas palavras tipo assim: O dia está frondoso em borboletas. No amanhecer o sol põe glórias no meu olho. O cinzento da tarde me empobrece. E o rio encosta as margens na minha voz. Essa fusão com a natureza tirava de mim a liberdade de pensar. Eu queria que as garças me sonhassem. Eu queria que as palavras me gorjeassem. Então comecei a fazer desenhos verbais de imagens. Me dei bem. Me perdoem os leitores desta entrada mas vou copiar de mim alguns desenhos verbais que fiz para este livro. Sei que os meus desenhos verbais nada significam. Nada. Mas se o nada desaparecer a poesia acaba. Eu sei. Sobre o nada eu tenho profundidades.

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Concerto no Auditório da Gulbenkian



João Barradas 4 D

Sozinho no meio do palco
Sentado numa cadeira
O músico toca acordeão

E atrás dele apenas
Uma parede transparente
Nos separa do jardim…

Diante de nós um menino
A brincar com uma menina
Papageno e Papagena?
Dá um pontapé e a bola
Bate no chão e rebola
Correm os dois atrás dela
Desaparecem no jardim

Barradas no meio do palco
Abraça o acordeão
Que canta, geme e grita
E nós vamos atrás dele
Cada um dentro de si

Olhem esta criança
A tocar acordeão
Noite Feliz, Noite Feliz
E os outros meninos
Acompanham em coro
Noite Feliz, Noite Feliz
Ano de mil novecentos e tal
Eu estou no meio deles
Inocentes e cheios de futuro
Noite Feliz, Noite Feliz

E o concerto termina.

Março/Abril de 2020
HN

Pintura de Picasso
https://www.youtube.com/watch?v=IYahMZO5Rng

domingo, 10 de maio de 2020

A educação no tempo de O. S.



As carteiras alinhadas, diante do quadro preto, do crucifixo e do retrato de O. S. Rezar todas as manhãs por O. S. Rezar em coro a O. S.
Enquanto todos reencontram a família, à noite, ele fica sozinho, trabalhando, velando sem dormir pelo seu povo. Graças a ele as pessoas vivem em segurança, defendidas da discórdia, da infelicidade e da guerra, libertas de todo o mal.
Entre a ira de Deus e os ventos da História ele levanta-se como um anjo para proteger o seu povo. Ele é um rochedo de granito, uma fortaleza inexpugnável, contra a qual as ciladas do inimigo não terão jamais poder algum.
Está sentado numa cadeira de ouro e não sai nunca porque todos os lugares estão nele, ele é o alfa e o ómega, o princípio e o fim.
As setas venenosas embatem nele e quebram-se como vidro, ele é mais forte do que a hidra, o tufão, o raio e o basilisco.
Velai por ele, ó Deus, pois ele é a nossa segurança e a nossa força.

Vestidas com batas brancas, todas sentadas em cadeirinhas baixas. O céu enevoado, as nuvens descendo, para lá da janela, algures, nos ouvidos, o vento andando. Áurea inclinava-se sobre cada uma, vigiando, as agulhas caíam, desenfiadas da linha, quando ela segurava o pano. 
- Não quero nós, disse, dá-se meio ponto e segura-se a linha com outro meio ponto, quantas vezes eu já disse isso.

Áurea estava exausta, mas não afrouxaria. Levantou os olhos até ao retrato: O. S. era o seu esposo místico, ele dava razão e sentido à sua vida. À noite era nele que pensava na cama, adormecia pensando nele, um homem perfeito e santo, como mandava a Igreja. Um povo de santos, que preferiam não usar o seu corpo.
"Faz do trabalho uma oração", leu ainda, mais abaixo, desviando os olhos do retrato. Mandara emoldurar a frase e pendurara-a na parede, em letras grossas que se viam com clareza de todas os lugares da sala, não podiam deixar de ler-se sempre que se levantavam os olhos do caderno ou do bordado, mil vezes ao dia, como uma jaculatória, e ficavam para sempre gravadas na memória.
Educar era isso, gravar no espírito, desde a infância. Aí ficariam as palavras para sempre, e um dia não seria mais possível apagá-las, fariam parte da pessoa. Era necessário, por isso, fornecer em tempo às crianças as palavras certas e livrá-las das falsas. Preservá-las do mal a todo o custo. Separar os sexos, as salas, as escolas.

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Primeiro 1º de Maio


No dia primeiro de Maio
neste país de prosa até aos dentes,
rodeado de palavras em tudo o que é papel
ou coisa transmissível
quem quis foi para a rua fazer o seu poema.
Não estava ali ninguém para discursos,
os artigos eram para limpar o cu.
As velhas queriam dançar - quem sabe -
pela última vez na sua vida.
As raparigas gritavam por aborto livre
e um homossexual levava uma criança ao colo
porque exigia creches no seu peito pintado.
No meio das grandes massas e palavras de ordem
a voz abafada do desejo erguia o seu poema,
transgredia...
Cada um escrevia ali o seu poema
entre os fulgores de um Maio
erguido a custo
nas mais finas agulhas.
Cada um deixava o seu sangue crescer 
na mão do outro.
Mar, mar tenebroso e de repente calmo
na espuma de um sorriso, 
na palma aberta ao rosto imediato.
Toda a cidade, agora feita de água,
brilhava e anoitecia nas gargantas.
Era um poema longo, longo
o que ela respirava.


domingo, 26 de abril de 2020

Lição

               

              Oiço todos os dias,
               De manhãzinha,
               Um bonito poema
               Cantado por um melro
               Madrugador.
               Um poema de amor
               Singelo e desprendido,
               Que me deixa no ouvido
               Envergonhado
               A lição virginal
               Do natural,
               Que é sempre o mesmo, e sempre variado.

               Miguel Torga
                   Desenho no ipad de David Hockney

terça-feira, 21 de abril de 2020

Ophiussa


“Conta a lenda que em tempos remotos, nada desta cidade de Lisboa existia e toda a costa recebia um nome estranho e simbólico: Ofiúsa, ou seja, a Terra das Serpentes. A sua rainha era meia mulher meia serpente, um ser aparentemente gentil e afável, com um enorme poder de sedução que utilizava para atrair todos os que aportavam ao seu reino. Tinha por hábito subir ao alto de um monte e gritar ao vento, para depois ouvir sua própria voz no eco: “Este é o meu reino! Só eu governo aqui, mais ninguém! Nenhum ser humano se atreverá a pôr aqui os pés: ai de quem ousar, pois, as minhas serpentes, não o deixarão respirar um minuto sequer!” 
Por muito tempo quase ninguém se atreveu realmente a entrar nesse reino. Acreditava-se que a sua costa era amaldiçoada tanto pelos deuses como pelos homens. Os poucos que se arriscavam eram seduzidos pela rainha e nunca mais retornavam. Porém, um dia, vindo de muito longe, um herói chamado Ulisses, aportou na terra das serpentes. Ulisses e os seus companheiros ficaram encantados pela beleza de Ofiúsa junto ao rio, e decidiram ancorar e passar uns dias em terra para descansarem. Quando viu Ulisses, a rainha serpente apaixonou-se perdidamente por ele e pediu-lhe que casasse com ela e vivesse para sempre no reino, em troca de poupar a sua vida e a dos seus homens. Ulisses receando a sua fúria fingiu aceitar, até descansar com os seus homens e abastecer as suas naus com mantimentos frescos, para poder prosseguir viagem. Deslumbrado com as belezas naturais que viu, subiu a um monte, e assim como fazia a rainha das Serpentes, gritou ao vento: “Aqui edificarei a cidade mais bela do Universo, e dar-lhe-ei o meu próprio nome. Será Ulisseia, capital do Mundo!” 
Assim que pode, Ulisses fugiu da rainha e zarpou para mar alto. Ao ver-se só, enraivecida por ter sido enganada, a rainha lançou-se da colina onde vivia em direcção ao mar. A sua longa cauda não lhe permitia mover-se com grande velocidade, mas não a impediu de serpentear até ao rio, deixando atrás de si como prova do enorme esforço, as sete colinas que ainda hoje existem em Lisboa. Chegada ao rio ainda continuou algum tempo nadando até ao mar, mas acabou por desistir, sem forças para continuar perseguindo Ulisses, que entretanto já se encontrava longe. Assim surgiu a primeira lenda referente a Lisboa e às suas sete colinas, que continuam ainda hoje a dirigir-se para o rio Tejo, quem sabe se em busca de um amor eterno.” 


Sofia Quintas
Pintura de Lima de Freitas
https://www.youtube.com/watch?v=UuKn1HkTjBg